ensaios
Sobre The Chelsea Girls
por Jonas Mekas, em tradução de Daniel Caetano

Publicado em 29 de Setembro de 1966

Depois de ver The Chelsea Girls, o novo filme de Andy Warhol, eu fiquei andando pela rua e falando sozinho. Eu não tinha dúvida de que tinha visto um filme muito importante. Mas se eu for escrever qualquer coisa sobre ele, as pessoas vão dizer que fiquei doido.

Mas aqui estava eu e precisava escolher. Na verdade, eu não tive escolha. Eu fiz um esforço especial para não perder nenhum filme no festival: alguns filmes eu até vi duas vezes. Agora ficou claro para mim que The Chelsea Girls foi não apenas um cinema mais avançado do que qualquer outra coisa que eu tenha visto no festival – foi um trabalho importante sob qualquer medida. Então, mais uma vez, eu preciso me fazer de tolo e falar o que eu acho que precisa ser dito.

O que é The Chelsea Girls? É o trabalho mais ambicioso de Warhol até hoje. Talvez também seja o trabalho mais importante que ele fez até agora. É um filme-romance épico. Durante as quatro horas de duração do filme, um monte de gente aparece, um monte de vidas complexas, rostos, destinos. O filme é pensado como uma série de quartos no Hotel Chelsea, dois quartos projetados lado a lado simultaneamente, com pessoas diferentes em quartos diferentes ou, às vezes, cruzando de um para outro. Muitas vidas estranhas se abrem diante dos nossos olhos, algumas delas encenadas, outras reais – mas sempre bastante reais, mesmo quando são falsas – uma vez que esse é o Hotel Chelsea da nossa fantasia, da nossa imaginação. Amantes, viciados em drogas, golpistas, homossexuais, lésbicas, heterossexuais, garotas tristes e frágeis e garotas fortes e duronas – conversas em silêncio, ócio, conversas ao telefone, o tempo passando; jogos de salão, jogos de drogas, jogos de sexo. Eu não conheço nenhum outro filme, exceto O Nascimento de uma Nação, em que um grupo tão grande de pessoas seja apresentado como nesse. Nem sempre entendemos sobre o que eles estão falando, somente alguns fragmentos curtos de conversas de fato se tornam claros para nós. Conforme o tempo passa, esse grupo de pessoas e vidas se torna uma complexa colméia humana. Na sua estrutura complexa e entrelaçada, na sua simultaneidade de vidas diante dos nossos olhos, o filme se aproxima de Joyce. Me perdoem por essa comparação sacrílega – sinceramente, é a primeira vez que eu ouso mencionar Joyce numa conexão com o cinema. Esta é a primeira vez que eu vejo no cinema uma solução interessante para as técnicas narrativas que permitem ao cinema apresentar a vida com a complexidade e a riqueza que foram alcançadas pela literatura moderna. The Chelsea Girls tem uma grandiosidade clássica nesse aspecto, algo próximo a Victor Hugo. A sua grandiosidade é a grandiosidade do seu tema, a amplitude humana do seu tema. E é um filme trágico. As vidas que nós vemos no filme são cheias de desespero, dureza e horror. Está lá para todos verem e pensarem a respeito. Todo trabalho artístico nos ajuda a entender nós mesmos através da descrição daqueles aspectos de nossas vidas que nós conhecemos pouco ou temos medo. Está lá em preto e branco, diante dos nossos olhos, essa reunião de criaturas desesperadas, o desespero como parte do nosso ser, como a vanguarda do nosso ser. E uma das coisas impressionantes nesse filme é como as pessoas nele não são exatamente atores; ou, se eles estão atuando, a atuação deles se torna sem importância, torna-se parte das suas personalidades, e ali estão eles, totalmente reais com suas personalidades transformadas, intensificadas. A atuação em cinema é expandida através da ambiguidade entre real e irreal. Isto é parte da técnica de filmagem de Warhol, e frequentemente é uma técnica dolorosa. Há a garota que anda chorando de uma cena para outra, lágrimas reais, de sofrimento verdadeiro; outra garota, possivelmente sob o efeito de LSD, que nem sequer se dá conta direito de que está sendo filmada; o “padre” que tem um acesso de raiva (uma raiva real) e estapeia várias vezes a garota (tapas reais, não tapas de atores) quando ela começa a falar de Deus – naquela que é provavelmente a cena religiosa mais dramática já filmada até hoje. Próximo do final, o filme se torna colorido – não a cor tradicional dos filmes, mas uma cor vermelha de terror dramatizada, exaltada e gritante.

Não tenho dúvida de que os críticos e as platéias “normais” vão descartar The Chelsea Girls como algo que não tem nada a ver com cinema ou vida “real”. Está se tornando claro que existe uma completa incompreensão sobre o papel do artista na sociedade. Alguns críticos gostariam de relegar ele a algum canto doce e inocente das nossas vidas. Muitos críticos e espectadores não compreendem que um artista, não importa o que ele esteja mostrando, está espelhando ou prevendo também as nossas vidas. O terror de The Chelsea Girls é um terror santo (uma expressão que, segundo me contaram, o próprio Warhol usa para se referir ao seu trabalho): é a nossa civilização sem Deus chegando ao marco zero. Não é a homossexualidade, o lesbianismo ou a heterossexualidade: o terror e a dureza que nós vemos em The Chelsea Girls são os mesmos terror e dureza que estão queimando o Vietnã; e são a essência e o sangue da nossa cultura e nosso modo de viver. Esta é a Grande Sociedade. Aqueles que odeiam ou desprezam o trabalho de Warhol pelo terror que ele apresenta o odeiam pelos motivos que, na verdade, deveriam louvá-lo: por ser capaz de retratar algumas verdades essenciais sobre nós mesmos. Como eu já disse outras vezes: não é o artista que está falhando nos dias de hoje. São os críticos que estão falhando por não serem capazes de explicar o verdadeiro sentido da arte para o homem. Estas obras, uma vez entendidas e abraçadas, iriam se tornar rituais de terror santo e iriam nos exorcizar do terror.

Agosto de 2011

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