Che
(Che - The Argentine), de Steven Soderbergh (EUA/Espanha/França,
2008) por Julio Bezerra Distanciamento,
efeito e política
O filme começa em um preto e
branco granulado. Vemos a bota militar de Ernesto Guevara, que dá entrevista a
um canal de TV norte-americano, em 1965. Che já é um mito, e é tratado como tal.
Pouco a pouco, a estadia nos EUA será intercalada pelos momentos seminais do engajamento
do personagem na Revolução Cubana: o encontro com Fidel Castro no México, o treinamento
militar na selva, a campanha vitoriosa na Sierra Maestra. O filme tem a exuberância
de uma campanha guerrilheira que deu certo, mas não é uma cinebiografia. É um
filme que não concilia a realidade que retrata com as facilidades da linguagem
do cinema hollywoodiano, embora não escape de algumas concessões – difícil entender
o tratamento dado aos flertes de Che com a personagem de Catalina Sandino de outra
maneira. Em primeiro lugar, a língua é o espanhol, coisa rara em filmes americanos.
Em segundo, o que vemos é uma tentativa de tratar o personagem dentro de seus
próprios parâmetros. O Che de Steven Soderbergh não é um mito adjetivado, muito
pelo contrário. Che será definido pelo desejo de mudar a história. Ponto final.
Difícil não lembrar de Diários de Motocicleta (2004),
de Walter Salles. O Che de Diários é idealizado: um homem benevolente e
caridoso que alimenta um incrível sentimento de compaixão para com as mazelas
do mundo. O longa de Salles chega por vezes a cair em um fosso entre encenação
e narrativa. Em determinado momento, o protagonista aperta a mão de um leproso
sem luva e o filme vai de um plano médio para um close, ostentando um ato que
para o então jovem médico não tinha nada de bravo, apenas um simples gesto de
respeito. O que dizer da travessia do rio, que se desenrola em uma decupagem frenética
e ao som de uma trilha carregada na tensão emocional? A seqüência vira uma espécie
de monstro simbólico: a representação de uma travessia ideológica do personagem
em contato com a realidade da América Latina.
Em
Che, primeira parte de um díptico lançado em alguns países
(caso do Brasil) como dois filmes separados, não há nenhum vestígio desse desejo
pela catarse. É bem verdade que tanto Diários quanto o longa de Soderbergh
trazem histórias de formação. Ambos narram um processo cheio de aprendizagens
que transformam um jovem em um homem consciente dos males de seu continente, no
primeiro caso, e um homem em um guerrilheiro revolucionário, no segundo. Mas Soderbergh
evita qualquer tentativa de sentimentalizar ou engrandecer seu personagem – o
mesmo vale para a apaixonada interpretação de Benicio del Toro como o protagonista.
Che não narra uma conversão ao humanismo, mas um percurso na direção do
marxismo, da Revolução (com maiúscula). Curiosamente, não
há closes do personagem – assim como não há as emoções que costumam preencher
os closes. Nas poucas exceções que confirmam a regra, o rosto não remete a algo
anterior e interior do protagonista: interessa apenas sua presença atuante no
nível do factual, das ações diretas e simples. Aqui predomina o factual, o processo.
O que se vê é o fenômeno miúdo, a observação da vida, seus gestos e tensões. Soderbergh
(ele assina a fotografia sob o pseudônimo Peter Andrews) filma tudo de modo preferencialmente
estático e trabalha da maneira mais direta e frontal possível, exalando uma secura
talvez inesperada. A câmera se posiciona de forma a pouco acrescentar à dinâmica
social observada pelo filme. É como se os personagens fossem menos encenados do
que vigiados. A impressão é a de que o cineasta vê na câmera digital (o filme
foi rodado em HD) uma ferramenta de neutralidade. Subtrai-se o ponto de vista
de quem filma. O olhar é clínico e frio. Che
é um épico desdramatizado: se não é espetaculoso, não deixa de querer se fazer
notar pela competência e inteligência em suas escolhas estilísticas. Evita os
efeitos de assinatura em nome de uma certa crueza, em favor de um certo procedimento,
mas isso não resulta em uma sofisticação do dispositivo cinematográfico. Talvez
em toda a sua duração o longa afirme apenas o seu conceito/estratégia e o personagem
fique preso em apenas mais um exercício cinematográfico de Soderbergh.
Algo que marca de certa maneira a filmografia deste cineasta, de quem não sabemos
nunca o esperar: grandes produções (Onze Homens e um Segredo), longas de
ambições mais experimentais (O Estranho), projetos associados aos estúdios
hollywoodianos com uma assinatura pessoal (Traffic). Em todos, porém, ele
cisma sempre em incluir determinadas opções estéticas que, quanto mais querem
a transgressão, menos a alcançam. Em entrevistas, Soderbergh
defendeu a perenidade do símbolo de Che Guevara. O próprio distanciamento assumido
pelo filme se configura como um gesto de respeito. A idéia era reproduzir sem
julgamentos ou adjetivos os acontecimentos e os seus personagens. Mas essa pretensão
documental é enganosa, pois resultado de cuidadosa construção, puro efeito. Por
mais distante que esteja o cineasta, o filme segue meio
assombrado pela lenda que precede seu protagonista. A decisão, à primeira vista
corajosa, de abordar o personagem de maneira oblíqua talvez o leve ao lugar mesmo
que ele queria evitar: a mistificação. Este é um longa em que o mito (que
existe e tem um peso e uma penetração ainda imensos), e a construção desse mito,
acabam tendo um papel preponderante. Não é preciso ir muito longe e afirmar que
Diários e Che partem de um tema absolutamente político, mas realizam
de modo diverso, em suas narrativas e nos caminhos operados pela mise-en-scène,
uma certa omissão do político. Contudo, há controvérsias. Talvez
ambos longas também possam ser vistos como maneiras diferentes de tratar
o político, não partidárias de alguma versão "verdadeira",
mas descrevendo de um certo ponto de vista certamente favorável à
trajetória de um sujeito, uma trajetória aberta a interpretações
do espectador. Abril de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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