in loco - o cinema de chantal akerman Um
elogio ao ator por Thaïs Dahas - colaboração
especial para a Cinética Os
Anos 80 (1983) é um filme em que Chantal Akerman
se dedica ao ator. Talvez por saber, sendo atriz também, o que sente um ator ao
ser visto. Não se trata apenas de ensaios filmados, ou testes de elenco; de falas
e passos de dança executados muitas vezes sem parceiro; da câmera de teste que
não pode abandonar ou desistir do ator ao registrar suas particularidades de expressão,
até que se revele, nesta situação de exposição a que os atores se submetem no
momento do teste, quão singular é cada performance.
Chantal sabe que os
personagens, bem como as pessoas, são inacessíveis – e que é no inacessível, no
mistério, que reside a beleza (o que é trabalhado especialmente em A Prisioneira,
Retrato de uma Jovem em Bruxelas nos Anos 60 e Toda Uma Noite -
foto abaixo). A postura da câmera em grande parte de seus filmes reflete isso:
o personagem é tomado com extremo respeito, e lhe é dada a liberdade de simplesmente
ser, dentro das circunscrições necessariamente impostas pelo cinema – onde o limite
do quadro em si já é uma delas. Não
cabe ao seu cinema a tentativa de psicologizar um personagem na imagem – pelo
contrário, impõe-se um limite à minha intrusão de espectador. Muitas vezes posso
inferir mais sobre os personagens por conta da forma como vivem o tempo em cena
do que pelo que possam vir a falar. Nas três horas de duração de Jeanne Dielman,
23, Quai de Commerce, 1080, Bruxelles, não há “plano ponto de vista”
ou subjetiva da personagem que facilite a compreensão de como ela vê o mundo ou
de sua interioridade. Eu jamais vejo em seu lugar. Não me é dada essa possibilidade
do olhar – mas a interpretação de Delphine Seyrig,
dentro do tempo em que a câmera parada, distanciada, a acompanha, basta para que
se faça sentir o cotidiano de Jeanne. Essa tensão
entre o ator e a câmera – decorrente de uma rigorosa contenção do olhar – é bastante
favorável à abordagem recorrente de alguns temas na obra de Chantal, como o desejo
em estado de latência. Esta abordagem da disposição e da dinâmica dos corpos em
quadro é característica a vários de seus filmes: são corpos que tentam resistir
ao desejo, acabam colidindo e expressando o desejo contido, mas depois se afastam,
por necessidade. Em algumas obras, isso acontece de modo coreografado, quase dançado
(a exemplo de Toda uma Noite, Os Anos 80, Golden 80’s). Noutras,
percebemos o gesto inserido numa temporalidade hiper-realista, mas ainda carregado
dessa tensão do desejo (como em Jeanne Dielman e Eu, Tu, Ele, Ela).
Os personagens de Chantal são inacessíveis – para o espectador, mas também inacessíveis
entre si. Em L’homme à la valise, o personagem do título é quase todo construído
a partir do som. Ele existe no que ele não é em imagem. Chantal, que também atua
no filme, vê seu incômodo com a idéia de compartilharem um mesmo espaço (um apartamento)
gradativamente se transformar numa obsessão pela presença inacessível deste homem.
O
ator – e também o personagem – cresce ao não se entregar por completo à imagem,
preservando o próprio mistério. E o respeito pela beleza única que cada ator pode
oferecer a um filme é o que dá vida a Os Anos 80. Cada ator tem uma cor
só sua, um tom, uma aura, um gesto a oferecer. E a verdade na interpretação emana
justamente quando o ator não se força a ser outro ator – o personagem vive à medida
que é incorporado às idiossincrasias, particularidades gestuais, daquele que o
interpreta. Nos testes que vemos no filme, Chantal se faz sempre presente, expondo-se
na mesma medida que os atores – embora raramente apareça na imagem. Ela os dirige
ao mesmo tempo em que com eles contracena, quase sempre por trás da câmera. O
intérprete nunca está só. E parece não importar muito se houve um preparo para
a interpretação na cena a ser gravada. Não interessa se eu ritualizo a experiência,
se eu me aqueço, ou mesmo como eu vivo e repito ações. Se eu respiro, como respiro,
e quantas são as respirações antes de entrar em cena. Só interessa que se viva
ali, em frente à câmera, as situações que ela pede, as falas às quais ela responde
por trás da câmera, a intensidade que ela quer. Os atores são moldados, e nas
ações mais automatizadas chegam a lembrar modelos bressonianos (o que é mais perceptível
em A Prisioneira) – mas eu não ousaria atribuir a ela um método que não
o seu próprio. Em Os Anos 80, por justamente trazer
um recorte dos ensaios e testes que trabalham com diálogos específicos de um roteiro,
temos a fragmentação da narrativa de um filme ainda por ser feito. Essa narrativa,
de alguma forma, se faz presente nas falas repetidas e revividas por cada ator,
como um mistério que vai se desvendando ao longo do filme. Os diálogos são soltos,
as falas incompletas, os testes refeitos – numa preparação para o que ainda será
um filme narrativo. Mas este processo já é um filme em si, por si só. Ele se basta
– o que é perceptível na construção autoral (e cinematográfica por excelência)
do filme. Se haverá outro filme, “resultado final” para o qual estes ensaios ainda
vão servir, não interessa. Os Anos 80 é um documentário sobre um processo,
em que falas vão sendo ressignificadas, à medida que repetidas por diversos atores
– e assim vai se revelando o que Chantal busca: que cenas, quais dramas, como
é construída a mise-en-scéne para tal momento da história. Porque
há uma história. A história mesma do fazer cinema. E quanto à história do filme
a ser feito – pode parecer que ela não tem relevância, não neste filme. Mas, no
momento em que a primeira frase dita no filme – em off numa tela preta,
repetidas vezes e em diversos tons de interpretação – reaparece no contexto da
narrativa, dentro de uma mise-en-scéne rigorosamente pensada e executada,
revela-se a beleza e a genialidade da construção de Chantal. Repetir um texto
descontextualizado, mas por si só forte, durante o tempo de uma tela preta inicial
já é expressivo em si. Mas quando esse mesmo texto reaparece, no momento e contexto
mesmo da filmagem (e não mais do ensaio), evidencia-se o poder do cinema, da transformação
das coisas simples – como a palavra, uma frase, ou um clichê – em elementos que
resolvem toda uma cena. Há um crescendo no filme, para o
qual contribuem a repetição cada vez mais freqüente de uma música (tema de lamento
da personagem Mado), a montagem dos testes-ensaios – que começam a ser intercalados
com momentos de dança ao som dessa música – e a própria variação da textura da
imagem: a troca do suporte do vídeo pelas imagens “finais”, em película, nos últimos
20 minutos do filme (cenas “prontas”, com atores no cenário, de figurino, interagindo
entre si etc). A película é, sim, a meta da diretora para um musical com narrativa
linear, não-fragmentada, de utilização do espaço calculada numa decupagem pré-definida
(Golden Eighties). Mas o que vemos nesses últimos 20 minutos ainda é Os
Anos 80: a película e o rigor da composição podem permitir a apreensão destas
imagens como o objetivo final do processo, resultantes dessa busca feita nos ensaios
– mas a construção do filme como um todo ressignifica o papel delas pela coesão
que estabelecem com o que se viu até o momento. A grandeza do filme continua existindo
no recorte do processo de criação que nos é revelado, e não no que este processo
pode ter de útil para uma outra obra. Maio
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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