in loco - o cinema de chantal akerman De
plano em plano O cinema unitário
de Chantal Akerman por Fábio Andrade
Em
Lá, temos quase somente planos de uma janela. Não se aponta uma câmera
de cinema para uma janela impunemente, e a presença frequente desse elemento cênico
na filmografia de Chantal Akerman indica, no filme, um dado metalinguístico. A
comparação física da janela com a tela cinematográfica é convenção de força tão
brutal que, mesmo quando se buscou problematizá-la, ela foi ponto de partida –
lembremos de Arnheim e seu antológico corte epistemológico de que o cinema seria
um prisma, e não uma janela. Mas Chantal Akerman é, também, esquiva a racionalizações
excessivas. Tomemos, portanto, o quadro dentro do quadro pelo que ele tem de mais
plano: mais do que uma discussão em torno de uma possível revelação ou deformação
do mundo proporcionada pelo cinema, a janela é uma forma retangular que enquadra
a vista de quem olha. Do lado de fora, vemos um prédio
de varandas habitadas de forma bastante ordinária. Os planos são longos, longuíssimos,
e os movimentos internos são tão sutis quanto constantes. Entre a câmera e a janela,
uma espécie de veneziana entrecorta o mundo observado com discretas formas geométricas.
As finas hastes de madeira desenham linhas horizontais e verticais, transformando
a vista em uma perspectiva geométrica. A geometria não vem da cena nem do cinema,
mas sim daquele filtro que se coloca entre as duas coisas – enquadrar é estabelecer
ordem, trabalhar convenções, criar um discurso. Até que ouvimos a voz de Chantal
Akerman em voice over. Ela, porém, não comenta o que vê, tampouco o próprio
ato de ver. Ouvimos informações concretas – ela está em Israel, e passa a maior
parte dos dias trancada nesse apartamento alugado – mas ouvimos, sobretudo, ela
falar de si, de seu passado, de sua herança invisível. Ela aponta a câmera para
fora e, com isso, olha para dentro de si. O que Chantal
Akerman faz, em Lá, parece ser o que ela espera de seus espectadores: completar
um plano bidimensional e concreto. De certa forma, esse procedimento (que ela
já usara em Les annés 80) serve como manual para uma possível aproximação
com os filmes de Chantal Akerman, pois essa via de mão dupla é, talvez, a característica
mais marcante em sua filmografia. Dentro da evidente variedade de sua obra, existe
essa recorrente oferta, ao espectador, de um plano já acabado e absolutamente
escorregadio para significados estanques, mas sobre o qual ele sempre precisa
detectar algum sentido que está sugerido no próprio plano. Com exceção de filmes
ainda tateantes, como Hotel Monterey, o que temos são construções visuais
de uma fluidez interna extraordinária, mas que se fixam em um recorte absolutamente
estático do mundo. O mundo, por sua vez, é de uma riqueza sempre acachapante de
formas e movimentos internos. Mesmo
quando estamos em constante movimento (os travellings em Do Leste,
por exemplo), existe uma tensão ininterrupta entre esse baile e a fixidez posada
dos vetores em quadro – como se a câmera passeasse em um depósito de manequins,
e o travelling fosse uma maneira de produzir movimento em algo essencialmente
estático. Pois, mais do que qualquer outro cineasta, Chantal Akerman trata o travelling
como grifo da insuficiência do cinema em captar o movimento. Muito bergsonianamente,
o que temos são cortes imóveis do espaço percorrido que criam, com isso, uma ilusão
de movimento. Daí o extraordinário travelling que traça a fronteira do
México com os EUA em Do Outro Lado ser cortado em um ponto absolutamente
qualquer, pois Chantal não usa o tempo cinematográfico para estabelecer narrativa,
nos levando de um lugar a outro – o durante é muito mais importante do que o início,
ou o fim.
O mesmo acontece em um longo passeio também feito pela janela
de um carro em News From Home; ou ainda no primoroso plano final de Tombée
de nuit sur Shanghai: nunca é possível detectar um ponto de corte.
Se percebemos acenos constantes de Chantal Akerman a cânones das artes plásticas
(as estampas art nouveau em A Prisioneira; os dourados e marinhos
de James Abbott McNeill Whistler em Tombée de nuit sur Shanghai; o fog
de Turner no plano final de News From Home), é porque, em seus filmes,
cada segundo é uma sucessão consciente de 24 quadros parados. O que existe, portanto,
é esse cinema unitário, cujos melhores filmes serão, de fato, aqueles que mais
exaustivamente trabalham internamente essa unidade. Ao contrário
de diversos outros adeptos da estrutura em tableaux, em Chantal Akerman
não há depuração possível: há a valorização absoluta de cada partícula que compõe
cada um de seus enquadramentos. A fixidez da câmera coloca o espectador em estado
agudo de atenção para um mundo que, ao contrário de sua moldura, está sempre se
transformando. Daí os movimentos em Je, Tu, Il, Elle serem tão angustiantes,
pois a repetição automática das colheradas no saco de açúcar anula, do movimento,
qualquer possibilidade de surpresa, de novidade. De movimento, enfim. Por isso
podermos apreender tão mais de A Prisioneira percebendo as formas internas
de cada plano, do que acompanhando somente a narrativa. Se Simon (Stanislas Merhar)
habita um labirinto adornado por toda sorte de arabescos (das estampas dos sofás
e cortinas, à luz que recorta muito marcadamente a escuridão) e tons sombrios,
Ariane (Sylvie Testud) é como seu vestido geométrico – clara, clássica, clean
e elegante. Se
vemos, em Jeanne Dielman, 23, Quai de Commerce, 1080, Bruxelles, Delphine
Seyrig engraxando os sapatos pela terceira vez, logo percebemos nuances em cada
movimento que anunciam o descontrole de sua rotina. Até mesmo a elipse, o coito
que nunca é mostrado, se dá dentro do plano. Sua construção não se prolonga inconscientemente
para o extracampo espacial, e por isso seus filmes raramente permitem contraplanos.
Se a estação do primeiro plano de Os Encontros de Anna é de uma planicidade
visual quase estéril, temos uma cabine telefônica bem no meio do quadro – gerando
um campo de fuga cenográfico capaz de reconfigurar todo um plano, como o surgimento
de Ariane no box do banheiro, em A Prisioneira (foto), de repente nos faz
reler um quadro que já nos parecia plenamente decodificado. Cada
plano de Chantal Akerman carrega o peso de um mundo. Seu cinema é feito de unidades,
e essas unidades são completas e absolutamente autônomas. Daí a brilhante montagem
de Toda Uma Noite ser exemplar, pois os planos montam em falso raccord,
colocando em crise a idéia de ponto de vista. Corta-se de uma ação integral para
um grupo de pessoas que observa; mas será que eles observavam a cena que acabamos
de ver? Quantas personagens temos no filme? Elas se repetem, ou se repetem apenas
os movimentos, as danças, as trombadas, os abraços? A decupagem é agente complicador,
pois confunde mais do que explica a lógica interna das sequências. Por isso, mesmo
quando o contraplano existe, ele é problematizado. Nos primeiros planos montados
de Noite e Dia, por exemplo, cada uma das personagens aparece emoldurada
por uma diferente janela, ressaltando que o contraplano é apenas um outro
plano que, mesmo quando responde ao anterior, é enquadrado em plena autonomia.
Cada quadro tem sua moldura, como se a estrutura plano/contraplano os isolasse,
em vez de conectá-los. Ou em Jeanne Dielman, onde o contraplano só pode
guardar o momento mais extremo de violência, incorporado ao plano pelo reflexo
em um espelho. Ou então no bloco de corpos predominantemente lateral em Retrato
de uma Jovem Garota no Fim dos Anos 60 em Bruxelas – que termina, aliás, apontando
para um contraplano que nunca virá. Em casos mais extremos,
como os poucos planos de relação em Do Leste, a câmera assume uma aparente
passividade que parece até mesmo querer neutralizar a possibilidade de uma outra
relação que não a que vemos na tela. Nesse sentido, Chantal Akerman é uma cineasta
ferozmente política, pois acredita no plano como um discurso completo, cujo único
contraplano possível seria o da platéia de cinema que o assiste – e que, mentalmente,
projeta sua voz, sua cortina, sobre as imagens, como a diretora o faz em Lá.
Assim como seus planos são panfletos de subjetividade, a impossibilidade do contraplano
reconhece a colaboração constante do espectador. Não existe quarta parede, pois
ela é o outro lado da tela; não à toa, em Jeanne Dielman essa parede é
refletida em uma garrafa cromada de café, e tudo que vemos é a própria Chantal,
em trajes de berrante vermelho. Não há possibilidade de fuga. Maio
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
|