A
Troca (Changeling), de Clint Eastwood (EUA, 2008) por
Fábio Andrade Os
fantasmas de Eastwood
Ao lançamento de cada novo
filme dirigido por Clint Eastwood, retoma-se a discussão sobre ele ser ou não
um cineasta clássico (o último, muitos diriam). Não faltam exemplos para justificar
ambos os lados dos trilhos, mas a (des)comprovação é dada por encerrada antes
que se chegue ao centro da questão: o que diz o olhar de Eastwood sobre esses
cinemas, e quais cinemas seriam esses? Se existem, de fato, características que
o alinhem a uma determinada fatia da história da arte – seja de qual época ela
for – o que significa, de fato, esse alinhamento para além dos exemplos, das armações,
das peças que ele escolhe para espelhar o seu olhar? De
todos os seus filmes, A Troca parece o mais decidido em oferecer respostas,
deixando claro que as idades se curvam aos projetos artísticos, e Eastwood – como
cineasta contemporâneo de suas muitas épocas – responde não a um corte no tempo,
mas aos fantasmas que habitam essa história. O cinema é a morada dos fantasmas,
onde os rostos cintilam mortos, passados. Eles estão impressos no espaço, mas
destituídos de matéria, vibrando em um lugar que pode, sempre, ser ocupado por
outros corpos. O rosto de Christine Collins (Angelina Jolie) é pálido, sem sangue,
embora passeie pela tela do cinema como os fantasmas rondam os espaços vazios.
É um cadáver, mas os fantasmas são os espíritos que permanecem no mundo quando
seus corpos não resistem à história. No cinema, todo rosto é um fantasma, pois
faz permanecer a expressão que fisicamente não mais existe. Christine Collins
é um espírito filmado. O contato com A Troca é a lenta compreensão dos
motivos que fizeram Eastwood desejar ressuscitar o espírito dessa mulher. Fazer
um filme é escolher os fantasmas que lhe acompanharão, e A Troca não é
só um filme povoado por fantasmas, mas um filme sobre fantasmas – o que
faz dele um filme sobre o cinema. Apesar de fisicamente
concreto, o cinema precisa encontrar uma matéria outra para existir, pois, como
toda projeção, sem uma tela ele evapora no vazio. Em toda sua carreira, a tela
mais usada por Eastwood sempre foi a mais larga possível: a do cinemascope.
As exceções em 1.85:1 parecem totalmente suspensas desde Crime Verdadeiro,
de 1999. Mas A Troca se passa entre 1928 e 1935, anos em que o cinema migrava
de seu desenho original (1.33:1), para a variação sonora em 1.37:1 – formatos
de proporções próximas às televisões convencionais, ainda inexistentes na época.
A opção por filmar em 2.35:1 é problematizada na primeira imagem do filme: em
vez do escudo atual da Universal, Eastwood apresenta A Troca pela logomarca
original do estúdio, pulsando com os riscos do tempo no preto e branco da película.
Mas, como todo o filme, ela pulsa, talvez pela primeira vez na história, em anacrônico
cinemascope: a logomarca seria abandonada pelo estúdio em 1937, dezesseis
anos antes das primeiras projeções em tela larga. Essas duas
opções ganham, na tensão temporal estabelecida entre elas, status de comentário.
O preto e branco retornará em um outro único, já bem avançado, momento do filme
(e desse texto), mas o formato da tela logo se revelará uma questão chave para
a inquietação crítica do primeiro parágrafo: A Troca não é um filme clássico
ou moderno, mas sim o resultado da tensão entre olhares-símbolos dos dois períodos.
Mais do que uma resposta à chegada da televisão, o cinemascope é, também,
um marco ideológico de uma mudança de olhar, do momento em que a personagem passa
a ser definida não só pela geografia de seu próprio rosto (a idéia de fotogenia,
tão presente no cinema e em sua teoria na primeira metade do século XX), mas pela
interação com o espaço ao seu redor. Eastwood
se reconhece como filho desse pensamento, mas A Troca não é somente sobre
seu realizador – se podemos afirmar que toda obra-de-arte é sobre seu autor –
mas também sobre Christine Collins, a mulher que faz pontes entre as evidências
assim como conecta as ligações no painel da empresa telefônica onde trabalha;
pessoa real nascida para ser arquétipo, carregando o trabalho no sobrenome: “callings”.
É ela a personagem que desafia as instituições que tentam defini-la, e que tem
como única arma o foco de seu olhar. Seu filho fora raptado e lhe devolveram uma
outra criança. Não há meios-tons, pois toda meia-verdade
traz consigo outra metade de mentira. Há uma certeza, e a certeza não tem conjuntura:
mesmo quando falsa, é absoluta. Clint Eastwood filma, portanto, o embate entre
esses dois olhares: o seu – presente, reticente e atento ao entorno – e o de Christine
– menos amplo, mas, por isso mesmo, com a atenção aos detalhes que sustenta sua
certeza. Visualmente, esse jogo de tensões se dá justamente no tamanho do quadro,
pois, embora filme em scope, Eastwood tem o cuidado constante de emoldurar
Christine entre linhas de força de composição que a limitem, dentro do quadro,
ao mascaramento de uma janela 1.37:1. Usando janelas, portas e outras linhas mais
discretamente presentes na geometria de seus enquadramentos, Eastwood encerra
Christine em leves retângulos, quadros que, contidos na horizontalidade de seu
escopo, afirmam que o filme não assume o ponto-de-vista da personagem, mas o localiza
dentro da visão do artista. Como a deformação do quadro
é um jogo bastante forte no cinema contemporâneo – central para sujeitos como
Brian De Palma e Wong Kar-wai – Eastwood marca posição ao diferenciar a natureza
desse jogo, não fazendo com que ele se torne o interesse principal de seu filme,
mas sim uma ferramenta elegantemente disfarçada nos detalhes da dramaturgia. “Percebo
um mundo maior do que o que ela enxerga”, ele parece nos dizer, “mas a fé que
ela tem nos limites de sua crença é extraordinária”. É isso que o interessa. Moderno,
porém clássico. A vírgula é essencial, pois A Troca é um filme sobre o
cinema de seu tempo. E a inquietação que parece mover Clint Eastwood em sua época
(e o fascínio de quem vê) nasce de uma divergência radical com vários de seus
pares. Ao
retomar a firmeza dos olhos de 1928, o diretor deixa antever um incômodo grave
com a omissão política que algumas tendências do cinema contemporâneo disfarçam
como fluidez do olhar. Pois pôr em cena é um exercício político, e olhar é também
selecionar, organizar, estabelecer pesos, tomar partidos. Se há, hoje, um reinante
desejo de planificar a cena, de contemplar situações diversas pelo protocolo indiferente
e confortável dos planos médios, Eastwood retoma aspectos da dramaturgia clássica
(que tem pouco de transparência, e muito de evidente manipulação) como discurso
político: é necessário cortar para um close up, pois a obra-de-arte
é fruto de escolhas, e as escolhas são sempre políticas. A Troca parece
evidenciar o desvirtuamento em omissão dessa planificação do olhar; o momento
em que escolher olhar de longe é, por fim, não ousar se aproximar, e em que negar
um travelling é não reconhecer que certas coisas precisam sair do quadro
(em um certo tempo, de uma certa maneira), e outras devem entrar. Nesse
sentido, é interessante que ele tenha sido exibido no mesmo festival em que Cannes
premiou Gomorra, de Matteo Garrone, e Delta, de Kornél
Mundruczó – exemplos agudos de crise da indistinção do olhar - mas também apresentou
A Mulher Sem Cabeça, de Lucrecia Martel, que encontra parentesco forte
na oposição aparente ao filme de Eastwood. São ambos trabalhos fantasmáticos em
que a deformação do scope é questão central de mise-en-scène; mas
enquanto a diretora argentina trabalha a elasticidade do quadro para esconder
e relativizar as evidências das certezas, inflando seu potencial plástico, Eastwood
discursa sobre a beleza da crença inabalável. De um lado, a construção da dúvida
a partir da imagem concreta; do outro, a obstinação que sobrevive a qualquer questionamento.
Lá, o cinema que se revela ao esconder os absolutos de sua personagem; aqui, o
que se esconde para revelar-se nessa certeza. Filmes centrados nas mesmas questões,
apresentando metades que se completam quando parecem se negar mutuamente. Não
é à toa, portanto, que a lenda das crianças trocadas que dá título ao filme trabalhe,
também, escamoteando a verdade na aparência: troca-se o filho biológico por um
mock up; um troll disfarçado; uma aparência de filho. Troca-se o
cinema por algo diferente que apenas se parece com ele. O interesse que A Troca
demonstra por Christine não vem de sua condição, mas sim do descolamento entre
aparência e verdade (ou a verdade na aparência); entre crença e manipulação. Clint
Eastwood reconhece os perigos da fé inabalável, mas, como decisão política, eles
serão deixados para o pós-filme: as cartelas finais indicam que Christine seguira
procurando seu filho até o final de sua vida. O realizador não se interessa, portanto,
pelo extremo absoluto da condição de sua protagonista, mas sim pela fagulha inicial
que a põe em obstinado movimento, derrubando os obstáculos de conveniência que
as instituições colocam em seu caminho. Esse desejo de representação
que Clint Eastwood deposita em sua protagonista fica claro em uma seqüência aparentemente
menos importante: ao ouvir a cerimônia do Oscar pelo rádio, Christine torce por
Aconteceu Naquela Noite, obra-prima seminal e cotidiana de Frank Capra.
A logomarca sem cores que abrira A Troca ganha, no movimento do último
plano para os créditos, significado mais claro: Christine caminha por uma rua
onde o letreiro de um cinema anuncia o filme de Capra, enquanto as cores caminham,
em fade, para os tons de cinza de sua palheta. Não são as cores que desbotam,
mas sim outras que ganham a tela. Como anunciava o escudo da Universal, os olhos
da virtude daquela época não só enxergavam o mundo em 1.37:1, mas também em preto
e branco – a troca de um mundo matizado e difuso pelos monumentos de convicção.
O olhar da mulher-cinema vai, aos poucos, tomando toda a película – no início
do filme, vontade de reviver os mortos; ao final, a esperança de que ele seguirá
transformando os espectadores ao término da projeção. O baile de fantasmas perde
seu lado fúnebre, e se torna ferramenta de vida: para Eastwood, os rostos da história
só devem ser revividos se carregarem, em seu anacronismo, um olhar que tenha o
poder de reconfigurar o presente. Clássico, porém urgentemente moderno. Janeiro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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