A
Troca (Changeling), de Clint Eastwood (EUA, 2008) por
Cléber Eduardo Acúmulos
na captação do sombrio
Alguém com um mínimo
de cultura cinematográfica possui familiaridade com jornadas de mulheres concentradas
em fazer das tripas coração para deixar de ser vítimas e se tornar agentes de
mudanças (para elas e para o mundo onde vivem). Seres com intimidade e função
política em um mundo insistente em espancá-las. É essa a matriz dramática a qual
se vincula A Troca, de Clint Eastwood, e toda a questão é a forma com a
qual se dá o vínculo. Porque essa é uma jornada de mulher à la Eastwood
– mas, por enquanto, deixemos o autor de lado, o nome dele, e fiquemos na autoralidade,
essa forma de construção de uma visão. Como nos estimulam de Mallarmé a Foucault,
passando por Barthes, importa a visão das obras e não os artistas, porque o artista
só pode se manifestar na criação, sem se importar se essa arte o expressa
ou o inventa em sua ausência. Se há um excesso de crença no poder da arte em desnudar
criadores, ou de permitir um acesso a sua decifração, talvez seja responsável
pensar primeiro as particularidades da criação, porque a assinatura de sua direção
não é atestado de código genético.
Melodrama
com denúncia, thriller sem bulas psicológicas, imagens indutoras de suspeitas,
duas linhas narrativas entrecruzadas, o mal individual e o mal institucional,
um psicopata serial killer e policiais corruptos de Los Angeles, a doença
orgânica e a doença social, crianças desaparecidas e sem compromisso com a verdade,
um pastor, uma funcionária de companhia telefônica e um policial inspirados pela
justiça. Esses são os elementos dramáticos dessa jornada de mulher a Eastwood.
Lidam com questões particulares e questões mais amplas, mas, se o filme nutre
algum compromisso com o andamento do caso real no qual o roteiro é baseado (ocorrido
na virada dos 20 para os 30 em Los Angeles), também coloca em linhas complementares
um segmento para o qual a idéia de organização de sentidos de um tempo em um lugar
não faz nenhum sentido. A Los Angeles dos anos 20/30 pode ajudar a explicar a
polícia, mas não um serial killer e três crianças, e ignorar a crise econômica
americana como contexto é esvaziamento da estratégia, recusada pelo filme, de
uma catalogação de sintomas históricos e sociais. Relativizemos.
A primeira frente narrativa é detectora de males sociais, com uma imagem cristalina
porque, conforme nos mostra a narrativa, não há diferença entre o que vemos e
o que é, porque vemos a corrupção policial. Nada está fora do campo. Já a segunda
frente apenas explicita a dificuldade de se detectar qualquer revelação ou demonstração
na imagem, porque o que vemos não é fiel ao que é, ou ao menos nos induz a desconfiar
dessa infidelidade, porque, afinal, não temos um acesso tão cristalino ao que
é. Essa imagem movediça começa a ser construída desde a aparição do falso filho
da protogonista, que, assim como o menino co-assassino e o serial killer,
não é possível de ser destrinchado pela imagem. Não se está no mesmo no caso das
instituições degradadas, mas de potenciais de ação e reação do ser humano, nem
sempre administráveis ou reprimíveis. E nem todas as ações e reações são dignas
de explicação, apenas são. O desafio é filmá-las e organizá-las dessa maneira,
sem parecer estarem significando as razões das ações mais esquisitas. Há
sintonia com os filmes recentes de Eastwood. A impossibilidade de se localizar
e decodificar a origem do mal, por exemplo, tem parte diretamente com Sobre
Meninos e Lobos – talvez mais solar, apesar de que esse solar é falso, com
uma militância na esperança por parte da protagonista, que, se entendermos como
parte do filme, estaremos a promover uma fusão redutora entre narração e personagem,
além de ignorar a câmera a se afastar dessa mulher enquanto o letreiro nos informa
sobre a continuidade de sua procura pelo filho perdido. Há proximidade com distância
também em relação a Menina de Ouro, Conquista da Honra e Cartas
de Iwo Jima (foto). Se há um mal em quadro, como em Menina de Ouro,
ele só é parcialmente localizável. Se há versões oficiais e individuais falsas,
como em A Conquista da Honra, não sabemos de toda falsidade individual,
embora lá como aqui alguns indivíduos enredados na farsa terminem prostrados.
Se há elogio da resistência, como em As Cartas de Iwo Jima, não são dados
do passado (diegético), mas do presente da protagonista em relação ao futuro.
Chegamos ao ponto. Se em tantos filmes do diretor há uma
busca da memória e uma procura arqueológica por resíduos(como em Iwo Jima),
pois só no passado é possível encontrar vestígios de um mundo organizado de maneira
simplificada e grosseira para o futuro, em A Troca existe apenas o presente
– e uma cartela informativa sobre o futuro, na qual sabemos do fracasso da procura
da protagonista. Angelina Jolie é essa mulher, boa mãe sem
marido, funcionária de uma companhia telefônica. Ao deixar de levar o filho para
ver um filme de Chaplin, no final dos anos 20, e optar por resolver um pepino
qualquer na empresa, Angelina escolhe uma responsabilidade no lugar de outra,
a da profissional no lugar de mãe, e isso resulta no desaparecimento de seu pequeno.
Essa troca de responsabilidades, explicitada na poderosa e rápida imagem do menino
olhando pela janela da sala, enquanto, do lado de fora, a mãe caminha na rua sem
olhar para trás, não é desenvolvida como problema. É uma circunstância. Não estamos
diante de um questionamento sobre a viabilidade da mulher em sua soma de papéis.
É o contrário disso. Mas
não sejamos ingênuos, porque, se o filme olha para o filho da protagonista na
janela enquanto ela mesma só olha em frente, na direção do trabalho, então ele
compartilha com o menino a sensação do abandono, embora a visão seja à distância,
do lugar (e não do ponto de vista) de onde está a mãe, mostrando, com essa operação,
que o menino ali largado é uma questão de fundo, porque a de frente é essa personagem
olhando em frente. Essa mulher olha em frente, desdobra-se, mas é uma mulher.
Será tratada dessa maneira pela polícia e por um médico, porque, sendo mulher,
sua palavra é mais suspeita, porque sai da boca de uma possível neurótica traumatizada
com o sumiço do filho, mesmo com as evidências a seu favor. Inicia-se
um confronto entre provas e falsos diagnósticos. A Troca não leva tão a
sério essa questão de gênero, do feminino oprimido pelo mundo macho, assim como
vai abandonando outras questões, que, no final, mostram ser falsas questões para
o filme, ou apenas tangenciais e transitórias. O que temos é um conflito concreto
e objetivo, com seu ar de denúncia, que mostra a monstruosidade individual e institucional,
de policiais e da polícia em geral, de um médico e de um hospício em geral. Não
são as substâncias mais potentes do filme, nem as com maior potencial, mas, por
serem a tônica inicial, esvaziam as substâncias seguintes, inseridas em uma segunda
parte da narrativa. Segunda parte com narrativa paralela,
a partir do aparecimento de uma outra criança, que, entre a tentativa de livrar
a cara e a culpa, denuncia um psicopata serial killer, responsável pela
morte de duas dúzias de meninos, entre as quais, “possivelmente”, o filho sumido
de Angelina. A doença social e cultural ganha como complemento uma doença mental.
Outra criança surge ao final, também com a consciência atribulada. Eastwood não
quer ir tão longe nesse sentido, porque, pela maneira como as coisas são arranjadas,
esses meninos estão encaminhados para se arrepender, seja quando desmascarados,
seja quando perdidos, desde pelo menos o forte momento visual em que, ao desenterrar
as ossadas de crianças mortas, o co-autor mirim dos crimes ajoeelha-se diante
do policial, menos para limpar a ficha, mais porque está prostrado diante de sua
ação. Para vermos a expressividade de seu arrependimento, a câmera sobre e o deixa
pequeno diante de nós. No entanto, se a denúncia contra a
polícia é concreta e cristalina, se os meninos e o serial killer são envoltos
em algum mistério, as duas frentes e as duas naturezas da imagem se igualam, em
ampla medida, quando se opta em justapô-las como casos de tribunal, de julgamento,
de legislação, quando uma é de fato isso (desrepeito às leis), mas a outra tem
algo para além da simples desobediência das normais. Na tentativa de estabelecer
um paralelo pela narrativa paralela entre males distintos, A Troca evidencia
seu esforço encontrar o sombrio do mundo pelo acúmulo, não pela precisão, estratégia
também usada na construção dos planos e na relação entre eles, como já foi notado
por mais de um crítico. E esse acúmulo (já evidente em Conquista da Honra
e Cartas de Iwo Jima) talvez atravanque as más energias do filme. Más energias
que fazem sua força. Janeiro de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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