ensaios - retrospectiva 2008
De personagens e(m) seu mundo por
Cléber Eduardo Se
o ano de 2008 no circuito cinematográfico teve momentos de imagens e de narrativas
mais fortes, mais evidentes em suas presenças e com as imagens colocadas como
questões internas (Serras da Desordem, de Andrea Tonacci; A Fronteira
da Alvorada, de Philippe Garrel; Pan-Cinema Permanente; de Carlos Nader;
e Não Estou Lá, de Todd Haynes), dois filmes franceses, ao contrário, revelam
maior discrição, com operações sem o objetivo de chamar atenção para si. Em Uma
Garota Divida em Dois, de Claude Chabrol; e A Questão Humana, de Nicolas
Klotz (foto acima), o que importa, no fundo e na frente, são os personagens. E
como esses personagens lidam com o mundo imediato e com as relações nesse mundo.
São
filmes de dois realizadores distantes à primeira vista, mas nem sempre opostos:
um (Chabrol) sempre mais interessado nas regiões nubladas das motivações humanas,
o outro (Klotz) concentrado nas zonas sombrias do funcionamento das organizações
sociais. Cineastas formais (não formalistas) e sóbrios que, se talvez não freqüentarão
o cânone dos anos 2000 com esses seus respectivos filmes, realizaram cada uma
de suas obras com opções que, no cinema feito hoje, chamam atenção pela maneira
como se infiltram em seus mundos. Em um deles (o de Chabrol), infiltra sem querer
decodificá-lo, mas com desejo de expô-lo. No outro (o de Klotz), infiltra à procura
de decodificação, sobretudo de sua gênese, sem buscar significações cristalinas.
Em um e outro caso, para além das particularidades, vemos a relação entre os personagens
e seus mundos diretos, situados em uma elite marcada por segredos íntimos (em
Uma Garota Dividida em Dois) e históricos (em A Questão Humana).
Os
personagens não estão, em si, atolados em suas subjetividades, nem apenas vivem
seu cotidiano, nem expressam idéias ou pontos de vista. Os personagens sofrem
com outros personagens, com as pessoas ao redor, com os mecanismos sociais, com
as forças constituintes de seus meios, mas sofrem na pele, na consciência e naquelas
zonas mais delicadas de nossa caixa preta emocional. São personagens para além
de si, que transportam o lugar ocupado por eles na sociedade, personagens de mundos
fechados, ao qual estão conectados. Não são por isso símbolos sem sangue a correr
nas veias. São filmes doloridos em todos os casos, em que a perda é explícita,
em que os estragos, se são filmados com tranqüilidade, é porque não precisam de
ênfase. Mas não precisam mesmo? Ou o investimento do olhar é menos na intensidade
e mais na atenção, porque essa opção é compatível com a personalidade artística
dos realizadores enquanto artistas da imagem e da cena? Também
são filmes para os quais o plano é uma questão de diferentes maneiras. Em A
Questão Humana, o plano coloca os personagens em quase confinamento, enquadrando-os
(em sentido amplificado) e evitando a mobilidade, como um sistema de controle.
Em Uma Garota Divida em Dois, o plano é um pedaço que se comunica com os
seguintes, por isso, parece haver menos composição e mais observação suave. Se
não há tanto investimento plástico (sobretudo em Chabrol), tanta estética assim
auto-evidenciada pela beleza do enquadramento ou por sua inteligência rara, é
porque o interesse está fora do olhar, está em quem é olhado. Não se trata de
transparência ou de apagamento, mas de uma representatividade da imagem sem a
perda de sua própria experiência como imagem, sem sua redução a uma existência
apenas funcional, uma manutenção de objetividade sem perda de expressividade.
Chabrol: melhor de 2008– Contenção com Intensidade Como
já publiquei um artigo a partir
do filme de Klotz, vou me ater aqui em mais detalhes ao filme de Chabrol,
para mim o que de melhor passou pelos nossos cinemas em 2008. Por que a luz alaranjada,
queimando o céu ao som de uma soprano, no início de Uma Garota Dividida em
Dois? Por que esse começo flamejante, nesse filme de qualidades tão sutis?
Vemos a imagem de dentro de um carro em movimento. Algum sinal? Pura estilização?
Não se mostra uma imagem de céu alaranjado com uma trilha sonora tão específica
em sua dor sem procurar um efeito qualquer. A câmera é quase o ponto de vista
subjetivo da mulher a dirigir o carro, uma agente de um escritor de certa idade
e ampla resistência a contatos sociais.
Câmera
e personagem chegam ao epicentro do drama: a casa desse cliente de nossa motorista
(de quem, no carro, só vemos as mãos ao volante). Ela entra na mansão e faz uma
menção a Marquês de Sade. Não soa assim, mas é uma senha. Essa personagem, apesar
de se mostrar secundária com o desenvolvimento do filme, é uma testemunha. Não
um olhar e uma consciência oniscientes, mas testemunha de algumas situações, menos
porque viu, mais porque ouviu o relato. Situações envolvendo o escritor e sua
jovem amante. Essa testemunha aparecerá pouco, mas estará em momentos-chave, momentos
com algum sentido de revelação de algum segredinho, como quando vê a conversa
do cliente com sua futura amante no lançamento do livro dele, ou quando percebe
a ansiedade dele para encontrar o controle remoto e ligar a TV (onde aparece a
futura amante como a garota do tempo de um telejornal). Não
será diferente a tomada de posição do filme diante de situações sexuais mencionadas
em alguns diálogos (nunca com explicitude excessiva). O sexo está sempre fora
de campo, mas presente no quadro de alguma forma, com alguma intensidade. Não
vemos as imagens das tais situações apenas mencionadas em diálogos (uma orgia),
que, apesar de fora do reino das evidências, tornam centrais para as explosões
dramáticas dos personagens. Não vemos as imagens, nem ouvimos os relatos, porque,
quando o principal deles vai se tornar público, em um tribunal, o filme abre mão
de vê-lo, assim como de ouvir sobre ele. Um filme-testemunha, sim, como a agente
do escritor, mas não onisciente. Os personagens sabem mais que nós e vivem para
além dos limites do visível. Mais que tudo: cada um deles sente essas situações
julgadas no filme (não pelo filme) de um modo muito particular, com suas próprias
razões, valores, sentimentos, inseguranças e exercícios de poder, porque, como
quase sempre em Chabrol, o depósito de poder investido nas relações é salientado
sem ser verbalizado. Com o enquadramento rigoroso e indutor
do fora de campo quando se trata dessa situação central, sexual, caso de tribunal
e motivo de um assassinato, Uma Garota Didivida em Dois solicita a imaginação
do espectador para completar a narrativa com suas próprias imagens. Mesmo quando
precisa dar conta de algumas situações, como na imagem em que mãe e filha assistem
TV, após o assassinato do escritor, o filme é econômico em sua funcionalidade.
Emprega as elipses quando necessário, sem sacrifício da narrativa, sem fazer da
elipse uma questão acima da situação em jogo: a situação em jogo está sempre acima
da necessidade de expor uma maneira de olhar o mundo – essa é a maneira. Uma maneira
cinematográfica em sentido fundamental, com uma geografia visual composta de pedaços
de espaços e uma relação direta e clara entre esses pedaços, mas sem fazer do
fragmento uma sensação em si, ou da soma dos estilhaços um efeito nela mesma. Há
um mundo de homens e mulheres dentro de certos limites sociais antes de qualquer
pressuposto estético. Há uma necessidade de mostrar algo, de direcionar a câmera
para certos personagens, certas situações, certos lugares. Há um número considerável
de sequências em mesas, em encontros sociais, em momentos de reunião de pessoas
de um mesmo grupo, em estúdio de TV, que, juntas, inevitavelmente, nos oferece
imagens de certo universo social. Estamos em mais um daqueles filmes de Chabrol
em que o mundo organizado da elite ameaça ruir – o mundo dos ricos de Lyon, o
mundo literário de Paris. Isso acontece em geral por conta de um gesto acercado
da violência ou violento em amplo sentido, em geral dentro de uma lógica narrativa
e dramática inseminadora da impotência ou do descontrole dos personagens, em geral
diante dos rumos estabelecidos por determinada circunstância sobre a qual não
detém controle. Por
que a luz alaranjada no início? Por que a agente do escritor é uma mediadora quase
invisível e, como tal, traz esse céu em chamas para dentro da casa de seu cliente.
Será por conta da chegada dela que ele saberá da necessidade de ir ao programa
de TV. A imagem seguinte é da moça do tempo e, a seguir, ele a conhece e começa
a se apaixonar, justamente por essa moça que, apesar da experiência de noticiar
previsões sobre a natureza, não prevê a natureza de seu marido, que, enciumado,
mata nosso escritor recluso e tarado. Depois dos tiros em uma cerimônia para a
elite da sociedade de Lyon, o marido enciumado e rival de outros tempos do escritor
vai ao microfone e, como um juiz, emite o veredito sobre a razão da morte. Matou
pelas atividades sexuais que o escritor recluso mantinha com a moça do tempo.
Matou um perverso. Esse justiceiro, embora tenha pose de subversivo dos bons modos,
mata pela pureza. Não aceita perder mais uma para um velho escritor, não aceita
a perversão da lourinha vestida de branca no casamento - mas, que, na cama, mostra-se
habilidosa em práticas sexuais. Velhos sentimentos machistas, com a mulher quase
passiva nos joguinhos de rapazes, ou um passo mais a fundo na tal da natureza
humana? Estamos diante de uma sentença moral na cena do assassinato
e, como a agente do escritor, o filme verá sem “interferir”, mostrando menos punições
para todos os lados pelos atos cometidos, mais as dores inevitáveis de uma situação
encaminhada para gerar mortos e feridos com marcas irreversíveis. Não intervém,
mas mostra que, para a sociedade ali exposta, a sexualidade do morto, na prática,
é atenuante para o crime. Como diz um jornalista na TV, é possível, a partir das
informações sobre a vida sexual do escritor com sua ex-amante, entender a razão
dos tiros, mesmo sem justificá-la. A sociedade o relativiza; não o filme. Ele
tem uma pena a cumprir. Não somos induzidos a termos compaixão, mas também não
somos colocados para julgá-lo. Qualquer julgamento para além da interdição do
assassinato é pueril, porque, como nos mostra o filme, ninguém em cena está livre
de maus passos e julgamentos. Só quem escapa é a esposa do escritor, a santa,
por isso nem aparece após a morte dele. Ela morre para o filme junto com ele. Filme
amargo em amplas medidas e alcance, com zonas de mistérios preservadas para não
serem banalizadas pela dificuldade de se chegar a uma justa imagem sem matar suas
possibilidades e sem reduzi-las à intenção da enunciação, Uma Garota Dividida
em Dois faz do extracampo sua força, da recusa seu poder, da incapacidade
de sintetizar seus personagens a principal razão de suas complexidades. Se podemos
ver de forma quase cristalina as linhas com as quais o drama vai sendo desenhado,
motivado pelo desejo incontido dos personagens, mas também por suas fraquezas
(desejo e fraquezas em mesmo nível de estímulo à ações incontidas), esse desenho
tem por objetivo abrir as delimitações de suas linhas, de modo a nunca vermos
completamente esses personagens. Chabrol não filma de uma
variedade de pontos de vista. Escolhe alguns poucos para filmar as cenas e, quando
corta de um plano para outro, de um ponto de vista ou de uma distância focal,
procura a informação mais apropriada (rostos ou corpos em ambientes), mas eventualmente,
também, a necessidade rítmica de se mudar a origem do olhar ou sua distância.
Espectadores
menos experientes e mais ansiosos, ou mesmo desatentos nos últimos muitos anos,
podem associar Chabrol à Nouvelle Vague, portanto em alguma medida às quebras,
à plasticidade e às estruturas de Godard e Resnais, mas a palavra-chave para Chabrol,
antes e acima de Nouvelle Vague, é Fritz Lang. Isso significa que Chabrol, como
Lang, é um narrador que, sem brigar com algumas quebras de organização de planos
e de situações na estrutura narrativa, procura um olhar não sem particularidades
na maneira como constrói personagens. Eles sempre escapam, sempre são mais, nunca
irredutíveis. Não vemos ângulos de efeito, uma plasticidade acima das informações
e situações em quadro, alguma traquinagem estrutural, uma mobilidade de câmera
na qual a coreografia importa acima dos personagens no plano móvel. O deslocamento
do olhar no filme se dá por mudanças discretas de ângulo e distância, ou com aproximações
e recuos menos ou mais enfáticas da câmera em relação aos atores. Não
falemos em clássico, se não como matriz a ser usada somente como referencial,
porque, antes de clássico, trata-se de um emprego mais pessoal de certos códigos,
sobretudo os de mudança de plano. O cineasta não tem vergonha do plano e contraplano
como soma de partes a construir uma unidade temporal e espacial, mas sobretudo
uma unidade dramática a partir da soma de dois fragmentos colocados em relação
na montagem. Chabrol filma esses ping pongs sem torná-los enfadonhos por
sua completa falta de respiração e entrega a uma burocracia do corte e da reivindicação
do plano seguinte. Por que? Eis o terreno do mistério do cinema, tão bem cultivado
nos filmes do diretor, esse efeito-cinema nem sempre identificável nas operações
dos filmes, esse reino das evidências e das evidências de extracampo apagadores
de suas ferramentas, essa invisibilidade do valor artístico que, no entanto, sabemos
e sentimos estar ali. Abril de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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