O
Céu Sobre os Ombros, de Sérgio Borges (Brasil, 2010)
por Fábio
Andrade
Em
transformação
O Céu sobre os Ombros se alinha
a Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, e Avenida
Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, em uma mesma
estratégia, surpreendentemente recorrente para filmes separados
por tão pouco tempo: partir de um material documental para
uma montagem que adere às convenções da ficção,
superando as questões do próprio documentário
ao ficcionalizar as personagens. O específico do documentário
- essencialmente uma questão ética, de quem lida
com pessoas que seguirão com suas vidas fora do filme -
é trocado por uma apropriação que tenta tirar
deste contato com o real apenas seu impulso de autenticidade.
Três personagens são acompanhados pela câmera
e reunidos em uma montagem aqui realmente paralela - em trajetórias
que nunca se cruzam -, em uma escolha que se assume absolutamente
deliberada: não há nada que aparentemente conecte
as três protagonistas a não ser o olhar do próprio
filme e seu contato com a mesma câmera. A similaridade entre
os três filmes não pára por aí: todos
eles são norteados por uma estratégia de filmagem
em tableaux, com enquadramentos rigorosos e fotografia
de expressiva plasticidade (aqui, de Ivo Lopes Araújo,
mais uma vez surpreendente em suas escolhas de cor e luz), investindo
em uma narrativa que é menos calcada em sua própria
linearidade, e mais no fluxo e orquestração dos
tempos e deslocamentos internos de cada cena. Em todos os casos,
o limite dos filmes é o limite da proposta: como encontrar
uma estrutura de dramaturgia onde ela é imprevista? É
possível articular esses sentidos sem violentar a autenticidade
da experiência? - a propósito, uma certa aleatoriedade
que servia como primeiro ponto de atração do filme
por aquelas personagens e situações. O Céu
sobre os Ombros, nesse sentido, toma uma decisão bastante
feliz, que tira do acaso a responsabilidade pela dramaturgia:
é um filme não somente sobre determinados personagens,
mas uma afirmação de um ethos em relação
ao conceito de "personagem" cinematográfico.
Pois
o que é surpreendente no filme de Sérgio Borges
é a maneira como a instalação no real é
constantemente surpreendida por personagens que se desdobram incessantemente
em cena (e, não à toa, são pessoas que mudaram
seus próprios nomes), levando a encenação
para lugares que antes não pareciam possíveis, entortando
nossa percepção sempre que achamos que já
os conhecemos. É isso que há de comum aos três
protagonistas do filme: sua capacidade não exatamente de
reinvenção para a câmera, mas de revelar a
incapacidade do cinema de captá-los em toda sua multiplicidade,
de tipificá-los para um roteiro. A busca no real se justifica
justamente nessa extrapolação da vida em relação
ao cinema: um travesti se revela um estudioso sobre sua própria
prostituição; um monge Hare Krishna que é
skatista, pichador de muro e devoto do Atlético Mineiro;
uma figura pictórica de um homem que anda pela casa vestindo
apenas um par de meias cor-de-rosa se revela um escritor e pai
de família; etc, etc etc.
Se Morro do Céu e Avenida Brasília
Formosa esbarravam nas limitações de seu próprio
projeto (em um caso, filmando a busca por um tema; no outro, provocando-o
em conexões que o mundo não oferecia), O Céu
sobre os Ombros avança não só ao tematizar
essas próprias limitações, mas também
ao promover um encontro um tanto improvável entre o cinema
de modulações que vemos em Adeus ao Sul,
de Hou Hsiao-hsien, e Ossos, de Pedro Costa (filme aqui
muito evocado pela plasticidade pálida de seus tons, embora
eles sejam sensivelmente mais quentes do que a palheta de cinzas
do filme de Pedro Costa) com o ethos realizador de Eduardo
Coutinho: não há ser humano que se permita reduzir
aos limites de uma personagem. É justo, portanto, que as
personagens e o filme expressem isso, apontando sempre para fora,
esbarrando nos limites inventados do quadro, dos cortes e da duração
- por vezes com resultados um tanto frustrantes para um filme
de dramaturgia, especialmente claro na ausência de um final:
O Céu sobre os Ombros não acaba; pára.
Neste
encontro entre o controle e o descontrole, O Céu sobre
os Ombros faz diversas operações de re-significação
que destacam essa relação, seja por meio da montagem
ou do uso da música - especialmente forte quando salta da
diegese para a não-diegese, no plano em que Murari Krishna
anda de skate pelas ruas da cidade. Em um dos momentos mais bonitos
do filme, uma panorâmica por uma paisagem aos poucos a re-situa
como um papel de parede no serviço de atendimento onde trabalha
Murari Krishna, que vemos sentado frente ao falso parque. Em um
único plano, Sérgio Borges realiza o jogo de dentro/fora
que Tiago Mata Machado expõe como conceito em Os Residentes,
e que isso aconteça no contato com um cenário real
(e não construído para o filme) só reafirma
a força do procedimento.
Novembro de 2010
editoria@revistacinetica.com.br |