Estamos em uma situação parecida aos tempos em que,
conforme o relato de seu projetista particular, o Fuhrer
já não precisava assistir a mais filmes de ficção, bastava-se
com atualidades filmadas no front, neste filme grandioso
e macabro do qual era ele roteirista, diretor, protagonista,
ator e espectador, no seu estúdio particular chamado
Alemanha, ou o próprio mundo. É sabido que cada regimento
do exército alemão possuía sua companhia de propaganda,
cuja função era essa síntese entre ação militar, ação
cinematográfica e ação propagandística, permitindo que
fatos ocorridos no front distante se tornassem imediatamente
documentários jornalísticos, autênticos, na própria
velocidade da Blitz. Aspiração crescente à guerra
total, ao espetáculo total, cada vez mais grandioso,
cada vez mais capaz de rivalizar com Hollywood. Soubemos
durante a invasão do Iraque que o Exército americano
pediu ajuda a Hollywood para tornar o cenário do centro
de imprensa em Qatar mais atraente... Como disse Goebbels
em um discurso, já no fim da guerra: “Senhores, em cem
anos mostrarão o filme que descreverá os espantosos
dias em que vivemos atualmente. Não querem representar
um papel neste filme? Cada um tem a oportunidade de
escolher seu papel. Será um grande, belo e edificante
filme, e por isso vale a pena sermos firmes”. A tese
de Syberberg, que fez um filme único sobre o período,
é irrebatível: a Alemanha perdeu a guerra, mas Hitler
triunfou, ele que impôs ao século sua lógica diabólica,
que fez da política essa arte das massas, esta obra
de arte total. Hitler, o mais pretensioso dos cineastas.
É preciso vê-lo como cineasta, é preciso julgá-lo como
cineasta. A própria Alemanha como um filme de Hitler,
ou Hitler como um filme da Alemanha.
Mas os tempos
são outros. Já não são os do cinema, nem sequer exclusivamente
os da televisão, muito menos do Fuhrer. Então, para
apenas roçar o que está em jogo hoje, eu proporia um
salto, e vou tentar uma breve descrição um pouco mais
geral sobre os tempos presentes, proposta há poucos
anos atrás por Franco Berardi (Bifo) e, que, apesar
de algumas reticências que se possa ter com relação
a um ou outro aspecto, conserva plenamente sua atualidade
[1] .
Bifo lembra que já não se pode expressar
o conjunto dos processos em curso em termos de uma física
dos corpos sólidos, mas só em termos de uma psicoquímica
dos fluxos tecnoneuronais. A sociedade aparece como
uma imensa solução fluida na qual se difundem, se diluem,
se mesclam e se confundem substâncias psicoquímicas
de cores diferentes. Crenças, tradições, ilusões, fés,
ódios, desejos que provêm de vários estratos do inconsciente
antropológico. Fluxos midiáticos que provêm de várias
fontes do ciberespaço. Fluxos subculturais que provêm
dos vários níveis do imaginário planetário. E longe
de reduzir ou uniformizar o comportamento cultural,
a integração planetária produziu uma multiplicação de
refrações, esfumaçamentos, meio-tons que dependem dos
diversos graus de contaminação. É verdade que a economia
funciona como código semiótico transversal, capaz de
comandar a gama infinita da diferenciação. Mas ela não
unifica, não ajuda a encontrar um elemento universal
humano no caleidoscópio das diferenças, ao contrário,
inocula agressividade nas relações, rigidificações identitárias.
As conseqüências desse contexto, do ponto
de vista de uma suposta democracia, são imponderáveis.
As decisões globais dependem cada vez menos da opinião
e da vontade, e cada vez mais do dever cego e inevitável
dos fluxos psicoquímicos (hábitos, medos, ilusões, fanatismos)
que atravessam a mente social. O lugar de formação da
esfera pública se transferiu da dimensão do confronto
entre opiniões ideologicamente fundadas para o magma
do oceano neurotelemático, no qual as coisas se determinam
fragmentariamente, imprevisivelmente, por efeito de
tempestades psicomagnéticas e cada vez menos referidas
a esquemas políticos definidos. Claro que há divergência
de opiniões, cada um pode se expressar como quiser,
mas isso já não tem nenhuma importância, pois já nada
significa, não tem efeito algum. A proliferação ilimitada
das fontes de informação, por sua vez, não necessariamente
significa uma abertura democrática, talvez porque o
efeito-sociedade não se encontra mais na esfera do discurso,
mas na psicoquímica. Ali não temos discurso, mas imagens,
estratégias mais ou menos conscientes de persuasão subliminar.
Potência imensa do fluxo invasivo que emana do poder
infoesférico e abole a distinção entre esfera onírica
e esfera da vida cotidiana. A partir dos anos 70, sobretudo,
e do encontro entre política e publicidade, com a difusão
da televisão como eletrodoméstico viral omniinvasivo,
o destino coletivo se decide cada vez menos na esfera
da política democrática e, cada vez mais, na esfera
psicodélica das aparições de fantasmas inconscientes.
Assim, essa mutação não pode ser apreendida com as categorias
da democracia moderna ou representativa, com o reino
da opinião, das regras. Diante da decomposição da mente
moderna, resultante dessa mutação do ambiente em que
se forma essa mente, do adensamento da crosta infoesférica,
da expansão do ciberespaço, não cabem mais as modalidades
lógico-críticas. Assistimos à integração da mente no
processo de produção capitalista, à incorporação da
inteligência na lógica do capital. Assim, não há mais
sentido em falar da restauração das condições democráticas
da política, pois a formação livre de opinião, condição
necessária para o exercício do que nos acostumamos a
chamar de democracia, tende a diluir-se. Nas condições
da infoprodução, os fluxos psicoquímicos que agem sobre
a mente social adquirem tal intensidade e tal potência
invasiva, que os sinais pelos quais a mente é estimulada
não são mais julgáveis criticamente. Penetramos numa
zona de indistinção, de indecidibilidade. É o reino
do Neuromagma. Na espiral neuromagmática, a mente não
pode mais elaborar escolhas conscientes, nem exprimir
subjetividade coerente. Colocada nas condições de indecidibilidade,
o organismo consciente reage com pânico, depressão,
ou se reterritorializa na identidade.
Ora, o que se torna a política nesse contexto
que parece irreversível? Nessa paralisia da empatia
social e da afetividade? Os que pregam a participação
têm por vezes a impressão de apenas prolongar o exaurido
espetáculo da política do qual somos todos excluídos.
Só as forças cegas do Neuromagma estão em condições
de dominar a totalidade da sociedade, embora esse domínio
não tenha o caráter do governo político, da mediação
democrática – evoca muito mais a força do inevitável,
que hoje vai de par com o inevitável da força. Será
que só nos resta abandonar-nos à idéia de ser parte
de uma totalidade irreversível, irrecusável? Como se
subtrair à psicopatia que deriva da exposição ao Neuromagma?
Apesar dessa descrição catastrofista, Bifo
não é um pessimista. Segundo ele, uma estratégia evolutiva
nessa mutação pode nascer por uma via cismogenética:
separação mais ou menos consciente de células independentes.
Estratégia não de domínio, mas de adesão ao devir cósmico
e de separação no interior dele. A identidade, a responsabilidade,
a participação política, a pretensão a um governo da
totalidade são obsessões que impedem algo mais elementar,
uma espécie de criatividade caosmótica e recombinações
singulares, eventos libertários que uma célula independente
pode experimentar por si e propor como exemplo, como
contágio, fazendo rizoma sem precisar dominar. Seria
uma maneira de pensar alternativas no interior desse
caldo, onde se dissolveram os corpos compactos, como
classes, ideologias, todas essas figuras simplificadas
que já não agregam qualquer constelação de acontecimentos,
de ações, de projetos. O fato é que hoje, em vez do
sujeito, proliferam singularidades, e é a partir desse
dado que seria preciso repensar novas composições. Assim,
trata-se de cartografar esse Neuromagma seguindo um
método composicionista, neuro-composicionista, diz Bifo,
que consiste em seguir os fluxos que modelam a cognição
e o psiquismo social, fluxos tecno-midiáticos, fluxos
desejantes. Mais do que tentar prever o futuro, trata-se
de funcionar como um terminal esquizo que emite profecias
diversas conforme os fluxos que o atravessam e as redes
às quais está conectado, mas segundo um vetor de imaginação.
Nas condições muito concretas da experiência italiana
dos anos 70, Bifo realizou parcialmente essa consigna,
ao animar a radio livre Alice, que Félix Guattari considerou
como o início de um processo de proliferação dos agentes
enunciativos, destinados a fazer explodir o modelo massmidiático.
O movimento das rádios era uma espécie de antecipação
da tendência pós-midiática que o filósofo preconizava
e antevia. Guattari jamais concordou com a diabolização
das tecnologias da comunicação, e deu o suporte teórico
para um pensamento tecno-nômade, confiando no poder
de auto-organização molecular no interior dos fluxos
semióticos desterritorializados que o capitalismo libera,
nos vetores de ressingularização ali presentes, na criatividade
social e até numa civilização pós-midiática. Guattari
referia-se a uma época em que a mídia hegemônica perderia
sua centralidade e sua verticalidade, dando lugar a
processos de auto-organização tecnocomunicativa, numa
sensibilidade pós-midiática.
Pode-se reconhecer no que eu reportei sobre
Bifo várias fontes de inspiração, que vão de Deleuze
a Burroughs, de William Gibson a Pierre Levy. Podem
chamar o Neuromagma de Nooesfera, Cérebro Global, Inteligência
Coletiva, e dar a essa disciplina o nome que desejarem
– temos, de todo modo, um contexto novo do ponto de
vista das relações entre poder e subjetividade. Algumas
das idéias expostas, extraídas dos textos de Bifo, podem
parecer catastrofistas. Em todo caso, eu não as reportei
para necessariamente subscrevê-las, apenas para desenhar
com cores carregadas, às vezes beirando o tom mitopoético
do autor, um certo contexto no qual não podemos deixar
de reconhecer, minimamente, um pano de fundo de nossa
sensação de impotência atual, mas também das saídas
que vemos serem inventadas por toda parte, de maneira
proliferante.
Eu agora vou propor um outro salto, para
falar desse mesmo contexto, mas desde uma perspectiva
ampliada, o que nos permitiria, talvez, pensar mais
positivamente o avesso desse Neuromagma desde um ponto
de vista biopolítico. Não é preciso assustar-se com
essa terminologia, que ficará clara em poucas palavras.
Há dez anos atrás, inspirado em Foucault e em Burroughs,
Gilles Deleuze afirmava que já não estamos numa sociedade
disciplinar, onde as várias instituições que esquadrinhavam
o espaço social formatavam e disciplinavam o indivíduo,
desde a escola e o exército até o hospital e o manicômio.
A sociedade de controle, em contraste com a sociedade
disciplinar, no limite, prescinde das instituições.
Como dizem Negri e Hardt em seu livro Império,
o poder se exerce agora por máquinas que organizam diretamente
os cérebros e os corpos em direção a um estado de alienação
autônoma. Por exemplo, sistemas de comunicação, redes
de informação, não são máquinas impostas a nós, ou não
são apenas impostas, ao mesmo tempo são desejadas, reativadas
por cada um, de tal modo que é a partir daí, também,
que cada um aciona um sentido de vida e uma criatividade
próprias, no interior delas. Assim, a sociedade de controle
é uma intensificação e uma generalização dos aparelhos
normalizadores da disciplinariedade, que animam desde
o interior nossas práticas comuns e cotidianas. Mas,
ao contrário da disciplina, esse controle se estende
bem além dos lugares estruturados das instituições sociais.
É isso que eles chamam de democratização entre aspas,
ou seja, o poder não tem mais essa geografia vertical,
de imposição desde cima, desde fora, ele é incorporado
pelos sujeitos, reativado por eles, ele ganhou uma pregnância,
uma penetração, um entrelaçamento, uma flexibilização,
uma maleabilidade, uma imanência... No rastro de Foucault,
os autores reconhecem a natureza biopolítica desse novo
paradigma de poder. O que é biopolítica? Trata-se de
uma forma de poder que rege e regulamenta a vida
social desde dentro, seguindo-a, interpretando-a, assimilando-a
e a reformulando. O poder não pode obter um domínio
efetivo sobre a vida inteira da população a menos que
se torne uma função integrante e vital que cada indivíduo
abraça e reativa por sua própria conta e vontade. É
nesse sentido que a vida torna-se um objeto de poder,
não só na medida em que o poder tenta se encarregar
da vida na sua totalidade, penetrando-a de cabo a rabo
e em todas as suas esferas, desde a sua dimensão cognitiva,
psíquica, física, biológica e até genética, mas também
na medida em que isso é retomado por cada um. Então
é um poder que investe a vida de uma ponta a outra,
e a administra, e que cada um se incumbe de reativar
por conta própria. O que está em jogo no que Foucault
chamou de biopoder ou biopolítica, de qualquer modo,
é a produção e a reprodução da vida ela mesma. Não é
mais só o domínio sobre um território, embora possa
ser isso também, não é só o domínio sobre a produção
de riqueza, embora possa ser isso também, nem é só a
administração da reprodução da vida para garantir a
produção da riqueza, mas é a própria vida que é visada,
no seu processo de produzir e de reproduzir-se.
A sociedade disciplinar, que predominava
até algumas décadas atrás, não conseguia penetrar inteiramente
as consciências e os corpos dos indivíduos a ponto de
organizá-los na totalidade de suas atividades. A relação
entre poder e indivíduo era ainda extrínseca, estática
e, além disso, era compensada pela resistência do indivíduo.
Na sociedade de controle, o conjunto da vida social
é abraçado pelo poder e desenvolvido na sua virtualidade.
A sociedade é subsumida na sua integralidade, até os
centros vitais de sua estrutura social. Trata-se de
um controle que invade a profundidade das consciências
e dos corpos da população, atravessando a integralidade
das relações sociais e as integralizando. Sim, é a subsunção
da economia, da cultura, da inteligência, da afetividade,
em suma, do bios social a um poder que assim
engloba todos os elementos da vida social.
Mas é um domínio que produz algo muito
paradoxal, e nada linear, dizem os autores, pois, ao
invés de unificar tudo, cria um meio de pluralidade
e de singularização não domesticáveis. Tentemos dizer
isso de outro modo. A relação entre poder e subjetividade
muda de figura: ao mesmo tempo que o poder prescinde
das mediações anteriores (por exemplo institucionais,
substituindo-as pelas mediações técnicas, por exemplo:
colapso da escola, ascensão da informática, colapso
da fábrica, instituição de modalidades de produção mais
em rede, informais, flexíveis), ele dá margem a figuras
incontroláveis. Um exemplo é o do trabalho imaterial,
como a produção de imagens, de informação, esse trabalho
fundado sobretudo na força da inteligência e da comunicação,
que, portanto, leva a exploração ao âmago do intelecto
humano, explorando o que cada um tem de mais próprio,
sua criatividade, imaginação, afetividade, vitalidade.
Justamente por ser um trabalho sempre relacional, comunicacional,
de inteligência associada e coletiva, vai engendrando
figuras novas de subjetividade, de coletivização, de
associação, revoltas potenciais. Quer dizer, se hoje
assistimos a um poder sobre a vida, sobre o mais íntimo
da vida, e vemos sendo explorada a dimensão mais imaterial
das pessoas, sua força-intelecto, sua força-invenção,
sua “alma”, é precisamente nesse caldo biopolítico que
descrevíamos que se gestam novas modalidades de insubmissão,
de rede, de contágio, de inteligência coletiva.
Retenhamos por ora isto: o poder investe
a vida, o poder abarca a vida na sua extensão maior,
biopoder, biopolítica. Mas, ao mesmo tempo, nessa integralização,
hibridação, invasão, extensão, é como se se revelasse
o avesso disso, uma potência biopolítica, uma biopotência
inaudita capaz de ameaçar as estruturas de comando e
de dominação de uma sociedade de controle. Daí a tentação
dos autores de inverter o sentido pejorativo do biopoder
e da biopolítica, que se referia ao poder que incide
sobre a produção e reprodução da vida, e pensarem esse
contexto já não “desde cima”, a partir do olho do poder,
mas “desde baixo”, a partir do corpo vital coletivo
e de sua potência. Esse corpo biopolítico coletivo é
o que os autores, a partir de Espinosa, designaram por
multidão, é relação, é produção e reprodução, é estrutura
e superestrutura, é vida no sentido mais pleno e político
do termo. É para esse domínio que a análise deveria
dirigir-se, para a biopotência da Multidão, e Multidão
entendida não como massa compacta e homogênea, mas como
heterogeneidade plural, acentrada, como rede de mentes
e corpos, de inteligências e de afetações, de sensibilidades
e criatividade, de gestações e invenções. Os autores
acabam afirmando que o poder, e na sua modalidade contemporânea
ele se organizaria na forma do Império, não tem positividade
nenhuma, ele é apenas um vampiro que vive da vitalidade
da Multidão, até que ela tome posse de sua própria potência.
É a partir daí que eu proporia um terceiro
salto, depois de ter atravessado os efeitos do Neuromagma,
e de ter encontrado no seu avesso a biopotência da Multidão.
Num contexto biopolítico, neuromagmático, psicoquímico,
numa economia imaterial, num capitalismo ele mesmo conexionista
e rizomático, como foi chamado por Boltanski e Chiapello,
como pensar novas sociabilidades, novas modalidades
de conexão, de associação, de agenciamento, mas também
de dissociação, de deserção, de cisão, de dissenso,
de dissidência, de cismogênese, de heterogênese? Há
alguns anos atrás Deleuze evocava a figura do solitário
que, como Bartleby, ansiava por uma nova sociabilidade,
por uma nova comunidade. A comunidade que Bartleby reivindica
não é a comunidade de fusão, de unidade, de comunhão,
de totalização. É a comunidade ‘negativa’, como a chamou
Bataille, comunidade dos que não têm comunidade, dos
que não têm pertinência, dos que não têm identidade.
Essa comunidade é antes um jogo entre singulares do
que um aglomerado de iguais. E, no fundo desse jogo
de diferenças, há um fundo comum, que ninguém tem o
direito de representar ou de seqüestrar. Este comum
que pertence a todos, que está na origem dessas singularidades,
podemos chamá-lo de Caldo biopolítico, de General Intellect,
de Inteligência Coletiva, de Neuromagma, de Ilimitado,
de Vida, de Linguagem. Em todo caso, uma coisa é certa:
ele não pode ser privatizado, ele não pode ser propriedade
de ninguém, é como um patrimônio universal da humanidade.
Em seu livro intitulado
A comunidade que vem
[2] , Giorgio Agamben recorda que esse Comum
para Heráclito era o Logos, a linguagem. A expropriação
do Comum numa sociedade do espetáculo é a expropriação
da linguagem. Quando toda a linguagem é seqüestrada
por um regime democrático-espetacular e a linguagem
se autonomiza numa esfera separada, a da mídia hegemônica,
de modo tal que ela já não revela nada e ninguém se
enraíza nela, quando a comunicatividade, aquilo que
garantia o comum, fica exposta ao máximo e entrava a
própria comunicação, atingimos um ponto extremo do niilismo.
Como se desligar dessa comunicatividade totalitária
e vacuizada? Como desafiar aquelas instâncias que expropriaram
o comum e que o transcendentalizaram? Como criar vacúolos
de sentido, rupturas a-significantes?
Agamben evoca uma resistência vinda, não
como antes, de uma classe, um partido, um sindicato,
um grupo, uma minoria, mas de uma singularidade qualquer,
do qualquer um, como aquele que desafia um tanque na
Praça Tienanmen, que já não se define por sua pertinência
a uma identidade específica, seja de um grupo político
ou de um movimento social. É o que o Estado não pode
tolerar, a singularidade qualquer que não reivindica
uma identidade, que não faz valer um liame social, que
constitui uma multiplicidade inconstante, como diria
Cantor. Singularidades que declinam toda identidade
e toda condição de pertinência, mas manifestam seu ser
comum – é a condição, dizia Agamben há vários anos atrás,
de toda política futura. Também Deleuze, antes disso,
inspirado no pragmatismo americano, se referia à comunidade
dos celibatários, à comunidade do homem qualquer, às
singularidades que se cruzam, sem desembocarem no individualismo
nem no comunialismo.
Feito esse percurso
ziguezagueante, talvez me caiba apenas amarrar alguns
fios para deixá-los nas vossas mãos. Nesse contexto
global que eu tentei descrever, poderíamos perguntar:
como resistir? Nesse contexto neuromagmático ou biopolítico,
nessa economia imaterial, nesse capitalismo rizomático,
nessa sociedade de controle, nesse jogo entre singularidades
que constitui a multidão no seio do Império, o que significa
resistir? Será que essa palavra tem ainda algum sentido?
Se há algumas décadas a resistência obedecia a uma matriz
dialética, de oposição direta entre as forças em jogo,
onde havia um poder concebido como centro de comando
e que cabia a todos disputar, com a subjetividade identitária
dos protagonistas definida pela sua exterioridade recíproca
e complementaridade dialética (dominante/dominado, colonizador/colonizado,
explorador/ explorado, patrão/empregado, trabalhador
intelectual/manual, professor/aluno, pai/filho etc),
o contexto pós-moderno, dada sua complexidade, suscita
posicionamentos mais oblíquos, diagonais, híbridos,
flutuantes. Criam-se outros traçados de conflitualidade.
Talvez com isso a função da própria negatividade, na
política e na cultura, precise ser revista. Como diz
Negri: “Para a modernidade, a resistência [era] uma
acumulação de forças contra a exploração, que se subjetiva
através da ‘tomada de consciência’”. Na época pós-moderna,
nada disso acontece. A resistência se dá como a difusão
de comportamentos resistentes e singulares. Se ela se
acumula, ela o faz de maneira extensiva, isto é, pela
circulação, a mobilidade, a fuga, o êxodo, a deserção:
trata-se de multidões que resistem de maneira difusa
e escapam das gaiolas sempre mais estreitas da miséria
e do poder. Não há necessidade de tomada de consciência
coletiva para tanto: o sentido da rebelião é endêmico
e atravessa cada consciência, tornando-a orgulhosa.
O efeito do comum, que se atrelou a cada singularidade
enquanto qualidade antropológica, consiste precisamente
nisso. A rebelião não é, pois, pontual nem uniforme:
ela percorre ao contrário os espaços do comum e se difunde
sob a forma de uma explosão dos comportamentos das singularidades
que é impossível conter. É nisso que se pode definir
a resistência da multidão”
[3] .
Talvez as mídias táticas sejam um bom exemplo
dessa mutação na lógica da resistência no seio da multidão,
indo além das figuras clássicas da recusa e da negatividade.
Mas como elas funcionam no contexto das novas segmentações,
sobretudo num país como o Brasil, com sua herança histórica,
em que regimes diversos de exclusão e segmentação se
sobrepõem? É à luz dessa pergunta que eu termino minha
exposição, com a intuição de que diante dela vocês já
esboçaram respostas concretas e das mais instigantes,
forjando ou detectando novas modalidades de resistência,
de conexão, de comunidade, de agenciamento, de dissenso,
de embaralhamento, de apropriação e de escape...
Referências
bibliográficas
BERARDI, Franco (Bifo). Politiche della
Mutazione, Bolonha, A/Traverso, 1991, Mutazione
e cyberpunk, Genova, Costa & Nolan, 1994, Neuromagma,
Roma, Castelvecchi, 1995, La nefasta utopia di Potere
peraio, Roma, Castelvecchi, 1998, Felix,
Roma, Luca Sossela, 2001.
AGAMBEN, Giorgio. La communauté qui vient, Paris,
Seuil, 1990.
NEGRI, Toni. Kairòs, Alma Venus, multitude. Paris,
Calmann-Lévy, 2000.
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