Revista Cinética Cultura e Pensamento
Mutações contemporâneas
Peter Pál Pelbart Ensaios Críticos


Estamos em uma situação parecida aos tempos em que, conforme o relato de seu projetista particular, o Fuhrer já não precisava assistir a mais filmes de ficção, bastava-se com atualidades filmadas no front, neste filme grandioso e macabro do qual era ele roteirista, diretor, protagonista, ator e espectador, no seu estúdio particular chamado Alemanha, ou o próprio mundo. É sabido que cada regimento do exército alemão possuía sua companhia de propaganda, cuja função era essa síntese entre ação militar, ação cinematográfica e ação propagandística, permitindo que fatos ocorridos no front distante se tornassem imediatamente documentários jornalísticos, autênticos, na própria velocidade da Blitz.  Aspiração crescente à guerra total, ao espetáculo total, cada vez mais grandioso, cada vez mais capaz de rivalizar com Hollywood. Soubemos durante a invasão do Iraque que o Exército americano pediu ajuda a Hollywood para tornar o cenário do centro de imprensa em Qatar mais atraente... Como disse Goebbels em um discurso, já no fim da guerra: “Senhores, em cem anos mostrarão o filme que descreverá os espantosos dias em que vivemos atualmente. Não querem representar um papel neste filme? Cada um tem a oportunidade de escolher seu papel. Será um grande, belo e edificante filme, e por isso vale a pena sermos firmes”. A tese de Syberberg, que fez um filme único sobre o período, é irrebatível: a Alemanha perdeu a guerra, mas Hitler triunfou, ele que impôs ao século sua lógica diabólica, que fez da política essa arte das massas, esta obra de arte total. Hitler, o mais pretensioso dos cineastas. É preciso vê-lo como cineasta, é preciso julgá-lo como cineasta. A própria Alemanha como um filme de Hitler, ou Hitler como um filme da Alemanha.

Mas os tempos são outros. Já não são os do cinema, nem sequer exclusivamente os da televisão, muito menos do Fuhrer. Então, para apenas roçar o que está em jogo hoje, eu proporia um salto, e vou tentar uma breve descrição um pouco mais geral sobre os tempos presentes, proposta há poucos anos atrás por Franco Berardi (Bifo) e, que, apesar de algumas reticências que se possa ter com relação a um ou outro aspecto, conserva plenamente sua atualidade [1] .

Bifo lembra que já não se pode expressar o conjunto dos processos em curso em termos de uma física dos corpos sólidos, mas só em termos de uma psicoquímica dos fluxos tecnoneuronais. A sociedade aparece como uma imensa solução fluida na qual se difundem, se diluem, se mesclam e se confundem substâncias psicoquímicas de cores diferentes. Crenças, tradições, ilusões, fés, ódios, desejos que provêm de vários estratos do inconsciente antropológico. Fluxos midiáticos que provêm de várias fontes do ciberespaço. Fluxos subculturais que provêm dos vários níveis do imaginário planetário. E longe de reduzir ou uniformizar o comportamento cultural, a integração planetária produziu uma multiplicação de refrações, esfumaçamentos, meio-tons que dependem dos diversos graus de contaminação. É verdade que a economia funciona como código semiótico transversal, capaz de comandar a gama infinita da diferenciação. Mas ela não unifica, não ajuda a encontrar um elemento universal humano no caleidoscópio das diferenças, ao contrário, inocula agressividade nas relações, rigidificações identitárias.

As conseqüências desse contexto, do ponto de vista de uma suposta democracia, são imponderáveis. As decisões globais dependem cada vez menos da opinião e da vontade, e cada vez mais do dever cego e inevitável dos fluxos psicoquímicos (hábitos, medos, ilusões, fanatismos) que atravessam a mente social. O lugar de formação da esfera pública se transferiu da dimensão do confronto entre opiniões ideologicamente fundadas para o magma do oceano neurotelemático, no qual as coisas se determinam fragmentariamente, imprevisivelmente, por efeito de tempestades psicomagnéticas e cada vez menos referidas a esquemas políticos definidos. Claro que há divergência de opiniões, cada um pode se expressar como quiser, mas isso já não tem nenhuma importância, pois já nada significa, não tem efeito algum. A proliferação ilimitada das fontes de informação, por sua vez, não necessariamente significa uma abertura democrática, talvez porque o efeito-sociedade não se encontra mais na esfera do discurso, mas na psicoquímica. Ali não temos discurso, mas imagens, estratégias mais ou menos conscientes de persuasão subliminar. Potência imensa do fluxo invasivo que emana do poder infoesférico e abole a distinção entre esfera onírica e esfera da vida cotidiana. A partir dos anos 70, sobretudo, e do encontro entre política e publicidade, com a difusão da televisão como eletrodoméstico viral omniinvasivo, o destino coletivo se decide cada vez menos na esfera da política democrática e, cada vez mais, na esfera psicodélica das aparições de fantasmas inconscientes. Assim, essa mutação não pode ser apreendida com as categorias da democracia moderna ou representativa, com o reino da opinião, das regras. Diante da decomposição da mente moderna, resultante dessa mutação do ambiente em que se forma essa mente, do adensamento da crosta infoesférica, da expansão do ciberespaço, não cabem mais as modalidades lógico-críticas. Assistimos à integração da mente no processo de produção capitalista, à incorporação da inteligência na lógica do capital. Assim, não há mais sentido em falar da restauração das condições democráticas da política, pois a formação livre de opinião, condição necessária para o exercício do que nos acostumamos a chamar de democracia, tende a diluir-se. Nas condições da infoprodução, os fluxos psicoquímicos que agem sobre a mente social adquirem tal intensidade e tal potência invasiva, que os sinais pelos quais a mente é estimulada não são mais julgáveis criticamente. Penetramos numa zona de indistinção, de indecidibilidade. É o reino do Neuromagma. Na espiral neuromagmática, a mente não pode mais elaborar escolhas conscientes, nem exprimir subjetividade coerente. Colocada nas condições de indecidibilidade, o organismo consciente reage com pânico, depressão, ou se reterritorializa na identidade.

Ora, o que se torna a política nesse contexto que parece irreversível? Nessa paralisia da empatia social e da afetividade? Os que pregam a participação têm por vezes a impressão de apenas prolongar o exaurido espetáculo da política do qual somos todos excluídos. Só as forças cegas do Neuromagma estão em condições de dominar a totalidade da sociedade, embora esse domínio não tenha o caráter do governo político, da mediação democrática – evoca muito mais a força do inevitável, que hoje vai de par com o inevitável da força. Será que só nos resta abandonar-nos à idéia de ser parte de uma totalidade irreversível, irrecusável? Como se subtrair à psicopatia que deriva da exposição ao Neuromagma?

Apesar dessa descrição catastrofista, Bifo não é um pessimista. Segundo ele, uma estratégia evolutiva nessa mutação pode nascer por uma via cismogenética: separação mais ou menos consciente de células independentes. Estratégia não de domínio, mas de adesão ao devir cósmico e de separação no interior dele. A identidade, a responsabilidade, a participação política, a pretensão a um governo da totalidade são obsessões que impedem algo mais elementar, uma espécie de criatividade caosmótica e recombinações singulares, eventos libertários que uma célula independente pode experimentar por si e propor como exemplo, como contágio, fazendo rizoma sem precisar dominar. Seria uma maneira de pensar alternativas no interior desse caldo, onde se dissolveram os corpos compactos, como classes, ideologias, todas essas figuras simplificadas que já não agregam qualquer constelação de acontecimentos, de ações, de projetos. O fato é que hoje, em vez do sujeito, proliferam singularidades, e é a partir desse dado que seria preciso repensar novas composições. Assim, trata-se de cartografar esse Neuromagma seguindo um método composicionista, neuro-composicionista, diz Bifo, que consiste em seguir os fluxos que modelam a cognição e o psiquismo social, fluxos tecno-midiáticos, fluxos desejantes. Mais do que tentar prever o futuro, trata-se de funcionar como um terminal esquizo que emite profecias diversas conforme os fluxos que o atravessam e as redes às quais está conectado, mas segundo um vetor de imaginação. Nas condições muito concretas da experiência italiana dos anos 70, Bifo realizou parcialmente essa consigna, ao animar a radio livre Alice, que Félix Guattari considerou como o início de um processo de proliferação dos agentes enunciativos, destinados a fazer explodir o modelo massmidiático. O movimento das rádios era uma espécie de antecipação da tendência pós-midiática que o filósofo preconizava e antevia. Guattari jamais concordou com a diabolização das tecnologias da comunicação, e deu o suporte teórico para um pensamento tecno-nômade, confiando no poder de auto-organização molecular no interior dos fluxos semióticos desterritorializados que o capitalismo libera, nos vetores de ressingularização ali presentes, na criatividade social e até numa civilização pós-midiática. Guattari referia-se a uma época em que a mídia hegemônica perderia sua centralidade e sua verticalidade, dando lugar a processos de auto-organização tecnocomunicativa, numa sensibilidade pós-midiática.

Pode-se reconhecer no que eu reportei sobre Bifo várias fontes de inspiração, que vão de Deleuze a Burroughs, de William Gibson a Pierre Levy. Podem chamar o Neuromagma de Nooesfera, Cérebro Global, Inteligência Coletiva, e dar a essa disciplina o nome que desejarem – temos, de todo modo, um contexto novo do ponto de vista das relações entre poder e subjetividade. Algumas das idéias expostas, extraídas dos textos de Bifo, podem parecer catastrofistas. Em todo caso, eu não as reportei para necessariamente subscrevê-las, apenas para desenhar com cores carregadas, às vezes beirando o tom mitopoético do autor, um certo contexto no qual não podemos deixar de reconhecer, minimamente, um pano de fundo de nossa sensação de impotência atual, mas também das saídas que vemos serem inventadas por toda parte, de maneira proliferante.

Eu agora vou propor um outro salto, para falar desse mesmo contexto, mas desde uma perspectiva ampliada, o que nos permitiria, talvez, pensar mais positivamente o avesso desse Neuromagma desde um ponto de vista biopolítico. Não é preciso assustar-se com essa terminologia, que ficará clara em poucas palavras. Há dez anos atrás, inspirado em Foucault e em Burroughs, Gilles Deleuze afirmava que já não estamos numa sociedade disciplinar, onde as várias instituições que esquadrinhavam o espaço social formatavam e disciplinavam o indivíduo, desde a escola e o exército até o hospital e o manicômio. A sociedade de controle, em contraste com a sociedade disciplinar, no limite, prescinde das instituições. Como dizem Negri e Hardt em seu livro Império, o poder se exerce agora por máquinas que organizam diretamente os cérebros e os corpos em direção a um estado de alienação autônoma. Por exemplo, sistemas de comunicação, redes de informação, não são máquinas impostas a nós, ou não são apenas impostas, ao mesmo tempo são desejadas, reativadas por cada um, de tal modo que é a partir daí, também, que cada um aciona um sentido de vida e uma criatividade próprias, no interior delas. Assim, a sociedade de controle é uma intensificação e uma generalização dos aparelhos normalizadores da disciplinariedade, que animam desde o interior nossas práticas comuns e cotidianas. Mas, ao contrário da disciplina, esse controle se estende bem além dos lugares estruturados das instituições sociais. É isso que eles chamam de democratização entre aspas, ou seja, o poder não tem mais essa geografia vertical, de imposição desde cima, desde fora, ele é incorporado pelos sujeitos, reativado por eles, ele ganhou uma pregnância, uma penetração, um entrelaçamento, uma flexibilização, uma maleabilidade, uma imanência... No rastro de Foucault, os autores reconhecem a natureza biopolítica desse novo paradigma de poder. O que é biopolítica? Trata-se de uma forma de poder que rege e regulamenta a vida social desde dentro, seguindo-a, interpretando-a, assimilando-a e a reformulando. O poder não pode obter um domínio efetivo sobre a vida inteira da população a menos que se torne uma função integrante e vital que cada indivíduo abraça e reativa por sua própria conta e vontade. É nesse sentido que a vida torna-se um objeto de poder, não só na medida em que o poder tenta se encarregar da vida na sua totalidade, penetrando-a de cabo a rabo e em todas as suas esferas, desde a sua dimensão cognitiva, psíquica, física, biológica e até genética, mas também na medida em que isso é retomado por cada um. Então é um poder que investe a vida de uma ponta a outra, e a administra, e que cada um se incumbe de reativar por conta própria. O que está em jogo no que Foucault chamou de biopoder ou biopolítica, de qualquer modo, é a produção e a reprodução da vida ela mesma. Não é mais só o domínio sobre um território, embora possa ser isso também, não é só o domínio sobre a produção de riqueza, embora possa ser isso também, nem é só a administração da reprodução da vida para garantir a produção da riqueza, mas é a própria vida que é visada, no seu processo de produzir e de reproduzir-se.

A sociedade disciplinar, que predominava até algumas décadas atrás, não conseguia penetrar inteiramente as consciências e os corpos dos indivíduos a ponto de organizá-los na totalidade de suas atividades. A relação entre poder e indivíduo era ainda extrínseca, estática e, além disso, era compensada pela resistência do indivíduo. Na sociedade de controle, o conjunto da vida social é abraçado pelo poder e desenvolvido na sua virtualidade. A sociedade é subsumida na sua integralidade, até os centros vitais de sua estrutura social. Trata-se de um controle que invade a profundidade das consciências e dos corpos da população, atravessando a integralidade das relações sociais e as integralizando. Sim, é a subsunção da economia, da cultura, da inteligência, da afetividade, em suma, do bios social a um poder que assim engloba todos os elementos da vida social.

Mas é um domínio que produz algo muito paradoxal, e nada linear, dizem os autores, pois, ao invés de unificar tudo, cria um meio de pluralidade e de singularização não domesticáveis. Tentemos dizer isso de outro modo. A relação entre poder e subjetividade muda de figura: ao mesmo tempo que o poder prescinde das mediações anteriores (por exemplo institucionais, substituindo-as pelas mediações técnicas, por exemplo: colapso da escola, ascensão da informática, colapso da fábrica, instituição de modalidades de produção mais em rede, informais, flexíveis), ele dá margem a figuras incontroláveis. Um exemplo é o do trabalho imaterial, como a produção de imagens, de informação, esse trabalho fundado sobretudo na força da inteligência e da comunicação, que, portanto, leva a exploração ao âmago do intelecto humano, explorando o que cada um tem de mais próprio, sua criatividade, imaginação, afetividade, vitalidade. Justamente por ser um trabalho sempre relacional, comunicacional, de inteligência associada e coletiva, vai engendrando figuras novas de subjetividade, de coletivização, de associação, revoltas potenciais. Quer dizer, se hoje assistimos a um poder sobre a vida, sobre o mais íntimo da vida, e vemos sendo explorada a dimensão mais imaterial das pessoas, sua força-intelecto, sua força-invenção, sua “alma”, é precisamente nesse caldo biopolítico que descrevíamos que se gestam novas modalidades de insubmissão, de rede, de contágio, de inteligência coletiva.

Retenhamos por ora isto: o poder investe a vida, o poder abarca a vida na sua extensão maior, biopoder, biopolítica. Mas, ao mesmo tempo, nessa integralização, hibridação, invasão, extensão, é como se se revelasse o avesso disso, uma potência biopolítica, uma biopotência inaudita capaz de ameaçar as estruturas de comando e de dominação de uma sociedade de controle. Daí a tentação dos autores de inverter o sentido pejorativo do biopoder e da biopolítica, que se referia ao poder que incide sobre a produção e reprodução da vida, e pensarem esse contexto já não “desde cima”, a partir do olho do poder, mas “desde baixo”, a partir do corpo vital coletivo e de sua potência. Esse corpo biopolítico coletivo é o que os autores, a partir de Espinosa, designaram por multidão, é relação, é produção e reprodução, é estrutura e superestrutura, é vida no sentido mais pleno e político do termo. É para esse domínio que a análise deveria dirigir-se, para a biopotência da Multidão, e Multidão entendida não como massa compacta e homogênea, mas como heterogeneidade plural, acentrada, como rede de mentes e corpos, de inteligências e de afetações, de sensibilidades e criatividade, de gestações e invenções. Os autores acabam afirmando que o poder, e na sua modalidade contemporânea ele se organizaria na forma do Império, não tem positividade nenhuma, ele é apenas um vampiro que vive da vitalidade da Multidão, até que ela tome posse de sua própria potência.

É a partir daí que eu proporia um terceiro salto, depois de ter atravessado os efeitos do Neuromagma, e de ter encontrado no seu avesso a biopotência da Multidão. Num contexto biopolítico, neuromagmático, psicoquímico, numa economia imaterial, num capitalismo ele mesmo conexionista e rizomático, como foi chamado por Boltanski e Chiapello, como pensar novas sociabilidades, novas modalidades de conexão, de associação, de agenciamento, mas também de dissociação, de deserção, de cisão, de dissenso, de dissidência, de cismogênese, de heterogênese? Há alguns anos atrás Deleuze evocava a figura do solitário que, como Bartleby, ansiava por uma nova sociabilidade, por uma nova comunidade. A comunidade que Bartleby reivindica não é a comunidade de fusão, de unidade, de comunhão, de totalização. É a comunidade ‘negativa’, como a chamou Bataille, comunidade dos que não têm comunidade, dos que não têm pertinência, dos que não têm identidade. Essa comunidade é antes um jogo entre singulares do que um aglomerado de iguais. E, no fundo desse jogo de diferenças, há um fundo comum, que ninguém tem o direito de representar ou de seqüestrar. Este comum que pertence a todos, que está na origem dessas singularidades, podemos chamá-lo de Caldo biopolítico, de General Intellect, de Inteligência Coletiva, de Neuromagma, de Ilimitado, de Vida, de Linguagem. Em todo caso, uma coisa é certa: ele não pode ser privatizado, ele não pode ser propriedade de ninguém, é como um patrimônio universal da humanidade. 

Em seu livro intitulado A comunidade que vem [2] , Giorgio Agamben recorda que esse Comum para Heráclito era o Logos, a linguagem. A expropriação do Comum numa sociedade do espetáculo é a expropriação da linguagem. Quando toda a linguagem é seqüestrada por um regime democrático-espetacular e a linguagem se autonomiza numa esfera separada, a da mídia hegemônica, de modo tal que ela já não revela nada e ninguém se enraíza nela, quando a comunicatividade, aquilo que garantia o comum, fica exposta ao máximo e entrava a própria comunicação, atingimos um ponto extremo do niilismo. Como se desligar dessa comunicatividade totalitária e vacuizada? Como desafiar aquelas instâncias que expropriaram o comum e que o transcendentalizaram? Como criar vacúolos de sentido, rupturas a-significantes?

Agamben evoca uma resistência vinda, não como antes, de uma classe, um partido, um sindicato, um grupo, uma minoria, mas de uma singularidade qualquer, do qualquer um, como aquele que desafia um tanque na Praça Tienanmen, que já não se define por sua pertinência a uma identidade específica, seja de um grupo político ou de um movimento social. É o que o Estado não pode tolerar, a singularidade qualquer que não reivindica uma identidade, que não faz valer um liame social, que constitui uma multiplicidade inconstante, como diria Cantor. Singularidades que declinam toda identidade e toda condição de pertinência, mas manifestam seu ser comum – é a condição, dizia Agamben há vários anos atrás, de toda política futura. Também Deleuze, antes disso, inspirado no pragmatismo americano, se referia à comunidade dos celibatários, à comunidade do homem qualquer, às singularidades que se cruzam, sem desembocarem no individualismo nem no comunialismo.

Feito esse percurso ziguezagueante, talvez me caiba apenas amarrar alguns fios para deixá-los nas vossas mãos. Nesse contexto global que eu tentei descrever, poderíamos perguntar: como resistir? Nesse contexto neuromagmático ou biopolítico, nessa economia imaterial, nesse capitalismo rizomático, nessa sociedade de controle, nesse jogo entre singularidades que constitui a multidão no seio do Império, o que significa resistir? Será que essa palavra tem ainda algum sentido? Se há algumas décadas a resistência obedecia a uma matriz dialética, de oposição direta entre as forças em jogo, onde havia um poder concebido como centro de comando e que cabia a todos disputar, com a subjetividade identitária dos protagonistas definida pela sua exterioridade recíproca e complementaridade dialética (dominante/dominado, colonizador/colonizado, explorador/ explorado, patrão/empregado, trabalhador intelectual/manual, professor/aluno, pai/filho etc), o contexto pós-moderno, dada sua complexidade, suscita posicionamentos mais oblíquos, diagonais, híbridos, flutuantes. Criam-se outros traçados de conflitualidade. Talvez com isso a função da própria negatividade, na política e na cultura, precise ser revista. Como diz Negri: “Para a modernidade, a resistência [era] uma acumulação de forças contra a exploração, que se subjetiva através da ‘tomada de consciência’”. Na época pós-moderna, nada disso acontece. A resistência se dá como a difusão de comportamentos resistentes e singulares. Se ela se acumula, ela o faz de maneira extensiva, isto é, pela circulação, a mobilidade, a fuga, o êxodo, a deserção: trata-se de multidões que resistem de maneira difusa e escapam das gaiolas sempre mais estreitas da miséria e do poder. Não há necessidade de tomada de consciência coletiva para tanto: o sentido da rebelião é endêmico e atravessa cada consciência, tornando-a orgulhosa. O efeito do comum, que se atrelou a cada singularidade enquanto qualidade antropológica, consiste precisamente nisso. A rebelião não é, pois, pontual nem uniforme: ela percorre ao contrário os espaços do comum e se difunde sob a forma de uma explosão dos comportamentos das singularidades que é impossível conter. É nisso que se pode definir a resistência da multidão” [3] .

Talvez as mídias táticas sejam um bom exemplo dessa mutação na lógica da resistência no seio da multidão, indo além das figuras clássicas da recusa e da negatividade. Mas como elas funcionam no contexto das novas segmentações, sobretudo num país como o Brasil, com sua herança histórica, em que regimes diversos de exclusão e segmentação se sobrepõem? É à luz dessa pergunta que eu termino minha exposição, com a intuição de que diante dela vocês já esboçaram respostas concretas e das mais instigantes, forjando ou detectando novas modalidades de resistência, de conexão, de comunidade, de agenciamento, de dissenso, de embaralhamento, de apropriação e de escape...

Referências bibliográficas

BERARDI, Franco (Bifo). Politiche della Mutazione, Bolonha, A/Traverso, 1991, Mutazione e cyberpunk, Genova, Costa & Nolan, 1994, Neuromagma, Roma, Castelvecchi, 1995, La nefasta utopia di Potere peraio, Roma, Castelvecchi, 1998, Felix, Roma, Luca Sossela, 2001.
AGAMBEN, Giorgio. La communauté qui vient, Paris, Seuil, 1990.
NEGRI, Toni. Kairòs, Alma Venus, multitude. Paris, Calmann-Lévy, 2000.



[1] BERARDI, Franco (Bifo). Politiche della Mutazione, Bolonha, A/Traverso, 1991, Mutazione e cyberpunk, Genova, Costa & Nolan, 1994, Neuromagma, Roma, Castelvecchi, 1995, La nefasta utopia di Potere peraio, Roma, Castelvecchi, 1998, Felix, Roma, Luca Sossela, 2001.

[2] AGAMBEN, Giorgio. La communauté qui vient, Paris, Seuil, 1990

[3] NEGRI, Toni. Kairòs, Alma Venus, multitude. Paris, Calmann-Lévy, 2000.

Peter Pál Pelbart é filósofo e ensaísta. Graduou-se em Filosofia pela Université de Paris IV, Sorbonne. É mestre em Filosofia (PUC-SP) e doutor em Filosofia (USP). Atualmente é professor titular da PUC-SP. Publicou entre outros livros O Tempo não-reconciliado, A vertigem por um fio e Vida Capital – ensaios de biopolítica. Traduziu diversas obras de Gilles Deleuze. É coordenador da Cia Teatral Ueinzz.