Experiência e mediatização
Ao abordar a fotografia documental - aquela
animada por um pathos do real -, Susan Sontag
refere-se a How the other half lives (livro de
Jacob Riis publicado em 1890) como emblema da insuficiência
das imagens, enquanto documento social, no seu intento
de dar conta da experiência do Outro, neste caso, a
outra metade oposta à classe do fotógrafo, a dos pobres
de New York. À maneira de um flâneur da classe média,
na posse da “mais delicada de todas as atividades predatórias”,
o fotógrafo extrai da realidade dos outros um conjunto
de “lascas fortuitas do mundo”, que fornecem a ilusão
de que o mundo é mais facilmente acessível por meio
da imagem. [1] Se, ao longo tanto da história da fotografia
quanto do cinema, o gesto documental recorreu a diversos
recursos críticos para se distanciar desse humanismo
típico da classe média - ao mesmo tempo tolerante e
indiferente -, o tema ressurge atualmente em novos cenários
e os cortiços convivem com todo tipo de espaço nos quais
os pobres são encerrados em guetos, imobilizados, presos
ao chão, enquanto a outra metade, livre de amarras espaciais,
viaja e faz compras, passeia pelos shoppings e se hospeda
nos hotéis do mundo.
[2]
Aquelas duas metades a que se referia Sontag
assumiram hoje novas figuras, agora distribuídas em
dois pares, tal como descreve Zygmunt Bauman: uma, a
dos bem-sucedidos, a elite extraterritorial e triunfante
na época do capitalismo avançado de consumo, livre de
amarras identitárias e políticas (locais ou nacionais);
a outra, integrada pelos que foram empurrados para o
gueto ou para as prisões, imobilizados e confinados.
Enquanto a elite global viaja e atravessa o planeta,
os moradores dos guetos permanecem aprisionados ao estigma
territorial que se cola à sua identidade
[3] . O outro par de oposições, análogo a esse,
põe de um lado os turistas e, de outro, os vagabundos.
Os primeiros viajam numa bolha que os protege das manifestações
com que se deparam ao longo de suas escalas neste ou
naquele lugar; os segundos, desprovidos de escolha,
prestam os mais variados serviços aos viajantes, que
realizam uma experiência volátil, desprovida de marcas
temporais, governada pela pura mobilidade. Turistas
e vagabundos são metáforas que exprimem, em um espelhamento
perverso, as formas contemporâneas da experiência, resume
Bauman:
o vagabundo é o alter ego do turista – exatamente
como o miserável é o alter ego do rico, o selvagem
o alter ego do civilizado, ou o estrangeiro
o alter ego do nativo. Ser um alter ego
significa servir como um depósito de entulho dentro
do qual todas as premonições inefáveis, os medos inexpressos,
as culpas e as autocensuras secretas, demasiadamente
terríveis para serem lembrados, se despejam: ser um
alter ego significa servir como pública exposição
do mais íntimo privado, como um demônio interior a
ser publicamente exorcizado, uma efígie em que tudo
o que não pode ser suprimido pode ser queimado.
[4]
Ao identificar essas duas figuras principais
da experiência em nossos dias, Bauman desenha novos
modos teóricos de compreendê-la, distintos daqueles
legados pela sociologia e pela filosofia modernas. Para
ele, a experiência não é nem “o vazio que espera ser
preenchido com o significado, nem o plasma informe a
que profissionais devem dar configuração”.
[5] Pelo contrário, ela é interpretada e compreendida
pelos que são dela impregnados. O autor procura também
descrever a estrutura adquirida pela experiência na
vida dos homens e mulheres pós-modernos, concebida como
um jogo orientado pela não-fixidez (dos espaços, das
relações, dos valores) e pela temporalidade fugidia:
Não controlar o futuro, mas se recusar a empenhá-lo:
tomar cuidado para que as conseqüências do jogo não
sobrevivam ao próprio jogo e para renunciar à responsabilidade
pelo que produzam tais conseqüências. Proibir o passado
de se relacionar com o presente. Em suma, cortar o
presente nas duas extremidades, separar o presente
da história. Abolir o tempo em qualquer outra forma
que não a de ajuntamento solto, ou de uma seqüência
arbitrária, de momentos presentes: aplanar o fluxo
do tempo num presente contínuo. [6]
Se Bauman aborda criticamente essa “destemporalização
do espaço social”, Thomas Friedman (autor do best-seller
O mundo é plano) descobre motivos para celebrá-la
em nome das modificações trazidas pela globalização,
louvando o fato de o capitalismo atual ter nivelado
o mundo à maneira de um mercado que se expande livremente
pela força do capital e das tecnologias da informação
- que romperam barreiras de todo tipo - e, com isso,
permitiram uma competição mais igualitária entre países
e empresas. [7] Contudo, como outros autores bem lembraram,
aplanar também é sinônimo de esmagar - pessoas e alternativas
- e nivelar diferenças as mais diversas (e não apenas
aquelas que põem os competidores em desvantagem).
[8] Esse aplainamento do mundo não deixa de
assombrar algumas caracterizações (mais sofisticadas
conceitualmente e imbuídas de propósitos críticos) das
mudanças trazidas pelas tecnologias que operam em “tempo
real”. É este o caso de certos modelos explicativos
voltados para a compreensão da cibercultura: uns atribuem
à globalização o impulso para a transformação da existência
em tempo real como "processo comunicacional genérico"
da sociedade mediática avançada, à maneira do fato social
total concebido por Marcel Mauss; outros descrevem a
exacerbação dos poderes da sociedade do espetáculo,
agora ultrapassada pelo hiper-espetáculo. Referimo-nos,
de passagem, a duas formulações recentes no âmbito das
pesquisas em
comunicação. A primeira, de Eugênio
Trivinho (“Cibercultura e existência em tempo real”);
a segunda, de Juremir Machado (“Depois do espetáculo”).
O primeiro, radicalizando as proposições de Paul Virilio,
não hesita em afirmar que todo o “mundo da vida” (na
acepção habermasiana) e a experiência temporal que lhe
é correspondente foram inteiramente reescalonados e
transformados na civilização mediática, por força da
criação de um modo de existência na velocidade da luz,
hoje predominante. O segundo, por meio de aforismos
inspirados em Baudrillard, glosa a tese 4 de Guy Debord
(O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma
relação social mediada por imagens), para fazer
de nossa época um universo de imagens auto-referentes,
ensimesmadas, impermeáveis ao acontecimento e à diferença.
[9]
O que questionamos não é somente o alcance
explicativo desses modelos teóricos, mas também a maneira
excessivamente genérica com que concebem as implicações
entre a variada produção simbólica das diferentes mídias
– analógicas e digitais – e a experiência dos sujeitos....
Às formulações de Trivinho e Machado, preferimos as
de José Luiz Braga, ao descrever a mediatização como
processo interacional de referência que oferece “padrões
para ‘ver as coisas’, para ‘articular pessoas’ e, mais
ainda, relacionar subuniversos na sociedade e - por
isso mesmo - modos de fazer as coisas através
das interações que propiciam”. [10] Para o autor, se a mediatização se impõe
atualmente como modelo hegemônico, a ponto de tornar-se
referência principal para a construção da realidade
social, ela, no entanto, não anula a diversidade de
outros processos interacionais (como o da oralidade
e o da escrita, por exemplo) nem é guiada por um determinismo
tecnológico que colonizaria inelutavelmente o mundo
da vida. Mediatização, nesse sentido, não significa
“hegemonia das mídias” (enquanto mundo sistêmico), enfatiza
Braga, mas uma dinâmica tensa, lacunar, incompleta,
permeável ao conflito e ao rearranjo dos diversos subuniversos
da vida social:
Com a mediatização – enquanto processo de progressiva
relevância para a interação social – novas repartições
de pertinência vão se construindo. Que coisas cabem
em que lugares? O que pode e o que não pode ser dito?
Que modos, que processos devem ser preferenciais?
Há um vasto campo de "reconstrução de processos"
e de redistribuições inusitadas, em relação aos padrões
habituais. [11]
Embora Braga não desconsidere o fato de
que - em seus próprios termos - os “interesses econômicos
capitalistas tenderão sempre a subsumir os processos
sociais às formas mais favoráveis à industrialização
(ao modo de produção)”
[12] , queremos problematizar o que está em
jogo nos rearranjos provocados por essa mediatização
e que atingem, em particular, um determinado subuniverso
da vida social: o das relações entre as formas da experiência
que o cinema documentário retrata e a própria experiência
que ele fornece aos seus espectadores. Para tanto, concebemos
que o processo de mediatização não é senão uma forma
social e historicamente determinada de mediação simbólica,
isto é, daquele “terceiro simbolizante” que garante
o acesso dos sujeitos sociais ao real, permitindo-lhes
a construção de sua identidade, fornecendo-lhes meios
de pensar e de agir como seres históricos.
[13] Vários elementos compõem esse “terceiro
simbolizante”: estruturas cognitivas, quadros normativos,
marcas de discriminação e critérios de avaliação, modos
de apreensão do tempo, regras de escolha, modos de representação
e esquemas de ação; jogos de papéis e de categorias
da prática, afirmações consideradas verdadeiras e normas
tidas por justas, crenças e figurações.
[14]
Segundo Quéré, as sociedades criam diferentes
regimes de regulação simbólica. Em nossos dias, a ideologia
do consumo e o funcionamento da mídia criaram uma modalidade
de objetivação da mediação simbólica apoiada em três
suportes: a) os meios técnicos próprios do campo audiovisual;
b) as estratégias guiadas pela escolha racional e pelo
saber analítico, que assegura o cálculo e a previsibilidade;
c) as diferentes tecnologias. Nas sociedades em que
o processo de mediatização das interações tornou-se
hegemônico, o real se põe a tagarelar (de acordo com
a expressão de Michel de Certeau) graças à disseminação
das narrativas e imagens produzidas pelas diferentes
mídias. [15] É em meio a essa tagarelice interminável
das mídias (que a seu modo instituem narrativamente
o nosso acesso ao real) - e às vezes em confronto direto
com ela - que certos filmes documentários tem procura
do compreender as formas contemporâneas da nossa experiência
do mundo.
Um cinema engajado na incerteza do mundo
Diante da impossibilidade de recolher todas
as manifestações particulares daquilo que chamamos de
experiência na contemporaneidade, optamos por circunscrevê-la
inicialmente sob a perspectiva de autores como Zygmunt
Bauman e Anthony Giddens, ambos envolvidos na busca
de modelos explicativos para dar conta da emergência
de uma sociedade pós-tradicional ou global. De maneira
sucinta, essa sociedade é marcada por duas grandes correntes
de transformação, tal como define Giddens:
Por um lado, há a difusão extensiva das instituições
modernas, universalizadas por meio do processo de
globalização. Por outro lado, mais imediatamente relacionados
com a primeira, estão os processos de mudança intencional,
que podem ser conectados à radicalização da modernidade.
Estes são processos de abandono, desincorporação e
problematização da tradição. [16]
Bauman, por sua vez, define nossa época
como dominada por uma condição permanente e irredutível
de incerteza, em razão dos seguintes fatores: a) a nova
desordem do mundo, com seu rearranjo dos blocos de poder
(os vinte países mais ricos enfrentam o resto do mundo,
dele dependentes de alguma forma); a desregulamentação
universal estabelecida pela prioridade irrestrita dada
à competição de mercado; c) a desintegração das redes
de segurança até então oferecidas pela vizinhança e
pela família; d) o mundo material e social é tomado
inteiramente pela indeterminação e maleabilidade, destituído
de toda permanência, solidez, confiança, duração. [17]
Em certos documentários contemporâneos,
esse novo estado do mundo (que pode ser descrito fenomenologicamente
de muitas maneiras) emerge como componente intrínseco
à escritura do filme, e não apenas como tema (tal como
encontramos em muitas produções televisivas destinadas
a mostrar as conseqüências humanas da globalização -
para lembrar, justamente, o título de um dos livros
de Bauman). Há documentários que, ao redescobrirem,
por meio da invenção de recursos expressivos próprios,
as temporalidades complexas que ainda povoam o espaço
social, dão a ver - com um outro rosto e outros gestos
- as formas de vida daquela “outra metade” de que nos
falam Sontag e Bauman. Mais de cem anos depois da iniciativa
de Jacob Riis, essa outra metade da cidade de New York
reaparece em Lost book found (1996), de Jem Cohen,
mas agora, ao filmar esses personagens anônimos que
perambulam pelo espaço urbano, à margem da sociedade
e invisíveis aos olhos de muitos, o flâneur-documentarista,
tomado por uma melancolia benjaminiana, se põe a ruminar
e a descobrir as camadas de história que o presente
guarda, bem como as múltiplas narrativas que ele abriga,
fragmentadas, dispersas, mas que dão conta, de algum
modo, da experiência daqueles que habitam esse lugar. [18] Assim fazendo, o documentário mostra
que essa outra metade habita não apenas o outro lado
da nossa casa [19] ou da nossa cidade, mas os quatro cantos
do mundo, assumindo uma multiplicidade infindável de
rostos: o dos vagabundos, párias, migrantes, sans
papier, os estranhos da era do consumo; enfim, toda
uma nova categoria de sujeitos políticos distribuída
ao redor do planeta, apanhados em meio às suas atividades
cotidianas, na espessura de sua experiência, e que podem
ser tomados como os novos refugiados de nosso tempo,
como reivindica Agamben, inspirado em Hannah Arendt. [20] Ao lembrar que “povo”
designa tanto o sujeito de uma classe política quanto
os que são excluídos da política (os pobres, os deserdados),
Agamben ressalta que a miséria e a exclusão não são
apenas conceitos econômicos ou sociais, mas categorias
eminentemente políticas, no contexto do modelo biopolítico
do poder. [21]
Em contraposição ao espaçamento estético,
oferecido pelas cidades aos turistas e pelas telecidades
aos espectadores - que fazem dos estranhos da era do
consumo um objeto de uma satisfação estética -, a experiência
que o documentário nos proporciona não deve nos transformar
em turistas na realidade dos outros. Se no espaço estético
criado pela telecidade os outros aparecem somente como
objeto de um gozo (vigiado e controlado), “sem que nenhum
laço os prenda (podem ser eliminados da tela - e assim
lançados para fora do mundo - quando pararem de divertir”
[22] ), o documentário, ao contrário, assume
que as representações por ele criadas passam sempre
por um Outro diante do qual não nos posicionamos como
Mestres, tal como afirma Comolli:
À sua maneira modesta, o cinema documentário, ao
ceder espaço ao real, que o provoca e o habita, só
pode se construir em fricção com o mundo, isto é,
ele precisa reconhecer o inevitável dos constrangimentos
e das ordens, levar em consideração (ainda que para
os combater) os poderes e as mentiras, aceitar, enfim,
ser parte interessada nas regras do jogo social. Servidão,
privilégios. Um cinema engajado, diria eu, engajado
no mundo. [23]
Enquanto a televisão anseia por trazer
o mundo até nós, no documentário é o próprio mundo,
o dos outros - e o nosso passando pelo dos outros -,
que nos interpela. Sabemos bem o quanto, todos os dias,
as televisões e os jornais, sob o regime da informação,
se apressam em fazer o diagnóstico (descartado na manhã
seguinte) do estado do mundo. Como efeito, como nota
Comolli, uma das linhas de força do processo de mediatização
concerne ao combate que se trava entre tudo aquilo que
permanece ligado à representação (como as políticas
de relação entre os cidadãos, via delegação do poder)
e os interesses que regem a produção e a circulação
da informação-mercadoria, bem como a redução do sujeito
à figura do consumidor:
As forças do mercado forçam indiscutivelmente a sair
do sistema da representação - aceleração do tempo
de circulação da informação e da mercadoria; aceleração
do consumo, da rotação dos estoques; renúncia à experiência
(isso toma tempo) e à transmissão iniciática por meio
da experiência do sujeito, em favor de uma transmissão
abstrata, não encarnada, imediata. Essa saída da representação
afeta todas as cenas - da cena política à cena cinematográfica.
Pela primeira vez na história, a cena do espetáculo
(teatro/cinema) é afetada tanto quanto a cena política.
[24]
Para o cineasta e teórico do cinema, a
interatividade hoje presente no entretenimento e no
regime da informação não é senão uma paródia sinistra
da tomada de consciência e do engajamento do cidadão,
ou da implicação imaginária do espectador no filme.
De maneira análoga às técnicas de sondagem de opinião,
esses recursos buscam um sujeito enfraquecido, debilitado,
pronto a reagir - somente! - frente a um conjunto de
alternativas programadas. Entretanto, ainda assim, algo
do lado das relações intersubjetivas resiste. Algo ainda
passa pelo outro, por um terceiro - espelho, ator, fábula,
narrativa, espetáculo, imagem -, à maneira de uma cena
ou tela, na qual são expostas as representações e diante
das quais o sujeito - cidadão e espectador - faz seu
trabalho, se engajando numa relação aberta, transformável
e transformadora, nela empenhando seu julgamento crítico
e sua imaginação. Enquanto as mercadorias desejam, indiferentemente,
qualquer consumidor, o filme exige que cada espectador
se engaje com sua subjetividade, que ele se arrisque,
que não permaneça indiferente. A cena, lugar de passagem
pelo corpo do outro, convoca o desejo, mas também a
oscilação entre a dúvida e a crença: crer sem deixar
de duvidar, duvidar sem deixar de crer, esta é a fórmula
que orienta o desejo de ver. [25]
Assim é que, na contra-corrente daquelas
formulações que atribuem um poder onívoro à vinculação
inextrincável entre as lógicas sistêmicas mediáticas
(impulsionadas pelas tecnologias digitais) e a configuração
atual da economia capitalista, como se a existência
em tempo real ou o hiper-espetáculo fossem capazes de
a tudo engolir, colonizando inteiramente as regiões
e os aspectos da experiência em geral, parte significativa
da experiência particular que o cinema tem dado a ver,
e tem proporcionado ao espectador desde o final do séc.
XIX, testemunha exatamente o contrário. [26]
O cinema, que permitiu aos seres o acesso
à esfera do espetáculo, pode também enfrentá-lo ao engajar
os espectadores em uma prática e não simplesmente em
transformá-los em sujeitos do espetáculo. Dono do poder
de mostrar, o cinema - ao contrário da televisão - dispõe
da chance de “tornar perceptíveis seus próprios limites,
de designar o não-visível como condição e sentido do
visível, de se opor, dessa maneira, ao postulado de
uma visibilidade generalizada”. [27] É exatamente porque pode mostrar os limites
do poder de ver que o cinema, na contramão do
espetáculo, a ele opõe uma resistência do interior mesmo
das suas estratégias.
Para contrariar tanto o otimismo mercadológico
de Friedman (e dos eufóricos sacerdotes da globalização)
quanto as teses daqueles que tomam a cibercultura como
o vetor dominante de nosso tempo, é preciso lembrar,
por exemplo, que a China, alçada ao topo da experimentos
chamados de glocalização, por acolher diversas
fábricas de outros países que para lá se deslocaram,
abriga também experiências que não foram aplainadas,
inscritas em outra temporalidade que não aquela das
transmissões instantâneas da informação ou da existência
em tempo real. Em L'ouest des rails (2003) -
filme de nove horas e meia -, o cineasta Wang Bing mostrou
a dissolução do parque industrial da região de Tie Xi
(gigantesco conjunto de fábricas arruinadas), na cidade
de Shenyang, ao filmar os lugares e as pessoas em travellings
intermináveis, perseguindo aquela utopia cinematográfica
buscada por André Bazin (obter a impressão do tempo
que escoa), feita da modelagem da duração e dos acontecimentos
do mundo, como bem sublinhou Dominique Paini.
[28] Para dar conta daquilo que desaparece
sem deixar rastros, é preciso, sobretudo, duração: é
por isso que o filme acompanha pacientemente a mis
en scène dos trabalhadores que ainda restam nessas
fábricas, enquadrando, sem imobilizar, os seus gestos
e conversas cotidianas, filmando o próprio fluir da
experiência em atos e falas.
De modo parecido, Chantal Akerman, em Dans
l'autre coté (2002), ao acompanhar os mexicanos
que buscam atravessar ilegalmente a fronteira com os
Estados Unidos, compõe diversos planos imóveis para
que possamos escutar e apreender as narrativas da desaparição
(daqueles que perderam amigos e parentes que tentavam
a travessia) ou simplesmente seguir a movimentação incessante,
ao longo da fronteira, dos que planejam atravessá-la.
Para isso, novamente, é preciso tempo para se enlaçar
àqueles que são filmados, tempo para escutá-los e perscrutar
seu movimento na noite do deserto, tal como fantasmas
ou almas penadas (os que irão, em breve, desaparecer),
apanhados pela luz infravermelha dos helicópteros norte-americanos.
Entre o nomadismo e o confinamento
Se em nossos dias as estratégias do espetáculo
- acionadas pela globalização e pela disseminação das
estratégias de mediatização impulsionadas pelas tecnologias
digitais - conduzem ao aplainamento do mundo através
da velocidade de transmissão da informação (deslocalizada
e imaterial), dele retirando as rugosidades, alisando
seus estriamentos, planificando seu relevo, o cinema
documentário, na contra-corrente desses poderes,
insiste em filmar “os processos lentos, invisíveis,
de transformações ou metamorfoses dos espíritos e das
matérias”, segundo a bela fórmula de Comolli. [29] Assim é que certos documentários, por
meio do singular manejo de seus recursos expressivos,
tem se dedicado a desenhar algumas figuras da experiência
na contemporaneidade, explorando as tensões entre o
processo de mediatização e o mundo no qual se movem
os sujeitos, em suas realidades cotidianas, encravadas
em temporalidades particulares.
Identificamos inicialmente dois grandes
procedimentos buscados pelos filmes: um, aquele dos
cineastas nômades ou globetrotteurs, como é o
caso exemplar de Johan Van der Keuken. Desde os anos
70, à procura de uma forma-cinema adequada à sensibilidade
terceiro-mundista da época (empenhada na crítica das
relações geo-políticas desiguais entre o Norte e o Sul),
até o final dos anos 90 (com seu Amsterdam Global
Village), o cineasta holandês filmou nos mais diferentes
lugares (Camarões, Peru, Espanha, Marrocos, Nepal, Índia,
Egito, Suriname, Ghana, Indonésia, etc). Sobre vários
de seus filmes, Daney afirmou que eles poderiam trazer
o seguinte sub-título: “misérias ocasionadas pelo capitalismo
mundial e as doenças que ele traz ao corpo humano”. [30] E é isso mesmo o que encontramos
em Face Value
(O valor da face, 1991), no qual o cineasta,
tal qual um andarilho, percorre diferentes lugares
da Europa (Londres, Marselha, Praga, Holanda) ao encontro
dos mais variados personagens e temas: desempregados
da antiga economia socialista dos países do leste europeu;
mulheres argelinas exiladas em Marselha; prisioneiros
recém-saídos da prisão e condenados à marginalidade
na Tchecoslováquia; mulheres caribenhas em Londres;
um comício do líder direitista Le Pen; uma cerimônia
num cemitério judeu em Praga e tantos outros mais...Em
todos esses encontros o acaso tem papel preponderante
e dá lugar tanto ao acolhimento ao outro que se filma
(apanhado na duração de seu rosto e de sua fala) quanto
à possibilidade de ser por ele interpelado, deixando
o lugar à surpresa, à descoberta das diferenças, sem
excluir o conflito e a manutenção da distância, áspera,
mas sem lhe cortar a palavra ou a gestualidade enfática,
mesmo quando se trata de filmar o inimigo, como é o
caso do comício da Frente Nacional e da manifestação
efusiva e entusiasta dos seus seguidores diante da câmera.
Um outro procedimento adotado pelos documentários
consiste não em atravessar o globo ou um país para documentar
como lá vive a outra metade, mas em ficar e filmar o
lugar onde se vive, os arredores de um quarteirão, a
outra metade da cidade, como o faz Pedro Costa em No
quarto da Vanda (2001). Esse filme exibe uma dupla
destruição: a demolição do bairro de Fontainhas, em
Lisboa, habitado pelos trabalhadores portugueses pobres
e por grande quantidade de imigrantes de Cabo Verde;
e a autodestruição de Vanda, que se droga em seu quarto.
O filme é formado por planos de uma extensa e sufocante
duração, sejam aqueles do quarto, no qual os corpos
buscam, ávidos, a droga, sejam os da derrubada dos barracões.
Os enquadramentos, repetitivos e fechados, orientados
pela própria protagonista, reforçam a quase imobilidade
dos corpos e o seu confinamento extremo no espaço, fazendo
obstáculo à variação e transformação próprias da escritura
cinematográfica. Se o cinema tem algo a ver com a ressurreição
daquilo que diz respeito à morte - desde seus primórdios,
quando precursores como Marey e Muybridge se puseram
a animar (de vida, justamente!) as imagens fixas -,
o que Pedro Costa faz é filmar o trabalho da morte,
afirmou Comolli.
[31]
Porém, a oposição entre dois procedimentos
- o documentarista que viaja e vai ao encontro da diversidade
do mundo - e aquele que fica em casa e filma o outro
mundo que sua cidade ou país abrigam - não é senão relativa,
como demonstram as cartas (à maneira de um diário de
viagem, entremeado de lembranças) de Sandor Krasna,
o documentarista-viajante de Sans Soleil (1982),
de Chris Marker:
Ele me escrevia: “Estou voltando de Hokkaido, a ilha
do norte. Os japoneses ricos e apressados pegam um
avião. Os outros vão de ferry. A espera, a imobilidade,
o sono fragmentado, tudo isso curiosamente me remete
a uma guerra passada ou futura: trens de noite, apitos
de alerta, abrigos atômicos... Pequenos fragmentos
de guerra inseridos na vida corrente.” Ele amava a
fragilidade desses instantes suspensos, essas lembranças
que serviram apenas para deixar, justamente, lembranças.
Ele escrevia: “Depois de algumas voltas ao mundo,
só a banalidade ainda me interessa. Eu a persegui
durante essa viagem com a obstinação de um matador
de aluguel.
[32]
Seja em Tóquio, Guiné Bissau ou Cabo Verde,
Sandor busca o que uma relação especial – ainda que
fugidia – entre quem filma e quem é filmado:
Ele não gostava de demorar-se sobre o espetáculo
da miséria, mas, entre tudo o que ele queria mostrar
do Japão, havia também os reprovados no Modelo. “Todo
um mundo de mendigos, de lúmpens, de excluídos, de
coreanos. Pobres demais para a droga, eles se embriagam
com cerveja, com leite fermentado. Essa manhã, em
Namidabashi, a 20 minutos das maravilhas do centro,
um sujeito vingava-se da sociedade, comandando o trânsito
na esquina. Para eles, o luxo seria uma daquelas grandes
garrafas de saquê que se derramam sobre os túmulos
no Dia de Finados.
Eu paguei a rodada no bistrô de Namidabashi: esse
tipo de lugar permite a igualdade do olhar. O limiar
sob o qual todo homem vale por outro, e sabe disso”.
Certamente, a viagem só pode nos oferecer
uma experiência de alteridade, a revelação do mundo
dos outros, se o viajante não leva consigo sua Bíblia,
suas recordações de infância e seu discurso ordinário,
como escreveu Deleuze a Daney, retomando uma observação
de Fritzgerald. Para quê viajar senão para descobrir,
nos mais diferentes lugares, que o cinema ainda permanece
por fazer, que ele é a viagem absoluta - longe ou perto
de casa -, enquanto, ao mesmo tempo, em cada lugar (onde
estamos e para onde nos deslocamos) podemos descobrir
também a que idade da mídia ele pertence, isto é, o
quanto a televisão já se encarregou de capturá-lo com
seus arranjos sonoros e imagéticos. [33]
Se é verdade que o cinema ainda resta inteiramente
por fazer - daí o otimismo crítico de Daney, ressaltado
por Deleuze -, é verdade também que os obstáculos e
os desafios que ele enfrenta mudaram muito desde que
o crítico do Cahiers du cinéma e jornalista do
Libération empreendeu sua peregrinação - pelos
filmes e pelo mundo - em
seu Ciné-journal, na década
de 80 (o primeiro volume cobre o período de 1981-1982,
e o segundo, de 1983 a 1986.
Sintomático dessa dificuldade enfrentada
pelo cinema, e, em particular, do documentário, é o
gesto que levou aquele que percorrera o mundo tantas
vezes a se confinar em um espaço vigiado por uma câmera,
diante da qual o cineasta expõe a fadiga de seu corpo,
os fragmentos da sua memória, bem como suas esperanças
políticas e seu desalento, como ocorre em Berlim
10/90 (1991) de Robert Kramer. Em um único plano-seqüência,
de uma hora de duração, o filme situa o espectador no
lugar de um operador de uma câmera de vigilância, que
acompanha duas cenas: uma mostra o cineasta sentado
em uma cadeira de ferro, em um banheiro coberto de azulejos
brancos; a outra exibe um aparelho de televisão, submetido
a diferentes enquadramentos e desenquadramentos. Mis
en scène carcerária, dirá Comolli, na qual o espectador,
afetado pela crueldade que a tela expõe, perde o controle
da perda do outro (o corpo de Kramer, que sofre - e
nós com ele - no tempo em que dura o processo de filmagem
a que ele se submete e que é projetado diante de nós,
mas sem que possamos nos identificar com esse sujeito).
[34]
Descontado esse excesso de mis en scéne
do próprio diretor/personagem/ator em Berlim 10/90,
um movimento análogo encontra-se na diferença entre
dois filmes de Akerman: se em De l'autre coté (2002)
a cineasta vai ao encontro dos mexicanos que querem
atravessar a fronteira para os EUA, em Là-bas (2006),
na viagem a Tel Aviv, a cineasta permanece confinada
ao apartamento, câmara imóvel, montada na sala, posicionada
frente à janela (e que oferece, na maior parte do tempo,
uma vista “filtrada” por uma persiana). Aquela que fora
até o outro lado - os mexicanos, a fronteira - retorna
à terra dos seus parentes, mas o seu pertencimento a
este território (com sua história e memória) é oscilante,
às vezes, próximo a uma miragem, algo à deriva, os vínculos
incertos. Do lado de fora, da vida e da experiência
daqueles que habitam os apartamentos em frente, enquadrados
pela janela e pela câmera, não podemos reter quase nada
(um ou outro corpo que aparece na varanda ou no jardim),
como se eles também - toda Tel Aviv? - estivessem enclausurados,
sem fora; talvez os outros também tenham dificuldade
de ampliar sua vista, seu horizonte (e não apenas em
um sentido físico ou geográfico), o que concede uma
nota política cifrada ao filme. Eis uma versão radical
do chamado “documentário em primeira pessoa”, em que
o espaço da subjetividade é rarefeito e diminuto. [35]
Essas breves caracterizações de obras de
autores distintos foram apresentadas para indicar as
diferentes possibilidades estilísticas de que os documentários
dispõem para dar conta, de certo modo, de algumas configurações
da experiência na contemporaneidade. No entanto, não
queremos simplesmente organizar um conjunto de filmes
distribuídos e classificados segundo o manejo particular
de seus recursos expressivos. No caso do documentário,
há algo que, diferentemente da ficção, o impede de fazer
escolhas estilísticas a seu bel-prazer: o real mesmo,
com sua opacidade e com tudo de que ele é feito (a vida
social, as instituições, os poderes, os lugares com
sua temporalidade, os sujeitos em suas inúmeras práticas
e discursos); real do qual ele parte, e que o atravessa,
transbordando a representação que dele é feita.
No filme documentário, tanto a experiência
que ele retrata - a dos sujeitos filmados - quanto a
que ele oferece aos espectadores são atravessadas pelo
real, que vem perturbar a cena (exibindo seu inacabamento
e sua incompletude) e demonstrar o quanto esta experiência
que ela abriga encontra-se em devir, situada em pleno
curso da história humana. O documentário, por fim, pode
assumir como seu lema aquela indagação que Philippe
Lafosse atribuiu à obra de Van der Keuken:
Já que estamos no mundo, como preocupar-nos com ele?
Como não nos preocuparmos com os outros? Já que estamos
vivos ao lado dos outros, na mesma canoa, como não
vê-los, escutá-los? Como estar com eles, definir sua
identidade e a minha? Como testemunhar sobre o nosso
presente, sobre o que é e o que será depois deles,
depois de mim?
[36]
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Como notou Michel Renov, embora
tenha ganhado destaque nas décadas de 80 e 90, essa
dicção em primeira pessoa, essa presença da voz do
diretor no documentário, na qual o componente autobiográfico
é mais ou menos acentuado, remonta aos filmes de Jonas
Mekas, com Lost, lost, lost (iniciado em 1949,
concluído em 1976), de Jean-Rouch, com seu cinéma-verité
nos anos 50 e de Chris Marker, com Lettre de Siberie
(1957). Cf. RENOV, Michael. Investigando o sujeito:
uma introdução. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir
(Org.). O cinéma do real. São Paulo: Cosac
Naify, 2005, p. 252.
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