eletrônica
Imagens da Periferia, Parte 2: Central da Periferia
por Felipe Bragança

O Enfoque

De que forma o olhar e o enfoque televisivo procuram construir sua relação com os espaços sociais não ordenados? De que forma o olhar televisivo, em especial o projeto nacional da Rede Globo, faz o esforço de harmonizar a representação social brasileira em sua grade de programação, em suas camadas de audiência, em suas formulações didáticas? Central da Periferia, novo programa-conceito levado ao ar pela dupla Regina Case - Hermano Vianna, nos ajuda a tentar responder estas perguntas. Norteado por um conjunto de reflexões sobre as disparidades culturais entre a cultura centralizada e a cultura dispersa na multidão, o programa se propõe a construir um painel conceitual invertido, que desafia os parâmetros de centralidade cultural no Brasil hoje. “Viva a periferia”, grita Regina Casé, em meio a seu programa de auditório a céu aberto – entrecortado por micro-reportagens.

Não é de hoje que a Rede Globo cultiva o projeto de catalogar e harmonizar a cultura brasileira, utilizando-se de parâmetros que são sempre, antes estatísticos, representativos, do que caracterizados por qualquer exceção. Dessa forma, nesse projeto de criar liga entre as disparidades culturais e territoriais de uma rede audiovisual centralizada no Rio de Janeiro e em São Paulo, a Rede Globo se caracteriza pelo desejo de conciliação nacional. Central da Periferia termina por não fazer nada além de estender mais um braço desse mesmo e reiterado projeto, agora voltado para a celebração da cultura da dita maioria como forma de massificar a diferença através de um olhar antropológico fetichista que faz da cultura dita não-erudita um valor em si mesmo por seu papel de representação criativa.

O que incomoda nesse novo projeto, nesse olhar da “alteridade conformista” de Vianna, é o total desaparecimento da possibilidade da periferia" como ato de comportamento-gestual que não represente necessariamente um ato de pessoas pobres ou geograficamente isoladas de um suposto centro-pensante que está sendo combatido. Esse contra-preconceito com os não-pobres, esse olhar que se diz provocativo é na verdade uma forma de criar uma unidade dupla e estática: massificar a classe média como o tal "asfalto" e os pobres como a tal "periferia". De um lado, um bando de cabeças anuladas em suas diferenciações por serem necessariamente "elite preconceituosa" – e, portanto, iguais entre si. De outro, a "periferia" onde a unificação se dá pela condição financeira precária.

É um jogo de marionetes definidas em que a Globo aparece como mediadora final entre duas partes mapeadas, que, muito pelo contrário, não só não se conformam entre si, mas que também não se conformam dentro de si mesmas.  O gesto periférico, o enfoque cultural desviante não é condição antropológica. A classe média pode ser mais periférica do que grupos mais empobrecidos, assim como ser pobre não é carga genética cultural! Essa ligação direta grana-cultura é uma farsa construída para se defender um glamour da pobreza e do precário como resolução anti-estatal. A Rede Globo quer substituir o Estado Brasileiro como interlocutor da multidão. Mas eu não preciso do aval da Rede Globo, nem da representatividade cultural, nem mesmo de ser cearense (nem antropólogo, por favor!) para achar um forró eletrônico lindo, emocionante. Nem preciso me sentir obrigado a não achar a musicalidade de um calylpso uma coisa doída de ouvir porque, afinal, "é a cultura da massa”, da tal maioria.

O projeto é, no fundo, anular as pessoas, anular a multidão, o caos e celebrar a mediocridade. "Vamos pôr ordem nessa mistura. Agora que a gente já tem a classe média acomodada na imagem do teledrama, que tal a gente brincar de acomodar os pobres?"

Hermano Vianna cultiva teorias interessantes sobre o impacto cultural da arte digital nos subúrbios e costuma costurar artigos brilhantes abordando a fusão cultural desse recorte brasileiro. Concordo que, como ele postula na carta de apresentação do programa, não se pode permanecer com a imagem de que a pobreza é sinônimo de vestidos de chita, ingenuidade e violência. Mas não há sentido estético em esvaziar essas expressões diversas e fortes, transformando-as não mais em arte possível, vibrante e arriscada, mas em “cultura” segura e catalogada.

Em um ano em que abaixo-assinados pela democratização da cultura audiovisual, em que manifestações de comunidades pedem mais espaço na programação para produções comunitárias (vejam bem, “comunitário” não quer dizer pobre, porque comunidade não é eufemismo de favela, por favor!), é natural e politicamente óbvio que a moça platinada de plantão venha a público defender a idéia de que “é a periferia que faz o Carnaval” (Regina Casé, no Fantástico, com Elza Soares). Que, em expansão quer afirmar: “o povo brasileiro não precisa do espaço da elite”, pois ele já tem a “sua própria industria cultural independente”. De que não se deve lutar por espaços, já que esses espaços já estão criados em paralelo, sem mexer na fatia do bolo dos que estão no poder... E que essa periferia cultural não precisa de mais espaço ou decombatividade, somente do “reconhecimento” e do “respeito” pelo que eles já realizam.

Esse surto de abertura cultural nada mais é do que a Rede Globo demarcando o seu desinteresse por questões estéticas e afirmando seu papel (auto-proclamado) de representante do povo. Porque classe-média e média-baixa, nesse joguinho populista global, não é interlocutor cultural – é só consumidor privilegiado. E aí tome imagens conciliatórias em que a desbravadora MC (Regina no Fantástico, vestida de militar na selva, foi angustiante) leva um suposto e idealizado público de elite para entrar em contato com aquilo que a “maioria” faz. Uma espécie de simba-safari cultural em que, como eles mesmos dizem, “não se precisa gostar, só ver e
aceitar que existe”. Como assim?

É o duplo comodismo: De um lado a periferia (limitada ao território dos sem-dinheiro) se cultiva como valor em si mesmo, que deve ser tombado como patrimônio cultural: “Ah, não acabem com a miséria, o que seria de nosso futebol e da música sem ela?”, parecem dizer Casé-Vianna. De outro, uma suposta elite cristalizada, que não precisa criar nem imaginar, posto que já é bem-nascida, que nem precisa se emocionar com o que vê, posto que o interesse do programa é meramente uma exposição do real-cultural brasileiro revisto como um universo paralelo e curioso por trás da vitrine da TV. Investe-se, de novo, na esparrela da “Cidade Partida”, apenas invertendo o ponto de vista do Leblon para o subúrbio. Deixar as partes divididas, se olhando de longe e se respeitando como alienígenas simpáticos,é uma forma de desestruturação política com motivações claras.

Pois eu não estou disposto a aceitar que venham dizer que eu não preciso gostar do que eu escuto e vejo! Essa alteridade desinteressada não vale nada e é um clichê recalcado de uma ocidentalidade estereotipada como erudita. Viva o egoísmo e a capacidade de se gostar e desgostar das coisas. De olhos abertos, sempre, mas nunca obedecendo o que é certo e o que é relevante, por quais critérios bem avaliados for! Eu quero ter o direito de me emocionar ouvindo Aviões do Forróe não me sentir cumprindo um dever cultural.

Se eu cansei da erudição-bossa-nova-carioca, não me interessa uma mera substituição de objetos com a mesma dinâmica da contemplação cultural do bom-gosto, do antenado, do importante. Vamos deixar de importantismos e relevâncias culturais. Vamos às coisas, às músicas, aos filmes, aos gestos.  Se o erudito da limpeza cultural não é bom por si só, se a erudição clean não vale nada, a erudição massificada da referência cultural não-canonizada vai no mesmo caminho do enfraquecimento estético.

A cultura periférica brasileira é um estado de criação, não uma fórmula social.  Está na favela e está em Copacabana, está no hip-hop de Madureira e no rock de Botafogo, está no cinema de curta-metragem e nas rádios comunitárias, está num barraco de madeira e num apartamento de dois quartos no Catete. Ela não tem dono social vitalício, mas multidão de interlocutores, e continua batendo em suas variadas teclas, insurgente e incomodada, fazendo, sim, coisas bonitas, fortes, de que as pessoas podem e devem gostar! E se, as estratégias de difusão alternativas se sobrepõe às dificuldades, não fazem delas soluções conformadas numa nova normalidade.

Não adianta tentar normatizar nem exemplificar o funk, o calypso, as lan houses, o rock, os flogs, os blogs, os grupos de estudo de Heidegger, os torcedores do Botafogo, os clubes de colecionadores de objetos inúteis, as senhoras que tricotam assistindo filmes restaurados de Fred Astaire, a menina manauara que gosta de Madonna... As pessoas existem para além de seu valor de troca, de seu valor de atestado moral ou exemplificação de cultos culturais.   

As pessoas existem. Quer a Rede Globo queira, quer não.

 

 


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