in loco
Alguma coisa acontece em Minas Gerais
por Eduardo Valente
De quando em quando a "megalópole brasileira"
(leia-se eixo Rio-SP) abre os olhos para alguma manifestação cultural
particular do resto do Brasil. Assim, já tiveram lugar no imaginário
do eixo em décadas recentes: o mangue beat (multi-disciplinar)
recifense, o "clubedaesquinismo" mineiro, a
axé music baiana, o boi amazônico, o cinema gaúcho, o mais abrangente
fenômeno da "música sertaneja" – e até as manifestações
"periféricas" da própria metrópole (o rap paulistano,
o funk carioca). Ainda voando abaixo do radar está um dos maiores
fenômenos recentes: o cinema "experiencial" mineiro (já
que o termo experimental, com suas décadas de peso pelo excesso
de significados adquiridos, não parece exatamente dar conta
do que acontece de novo nas geraes).
Em apenas uma produtora/coletivo,
por exemplo (a Teia), dividem experiências seis dos mais instigantes
novos realizadores do cinema brasileiro (Clarissa Campolina, Helvécio
Marins Jr, Leonardo Barcellos, Marilia Rocha, Pablo Lobato, Sérgio
Borges), tendo realizado pelo menos duas obras maiores do cinema
brasileiro recente (o longa Aboio e o curta Nascente
- foto acima). No entanto, todos eles são ainda divinamente
desconhecidos, num país onde, segundo descobrimos em recente polêmica
midiática, ter o currículo de Paulo Thiago serviria como "antecedentes
positivos".
Mas, o que acontece em BH está longe de ser um
fenômeno de um grupo só. Pelo contrário, os nomes se acumulam: há
desde remanescentes de gerações anteriores, como os mais
premiados Eder Santos e Cao Guimarães, a figuras cronologicamente
intermediárias como Patrícia Moran e o mais conhecido Rafael Conde
(que filma seu segundo longa nestes meses), chegando a alguns
“exilados mineiros” como André Amparo e João Vargas Penna (no
Rio de Janeiro) ou Kiko Goifman (em SP). Na geração mais
nova há alguns cineastas já donos de autênticas "obras conjuntas"
(Carlos Magno, Conrado Almada, Leando HBL, Sávio Leite, Tania
Anaya) e aqueles que começamos a conhecer agora com seus
primeiros filmes marcantes (Cláudo Oliveira, Marcellvs L, Marcos
Pimentel, Roberto Bellini). Fato é que nenhuma cena “regional”
de cinema parece tão instigante e esplendidamente contemporânea
(onde a produção em digital é particularmente marcante) quanto a
belorizontina.
É claro que esta quantidade de nomes de cineastas
(necessariamente incompleta, porque enquanto escrevemos novos
filmes/vídeos vão sendo adicionados) não nasce por geração espontânea.
Junto aos realizadores em si, temos em atuação duas entidades
locais importantes (a Curta Minas e o Centro de Estudos Cinematográficos); produtores
e técnicos reconhecidos (entre eles, destaque para nomes como
os da produtora Marcia Valadares e da montadora Karen Harley,
além d’O Grivo – dupla cujo trabalho na edição de som e mixagem
de vários filmes e vídeos mineiros compõe uma das mais consistentes
e essenciais contribuições "técnicas" do cinema brasileiro
atual); uma sala de cinema com uma das programações mais radicais
do Brasil (o Cine Humberto Mauro, capitaneada hoje na sua
programação pelo jovem Daniel Queiroz, parceiro de geração
de muitos dos nomes acima mencionados); festivais de cinema absolutamente
atualizados com a cena mundial como o Indie, o Fluxus (ambos
organizados pela Zeta Filmes) e o Forum.doc; e, como não
poderia deixar de ser, desde recentemente (atualmente no segundo
ano), um curso universitário de cinema (da UNA).
Como o cinema não gira somente em torno de si
mesmo, claro, temos ainda que citar a existência em Belo Horizonte
hoje de grandes festivais internacionais de teatro e dança,
profissionais instigantes nas novas áreas de intervenção
artística (webdesign, intervenção urbana, etc), uma considerável
rede de sebos e livrarias não-estandartizadas, grupos de tão variado
e consistente trabalho como o Galpão, o Corpo, o Uakti, etc. Tudo
isso sem citar o óbvio: uma tradição cultural viva, como poucas
no Brasil, no estado todo. E, para filtrar e canalizar isso
tudo, uma agitada vida noturna cheia de tradicionais botecos,
casas noturnas e festas.
A
força desta “cena” esteve em ostensiva demonstração na recente
oitava edição do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.
Ante a presença de uma maciça platéia (que lotava quase todas
as sessões), eminente e incrivelmente jovem, era exibida aquela
que é hoje, sem dúvida, a mais coerente e corajosa seleção
de filmes em um festival brasileiro (de curtas ou longas).
Na Competição Brasileira e Internacional, vimos sessão após sessão
com pouquíssimas obras "fáceis" ou banais – e quase
nenhuma deserção da platéia, que além de assistir, acompanha com
atenção (onde se destaque uma campanha do Cine Humberto Mauro,
onde acontece o festival, pelo silêncio nas salas de cinema).
Além disso, vimos ainda uma seleção mineira que se mostrou
forte o suficiente para escapar da mediocridade geralmente comum
a estes "balanços regionais", e homenagens e mostras
especiais dedicadas somente a nomes altamente não-convencionais como
a própria Teia, Christian Caselli e a Mostra do Filme Livre.
Como cereja no topo do bolo, os júris da mostra
nacional (oficial e da crítica) eram capitaneados pelos essenciais
críticos franceses Jean Douchet e Alain Bergala, únicos convidados
internacionais do evento – cujo anonimato para a maioria em nada
faz lembrar a obsessão por celebridades, comum a tantos festivais.
Na premiação do júri oficial, a idiossincrasia fez jus à seleção
(e à fama de Douchet), e não deixou de lado a geração mineira
aqui mencionada: se o principal prêmio foi dado ao trabalho captado
por câmera de celular da carioca Consuelo Lins (Lectures),
o de melhor direção foi para Carlos Magno (por Kalashnikov)
e a menção honrosa do júri para Marcellvs L. (por 3195.Man.Canoe.Ocean)
– ambos já citados acima. Entre os mineiros, levaram prêmios ainda:
Nascente, de Helvécio Marins (melhor fotografia e menção
honrosa do júri da Curta Minas); Ãgtux, de Tânia Anaya
(montagem) e Sal Grosso, de André Amparo (melhor curta
pela Curta Minas – embora seja importante notar que é co-dirigido
pela capixaba Ana Cristina Murta, e feito no Rio de Janeiro).
Igualmente importante é dizer que quem levou mais prêmios na noite
final foi o pernambucano (e cinético-cinemascópico) Kleber Mendonça
Filho, cujo Eletrodoméstica levou os prêmios de melhor
roteiro, atriz e filme pelo júri popular.
De qualquer jeito, quem esteve em Belo Horizonte
nestes dias não pôde sair com outra impressão de lá de que o cinema
respira, e muito, naquelas paragens. Se o resto do Brasil vai
perceber isso logo, ou não, é mais um problema para ele do que
para os mineiros – que, como se sabe, têm fama de trabalharem
em silêncio.
N. do E.: foto do Festival de Curtas por Paulo
Terra.
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