eletrônica
Cegueira seletiva
por Cléber Eduardo
Copa
do Mundo não é só futebol, isso sabemos. Basta ver a onipresença
no noticiário da Rede Globo da tontura sentida por Ronaldo. Parecia
fim de novela das oito. Faz parte do espetáculo salientar situações
potencialmente graves. As partidas televisionadas são mediadas
por narradores e comentaristas, que, além de nos darem informações
que podemos ver na imagem, relatando o que está visualmente informado,
têm o objetivo de ampliar o espetáculo e a carga dramática da
competição. O mais curioso, no entanto, apesar de todos os recursos
tecnológicos, é a traição constante à imagem. Com todos os tiras-teimas
e artifícios computadorizados, narradores e comentaristas, vez
ou outra, parecem não saber mais enxergar. Esta Copa não
parou de nos dar exemplos.
Em Equador x Costa Rica, o jogador Valencia, da seleção sulamericana,
segundo a narração, sofreu uma entrada de carrinho do zagueiro
Matinez, e, conseqüentemente, teria saído de campo machucado (para
logo voltar). A imagem, porém, foi clara. Ele sofreu uma torção
antes do adversário chegar na jogada, mas, por não ter sido grave,
passou a fazer caretas de encenação com corpo estendido no gramado.
Puro teatro. Como se viu no replay, a torção foi em um
pé e ele caiu segurando o outro. Passaram a atacar o defensor
por sua violência, sem mencionar a encenação do atacante, sem
verem que o zagueiro, violento ou não, naquele lance nem havia
encostado no jogador. Notável como a imagem ali não serviu para
o locutor e o comentarista de arbitragem basearem suas afirmações
e seus vereditos.
Em
outra partida, entre Inglaterra e Trinidad Tobago, o atacante
Crouch puxou as tranças do zegueiro Sancho, quando subia para
cabecear a bola, impedindo qualquer reação do adversário e ganhando
impulso para fazer o gol. A imagem, em tempo real e no replay,
em câmera lenta, deixou isso claro. Somente minutos depois, locutor
e comentarista de árbitro se deram conta de que o atacante tinha
escalado pelos cabelos do zagueiro. A imagem, mais uma vez, de
nada serviu (para o locutor). Nem o locutor serviu para nós espectadores.
Um terceiro caso foi o comentário do sempre apressado Galvão Bueno
em Portugal e Holanda. Antes mesmo do replay vimos Figo
levando uma cotovelada do marcador holandês. Galvão logo vaticinou
que o atacante português não levou a cotovelada, que ela não pegou
em seu rosto, que ele teria sofrido apenas um tapa imediatamente
após a “falsa agressão”. O replay, como mostrado na própria
Globo, portanto de ângulo acessível a Galvão, logo explicita o
inverso do comentado: Figo sofreu sim a cotovelada e, ao contrário
do comentário, não levou o tapa na seqüência – este nem chegou
a relar em seu rosto. O que anda acontecendo com a vista de nossos
comentaristas e narradores?
Vendo essa mania constante e irritante que a realidade do jogo
tem de contradizer as teses de nossos narradores, com suas cegueiras
seletivas, não seria interessante ter a possibilidade de um canal
a cabo sem narração, só com comentários no intervalo? Talvez assim
possamos ver imagens e não ouvi-las de forma deturpada - o que
inclusive valorizaria a “dramaturgia” do som direto, com falas
de jogadores e com o alarido dos torcedores.
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