Cidade dos Homens - O Filme,
de Paulo Morelli (Brasil, 2007)
por Cléber Eduardo

A "estética da produção” em uma narrativa de implosão da experiência

Talvez o momento-clímax de Cidade dos Homens seja a imagem de Acerola com uma arma apontada contra Laranjinha. Depois de quatro temporadas da série na tevê, durante as quais os laços entre eles atravessaram a adolescência na favela, os “quase dois irmãos” esbarram nesse “quase” – por conta do passado, ou, mais especificamente, por causa de uma situação específica da qual não fizeram parte. Nesse momento, no qual a amizade deles é ameaçada, o esquematismo dramatúrgico, já evidenciado em seu enfoque sobre a traição, coloca o sagrado dos afetos na ponta de um cano. Depois de vermos um braço direito do tráfico passar a perna em seu chefe, Acerola transar por fora, sua mulher abandonar o barraco em meio a uma guerra no morro e o pai de um passar fogo no do outro em um flashback, surge o falso drama sobre a capacidade ou não do meio intervir na relação entre os dois rapazes.

Falso drama porque sabemos de antemão que a amizade acabará por se impor ao contexto. Isso não esvazia a carga de mal estar desse momento de confronto, porque, ao apontar a arma contra o amigo, Acerola faz a passagem da “cidade de deus” para a “cidade dos homens” – ambos conceitos religiosos de Tomás de Aquino, para quem a primeira é a possibilidade de fraternidade, entendimento e respeito mútuo, ao passo que a segunda, a dos homens, é o espaço do confronto, da opressão e da ausência de respeito pelo outro. É como se toda a série, que poderia ser chamada de “cidade dos meninos”, finalmente justificasse o título. Se esse já tinha pertinência por vermos o conceito de Tomás de Aquino espalhado pelo ambiente da favela, agora é incorporado pelos protagonistas em um momento de literal passagem para a maioridade. E essa se dá sob uma imagem de ameaça de rompimento. Maturidade = ameaças. 

Chegar aos 18 anos, para personagens cuja puberdade pôde ser acompanhada na Rede Globo,é um marco simbólico. Acerola e Laranjinha têm um pé em processos como os de Antoine Doinel nos filmes de François Truffaut e Harry Potter na franquia de mesmo nome. Não acompanhamos na soma de filmes com esses personagens apenas suas mudanças físicas e a consolidação de suas personalidades ao longo dos anos, mas também as mudanças de contingências e das maneiras de lidar com elas. Em Cidade dos Homens, o filme, quando a maioridade se coloca como momento de perda, mais que conquistas, os personagens, se comparados com a vivência da adolescência, entram em terreno sombrio. Poucas anedotas.

Tanto há uma explícita transição de vida e de tom que as imagens de flashback da amizade, além de usarem a série como memória interna da narrativa e dos personagens (TV como memória, ao contrário da afirmação de Godard: cinema = memória/televisão = esquecimento), transmitem a forte impressão de remeter a um momento mais dourado da vida deles (na textura da fotografia inclusive) – o da experiência na televisão, que pouco tem a ver com o universo sinistro e soturno da versão cinematográfica (seguindo a mesma trajetória de Harry Potter, portanto). Amadurecer é enfrentar fantasmas próprios, e do ambiente onde se vive, com menos esperanças em relação a futuro, com menos capacidade de rir em meio a seriedade das situações colocadas. Tornar-se homem é adquirir ferramentas de defesa em um mundo hostil. E ter a consciência de que um deslize pode ser fatal.

Cidade dos Homens estabelece para os rapazes um mundo de vulnerabilidades permanentes ao qual terão de resistir: Acerola tem de cuidar do filho, sobretudo quando a mulher parte – é o pai. Já Laranjinha sai atrás do pai de identidade ignorada – é o filho. No final, os dois andando por uma avenida com o filho de Acerola, ambos fugidos de seus lugares de origem, pai e filho, na prática, ou Acerola e Laranjinha, compõem uma família. Para quem gosta de sentidos extras, caminham na avenida Niemeyer, sob o morro conhecido como Dois Irmãos. Seguindo a lógica de Cidade e Deus, ao escolher como protagonistas dois adolescentes aparentemente vacinados contra o lado torto da favela, claramente trabalhados como modelos para seus vizinhos de ambiente social e como mediadores para os espectadores de andares acima da sociedade, Cidade dos Homens, série e filme (ambos descendentes diretos do filme de Fernando Meirelles), reafirma sua posição: o indivíduo está acima de seu ambiente.

Mas o que é o indivíduo, nos limites da tela, se não experiências? E o que são as experiências, nos limites da tela, se não sensações de existência? Como o filme e a série não chamam “Acerola e Laranjinha”, mas Cidade dos Homens, podemos pressupor de cara que as experiências são inferiores ao contexto, enquanto investimento na imagem – e por isso a sensação de existência será limitada pela imposição da cidade sobre os homens, como conceitualizou Tomás de Aquino. Vemos os acontecimentos vividos pelos dois personagens, assim como por outros, mas são menos sensações e mais resumos visuais, que, em vez de nos instalarem nos acontecimentos, privilegiam sua organização interna esquemática e as notas de rodapé em forma de diálogos. Em vez de momentos da vida dos protagonistas, ouvimos explicações sobre essa vida. Talvez seja uma forma de ensinar o espectador pouco íntimo da série a atravessar aquele mundo ficcional pré-existente, que não é tratado como prólogo (como em Os Normais), nem como algo autônomo (Casseta e laneta, A Grande Família), nem como remontagem (O  Auto da Compadecida, A Pedra do Reino), mas como fechamento de um ciclo.

A lógica visual e a dinâmica da montagem privilegiam o tom do “ambiente” – ou, quase exclusivamente, o da adrenalina ao redor do tráfico. Desde os primeiros planos, quando nada de grave é visualizado na imagem, o número de cortes nas seqüências, com duração mínima da maioria dos planos e alterações constantes da distância da câmera e da angulação, instala o padrão “língua de fora” – como se o filme, mais que os personagens, estivesse quase enfartando, para “tirar o pai da forca”.  Essa velocidade do olhar, que parece deixar de enxergar os instantes de experiência para dar a impressão de turbulência permanente (abortos contra as experiências?), já foi tematizada em Cinética, sobretudo em um Diário de Redação sobre a série Antônia. Destaco uma passagem escrita por Ilana Feldman que, dentro dessa dinâmica aqui analisada, poderia ser aplicada a Cidade dos Homens.

 Basta que os personagens sejam "de periferia" para que se construa uma sensação de "urgência" estética, sensação de que todos têm de correr para não perder o bonde, incluindo aí o cineasta. Perder qual bonde? Do capitalismo, da guerra de audiência, do controle da atenção espectatorial?

Pois se a câmera não chega a ser epilética como em Antônia (série e filme), certamente a montagem reproduz uma síncope. Não é por outro motivo que, quando a situação filmada encontra a mesma taquicardia do ritmo dos planos, do número de cortes e das mudanças de ângulo, a experiência de estar nas situações brota das imagens. Justamente quando Cidade dos Homens deixa de simular cenas, passando para a ação física e casando-a com o movimento dos cortes, podemos sentir onde está seu coração: na produção (em sentido amplo). Parece haver nesses momentos a adesão a um cinema que, sem levar em conta noções de composição e movimentação de atores nos espaços, privilegia uma máquina de tornar viável o efeito de real limítrofe – no caso, uma guerra entre traficantes, com impressionante fusão entre a estrutura do cinema e o ambiente da cidade.

Cidade dos Homens seria então, como pede o clichê crítico, um filme de produtor? Diria “um filme de um diretor de produção”. André Bazin lembrava nos anos 50 que o cinema de Hollywood, antes de ser um cinema de individualidades criativas, era pautado pela genialidade do sistema. Havia uma maneira de fazer filmes que estava impregnada em trabalhos diferentes. Uma cultura. Evitemos o risco de aplicar a genialidade de produção dos estúdios na produção de Cidade dos Homens. Porém, é inegável que, por seus caminhos, persegue, se não essa genialidade do sistema, ao menos uma ciência de produção. Não uma cultura do “como fazer” consolidada e tradicional, como via Bazin na de Hollywood, mas a busca de um padrão latino-americano para a internacionalização, que, entre outros aspectos, como notou em comentário após a sessão Ilana Feldman, passa pela música “standart-orientalista” de Antonio Pinto (em sintonia com a de Gustavo Santaolalla em Babel, do mexicano Alejandro González Iñnaritu, que, por sua vez, passa pela do mesmo Antonio Pinto em Abril Despedaçado).

Cidade dos Homens segue, portanto, Cidade de Deus na afirmação, digamos, de uma estética de produção, supostamente pensada também para seus efeitos internacionais – que nada tem a ver com outros filmes de “produção notável”, como Guerra de Canudos (Sergio Rezende), Olga (Jaime Monjardim) ou mesmo Carandiru (Hector Bebenco): todos com enorme peso de estrutura a asfixiar suas imagens, sem possibilidades de atrair a atenção para se inscrever no cenário contemporâneo como “novidade da América Latina”. CDD e CDH, por sua vez, tiram o peso, sem deixar de ostentar a produção, e o substituem pela quantidade de informações, com as mesmas situações filmadas de pontos diversos – o que chamei, em outros artigos, de “promiscuidade do ponto de vista”. Seria essa uma nova estética da produção? Talvez. E para isso a presença de Paulo Morelli, como diretor, torna-se quase uma não-questão – para o filme, e para a crítica aqui.

Setembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


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