in loco - cobertura do É Tudo Verdade
Os
Cavalos de Goethe, de Arthur Omar (Brasil, 2011)
por Paulo Santos Lima
Discurso
translúcido em tempos de juízo translúcido
Que fique claro, de pronto, o belo impacto de Os Cavalos de
Goethe, com suas fortes e quase sobrenaturais imagens de feras
equinas e homens esbarrando-se no tumulto caótico do buzkaschi.
Tudo isso graças, obviamente, ao gênio manipulador-fotográfico
de Arthur Omar, que opta pela intervenção dessas imagens que ele
captou em 2002, quando esteve no Afeganistão e filmou esse esporte
afegão um tanto sui generis (menos por sua brutalidade
e mais pela falta de sentido concreto junto ao teatro de guerra
que encena). A partir disso, o cineasta expõe suas idéias
num processo brilhante, sutilíssimo, criando modulações de tempo
dentro do plano. A isso, que é mesmo forte como efeito visual,
o texto voltará em breve.
Mas
há um problema de pensamento aqui; de visão de mundo mesmo. E
de teoria: usar a Teoria das Cores de Goethe é relativizar certas
questões em um momento histórico bastante impregnado por um certo
cinismo das relativizações, dos múltiplos pontos de vista. Os
Cavalos de Goethe trabalha, de forma bastante hábil e bela,
junto a essa lógica da videoarte de inserir diversos materiais
e, na costura, criar sentidos de ritmo, sensações, pensamentos
etc. Mas a teoria de Goethe, que delega outro lugar ao branco,
também adotando a idéia do prisma para explicar as outras cores,
dizia, em resumo, que as cores eram resultado de nossa percepção
mental (emotiva também) e não de um fenômeno físico. Uma conclusão
que coloca as coisas de modo mais translúcido, que serviu muito
à revisão do projeto político (e estético) dos anos 60-70 – e
que ainda serve muito bem aos fotógrafos (como Arthur Omar) e
a tudo relativo à imagem (nesses tempos em que tudo é imagem,
e pensado como tal).
Destrinchar
e lançar aos olhos outras camadas sob a superfície vem servindo
a propósitos sólidos e iluminados há algumas décadas. Inclusive
a Arthur Omar, desde os seus curtas nos anos 70, passando pela
obra-prima Triste Trópico, em 1974, e outros trabalhos
ao longo dos 80 e 90 que, mesmo baseados em procedimentos da videoarte,
souberam puxar para si elementos do cinema de montagem de um Godard
ou Sganzerla, trazendo algo novo (“que se caracteriza pela
atualidade, pela contemporaneidade, que possui frescura, vigor,
viço”, como define o amigo Houaiss). Ao, por exemplo, relativizar
o papel do documentário como objeto da verdade e transparência,
Arthur Omar não reduzia o papel do documentário, mas sim o contrário:
ele levava o cinema a outras formas de revelação. Hoje, respeitar
e expor essas tantas verdades por trás trabalha a favor
dessa lógica “de hemorragia”, que revela tudo para assim esconder
algo. É assim que o fundamento do trabalho de Arthur Omar, este
que é um dos nossos maiores artistas, perde tônus. E, que fique
claro também, não é desairoso cobrar de um artista sobre qual
gênio elaborou sua obra. Perguntar-lhe isso é também descobrir
como ele se relaciona com o seu momento histórico, com o tal estado
das coisas. Não é duvidar, mas sim reforçar seu papel de artista.
E é a obra quem confere o lugar que o artista se coloca no mundo.
Arthur
Omar inscreveu seu longa num festival de documentários. Falar
sobre as relações entre documentário e ficção, ambos com sua natureza
de encenação e de escolhas ópticas e de duração do plano etc.,
não parece uma questão. Importa mais observar que, além de inscrito
no ETV, o filme nos orienta sobre as imagens serem de Cabul, Afeganistão,
2002. A
essas imagens violentas, insere o som de aviões de ataque; há,
também, a voz de Alec Guinness lendo poemas de T.S. Eliot, resultando
em algumas reflexões sobre o passado e o presente serem parte
do futuro, sobre a palavra morrer quando a fala chega ao fim,
sobre o vaso chinês em sua imobilidade e movimento. É e não é?
Ora, o que há de relativo àqueles homens que aparecem tanto na
platéia quanto montados nos cavalos? O que aquela determinada
especificidade afegã possui como relativa? Qual posição se toma
sobre ela?
Seria
injusto não perceber uma maior complexidade no jogo de Arthur
Omar. Há inclusive uma fala de Guinness:
“Go, go, go, said the bird, human kind. Cannot bear
very much reality” – que seria, em ordem prosaica, “Diz o pássaro,
vá, vá, vá, humanidade que não pode suportar tamanha realidade”.
Isso é forte, e diz muito sobre a inclinação dos documentários
em contemplar essas raras narrativas espetaculares de sujeitos
raros e espetaculares – que fazem par a essa lógica fundada na
CNN dos anos 90 e pornograficamente corrompida na Fox News dos
anos 2000 em se deter a especificidades dos acontecimentos do
globo terrestre, como guerras e desastres naturais, mostrando
a tecnologia dos aviões e rifles do bem ou os dramas pessoais,
e, com isso, despolitizando esses acontecimentos, roubando-lhes
o seu contexto. É um desvio do olhar para o que importa. É a lógica
do estilhaçamento. Ou, melhor, da imagem translúcida. E, por conseqüência,
da idéia translúcida. Como criar juízo e deixar nossos sentimentos
perceberem algo que não está claro? Como refletir (e sentir) sobre
questões tão fortes como algumas que este filme coloca – como
o homem e sua realidade, a discussão fotográfica (cinematográfica,
portanto) da duração das coisas, o absurdo hipnotismo causado
por um espetáculo insano de homens em cavalos disputando a carcaça
de um animal morto como se fosse uma bola de futebol – se o fundamento
teórico de sua própria realização estética está baseado na citada
teoria relativista de Goethe, inclusive com cartelas estruturando
melhor o pensamento?
Não
é incorreto julgar um artista pela régua da autoria. Mas é cobrado
ao diretor o papel de autor sem um juízo sobre o que tem de ser
essa autoria. Se é um estar no mundo, conjugado com um olhar sobre
esse mundo, é fato que Arthur Omar, como qualquer outro artista
da história da humanidade, nem sempre acerta a espada no duelo
com a vida, com o contexto, com as questões do homem e do mundo.
As convicções expiram fácil quando elas se firmam em postulados,
em princípios que parecem anteriores à ordem dos fatos. O que
era risco no audiovisual brasileiro dos anos 60 e 70 perdeu sua
arma e ganha papel desmobilizador, consonante ao sistema, justamente
porque essa ordem incorporou a modernidade ao seu contento, desvirtuando
seu papel de oposição reflexiva.
O “não” proposto por Omar e outros colegas de geração pode, hoje,
coincidir com um discutível “sim”. Assim, manter um mesmo olhar,
um mesmo cinema, um mesmo projeto estético, parece equivocado
diante dessa nova ordem que amanteiga tudo. Estar em dúvida, sim,
mas não relativizar. Afirmar. Esse
problema, aliás, é algo a ver com a crise das artes plásticas
contemporâneas, sobretudo da videoarte, que parece perdida
em sua autoemulação, sempre optando pela superfície das camadas
e não pela superfície que sustenta e se faz de base para essas
camadas que a escondem. Seria simples: em vez de se ater ao efeito
como fim, de contemplar a polivalência, a profusão e a técnica,
melhor seria ir ao primário, ao simples, buscar uma evidência
e não abarcar todas várias evidências (até porque a tendência
é suspeitar de tudo). Fazer escolhas. Porque não dá para levar
a sério uma pauta que contempla coisas como a representação do
vazio etc.
Arthur
Omar não é isso. E é até curioso como, mesmo embarcado nessas
suas questões de há muito, mesmo com o exibicionismo desta sua
destreza e inteligência sobre a lógica que constrói sua obra,
ele até consegue se libertar desta idéia de projeto e vai
diretamente ao que interessa. São os momentos nos quais vemos
as imagens dos cavalos, cavaleiros e platéia. Sem cartelas, temos
delimitadas intervenções que resultam nas mais fortes idéias do
filme: o tempo, as revoluções que se na manifestam “de dentro
pra fora”. Omar usa seu talento mais natural, de gênio criativo,
ao manipular dentro de um plano estático ou quase estático variações
de evolução, ou seja, entre vários homens parados haverá um ou
alguns que se mexerá(ão) quase à parte. Intervenções visuais
também destacarão certos elementos no quadro, como cavalos que
se “aproximam” mais do que se aproximaram na cena captada. Servem
como um negrito, um destaque, um “veja isto aqui” numa cena bastante
poluída de elementos. A mais impressionante é a de um close-up
do rosto de um cavalo de perfil, com sua boca quase rasgada pelos
arreios, os dentes à mostra, o focinho, as elevações epidérmicas
junto ao bigode, o drama da condição animal que cria paralelismo
com a dimensão humana daqueles cavaleiros e seus companheiros
espectadores. O registro parte de uma tradição “científico-etnográfica”
para encontrar uma desenvolvida e clara exposição sobre
a humanidade e a lógica nonsense na qual se insere na história.
Sem delongas ou esquemas, afirmando qual é sua escolha e juízo
para encontrar o instante, chegando ao magnífico
de todas as artes, quando encontram a dimensão de duração, tempo-espaço,
e que é o próprio sentido da existência.
Abril de 2011
editoria@revistacinetica.com.br
|