in loco - cobertura do É Tudo Verdade

Os Cavalos de Goethe, de Arthur Omar (Brasil, 2011)
por Pedro Henrique Ferreira

Fuga

Cavalos de Goethe traz um ímpeto de ultrarealismo. No Afeganistão para realizar um ensaio fotográfico, Arthur Omar surpreende-se com um ritual de buzkachi (em que cavaleiros brigam pela carcaça de uma cabra) e opta por filmá-lo. Mas, como pode o documentarista contemporâneo fazê-lo? Com o esgotamento das fórmulas de apreensão do mundo que nasceram das experiências de Muybridge e Lumière, o diretor se lança a ampliá-las exponencialmente para escapar de um possível aprisionamento do gênero documental. É uma tentativa de  apreender uma realidade de ordem sobrenatural, “mais real que o próprio real”, um estado sentimental dilatado que brota da afinidade do artista para com seu objeto. Trata-se de uma repentina distenção do tempo, mais fecunda que a realidade palpável – uma experiência, acima de tudo, religiosa que à arte caberia expressar.

Em muitos aspectos, a saída que Cavalos de Goethe encontra ao dilema remete a idéias do romancista e filósofo alemão que o título reverencia. Primeiramente, este ensejo de hiper-realidade encontra sua válvula de escape na forma estética: tableaux de movimentos lentíssimos no tempo distentido, microfusões na superfície da imagem, os jogos de claro-escuro na tonalidade de cores, os poemas no idioma dári, o som atmosférico. Os recursos compõem o amálgama por meio do qual a realidade supraterrena de um acontecimento real se expressa na forma. Em segundo lugar, há um interesse justificado pela euforia do olímpico, a catarse do espetáculo nos rostos, mãos e patas, gerando, através desta cisão da verdade na forma, um sentimento do sublime. Em terceiro lugar, o tratamento da história como fenômeno orgânico a ser romanticizado, citado eternamente como local de fuga do presente – cita-se diversos artistas, de diversas áreas, como se todos convergissem a uma mesma mola propulsora. Em quarto lugar, um certo ensejo de escapismo a um exterior. O estrangeirismo soa como se fosse a única pré-condição possível para esta experiência do sublime tão procurada. Aproxima-se do distante por que o distante é desconhecido, exótico, uma espécie de pós-mortem que se torna um berço de experiências estéticas. Não se defronta com este deslumbre catártico numa partida de futebol ou numa briga de galos, mas em um fenômeno ritualístico distante do autor no Afeganistão.

Exóticos, os poemas em darí são tomados por seu significante, por seu efeito “estético”, ao contrário dos poemas de T.S. Eliot colados na tela como significados. Assim, esta “viagem obrigatória” é a condição do deparar-se com eventos desconhecidos. Mais uma instância deste ímpeto absoluto de fuga, que termina, igualmente, sendo uma fuga para os aspectos formais, para a superfície significante do mundo. Já nos anos 70, Arthur Omar foi um pioneiro desta expressiva escapatória da “jaula do real” dentro de uma extensa tradição de documentaristas influenciados pelos achados da vídeoarte – pensemos em Carlos Nader, Joel Pizzini ou Marília Rocha. Mas a solução de Omar deste trabalho, a que o autor por vezes se referiu como sua “obra-síntese”, termina por fugir para um local tão problemático quanto.

A idéia do artista como um alquimista, se não chega a ser nefasta, é ao menos irrisória. Para seu desvelamento, Cavalos de Goethe, de modo muito assertativo, nos pede um pouco de crença misticista. A realidade idealista do primeiro Goethe, aquele do Sturm und Drang, era uma válvula de escape dos ideais de beleza rígidos do neoclassicismo, que deveriam ser ultrapassados pelo furor da escrita mais imediata, fugindo para outro lugar, mesmo que ao custo de um suicídio. Em suma, tratava-se de um desespero. Mas Cavalos de Goethe não tem desespero algum. E nem furor. É demasiadamente afirmativo, e tem certeza desta verdade poética além da matéria.

Mas o cinema é dado à matéria: no que diz respeito a Lumière e Muybridge, estes ainda queriam apreender um real mecânico, palpável. Por isto, os rostos dos cavaleiros e espectadores em slow motion, pelos cinco minutos iniciais, ainda são o que há de mais vigoroso no trabalho. Mas, para o diretor, isto não parece ser o suficiente. O real que deseja só se expressa, de modo muito obtuso, na distorção da forma. Pelo restante do filme, por mais entregue que o espectador esteja, assistindo à catarse dos outros sem em momento algum conseguir participar da seita, o que nos resta não é senão algumas curiosidades técnicas. No duro, Cavalos de Goethe escapa de um dilema violentíssimo, que diz respeito às próprias condições de existir do documentário. Mas o faz em direção a um lugar, na melhor das hipótese, vago. Um contrato de fé, neste caso, é pedir demais.

Abril de 2011

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