007 - Cassino Royale (Casino Royale),
de Martin Campbell (EUA/Inglaterra/Alemanha, 2006) por
Paulo Santos Lima
Corpo em evidência O
corpo de James Bond é o fim e o princípio de 007 – Cassino Royale. No caso,
o corpo de Daniel Craig, maltratado durante todo o filme, como uma massa sendo
moldada pelo mundo. Porque este filme de Martin Campbell é sobre a moldagem final
do agente James Bond, logo antes dele ser “Bond, James Bond”. Na
seqüência inicial, em preto-e-branco, a primeira aparição do agente se faz clandestinamente,
na escuridão, no canto do plano e em profundidade de campo. O preâmbulo ilustra
o herói obtendo seus dois zeros, que lhe dão permissão para matar. São dois assassinatos:
um deles, relâmpago, e o outro filmado com cortes secos e com câmera colada ao
rosto anguloso do herói, mostrando sua tensão enquanto luta violenta e desesperadamente
com o vilão num banheiro. No final dessa introdução, Bond, revidando o ataque
rival, lhe dá um tiro certeiro - avistado do ponto-de-vista do perdedor, no contracampo,
ou
seja, em direção à tela, repetindo a famigerada vinheta que foi o primeiro plano
dos outros 20 filmes oficiais da série. Já na última seqüência, 007 (em cena de
franca justiçagem), chega implacavelmente a um inimigo que vinha orquestrando
o crime pelos bastidores, atira em sua perna e, frente à frente, revela sua identidade
ao canalha: “Bond, James Bond”. Da primeira à última seqüência, fica claro que
007 – Cassino Royale é um grande aquecimento, um filme-genealogia que conta
os precedentes (brutais) do mito James Bond. Isso está na própria vinheta: selo
simbólico da série e imagem que até então deu conta dela própria como imagem (um
círculo com um galante espião atirando precisamente em direção a nós, à tela),
agora vemos sua confecção, em situações não menos que violentíssimas. A
violência é a ferramenta que faz a carpintaria de Bond, limando arestas e dando-lhe
especiais ranhuras. É como se assistíssemos à versão “agente secreto” de Gangues
de Nova York, que traz a violência como elemento formador (no caso, de um
país, os Estados Unidos, representados simbólica e metonimicamente por Nova York).
A diferença é que o agente 007 se faz como resposta a um mundo pré-existente.
Não é por menos que, repetindo a tradição dos outros títulos, este longa de Campbell
trava correspondências com o contexto político do momento em que foi feito. Apesar
de estar falando dos primeiros tempos do herói, a história não se passa em momento
anterior a 007 contra o Satânico Dr. No (o primeiro título oficial baseado
da obra de Ian Fleming), mas sim na contemporaneidade. Portanto,
o diálogo também não se faz com os antecedentes: o Bond que vemos hoje é um pedaço
de carne, um ser sobremaneira existencial, jamais portador de um repertório simbólico,
como seus antecessores no cinema. Não é Sean Connery, por exemplo, que desde o
primeiro longa, de 1962, já carregava bandeiras (da virilidade, do sonho machista
ilustrando a vitória do bloco ocidental sobre o soviético na Guerra Fria) até,
nos títulos seguintes, manter a mítica de James Bond. Nem Roger Moore, que nos
anos 70 mangava em cima da imagem do mito 007, notadamente dialogando com a aura
do personagem. O
James Bond deste Cassino Royale está num mundo órfão de ideologias políticas,
o de 2006, com a economia regendo os interesses transnacionais, inclusive pautando
o terrorismo, que ataca alvos para fazer ações da Bolsa subirem ou despencarem.
Tricotando com o terrorismo econômico, está Le Chiffre, banqueiro de terroristas,
que responde a um grupo que está acima dele, na invisibilidade e espraiado em
diversos meios. Se ele não parece expressivo ou marcante como outros vilões da
série, isso não se dá pelo semblante do ator Mads Mikkelsen, mas porque ele não
é único, e sim parte de algo que parece maior que a abertura da lente da câmera
pode varrer. A missão magna de 007 não será destruir um complexo tecnológico,
mas jogar, financiado pelo governo britânico, contra Le Chiffre no Cassino Royale,
em Montenegro. Como alguém diz em certo momento, se Bond perder “o governo estará
financiando o terrorismo no mundo”. Não
há mais aqui uma organização criminal como a SPECTRE, que tinha cara, dono reconhecido
pela câmera, com imagem na tela, e aparecia gigantesca, entre foguetes, raios
mortais, maquinaria hi-tech e silos incrustados no subsolo de ilhas paradisíacas.
Esse James Bond contemporâneo lida com abstrações, rostos flutuantes, virtualidades.
O foco possível (dele e do filme) estará na maior parte das vezes nas pequenas
passagens. Assim, o filme pende entre
os planos abertos exibindo todo o maquinário do espetáculo do cinema de ação (o
mais bem filmado de toda a série, estendendo a aventura ao limite do dramático,
com uso de lentes diversas e montagem costurando os planos de panorâmicas e travelings
- com atenção sempre nos seres, não nas coisas) e os enquadramentos fechados,
olhando as superfícies faciais de Bond e de suas bondgirls enquanto escutam
alguns diálogos inspiradamente hitchcockianos - sobretudo quando envereda no “gata
e rato” entre Bond e a arredia Vesper Lynd (que não é mais uma gostosa, mas sim
uma bela e inteligente tesoureira do governo, inclusive levando o filme para uma
pausa romântica que só reafirma que este 007 ainda corre na calçada da inexperiência). Desprezando,
então, a visão macro dos anteriores, que mostrava os órgãos que trabalhavam para
um mesmo organismo, o novo 007 – Cassino Royale é um filme sobre o drama
de um homem. Um drama que chega, para nós, cinematograficamente, através da imagem.
Basta o olhar atormentado de 007 defronte o espelho, machucado, ensangüentado,
goles aflitos de uísque para recuperar o ânimo, após matar com as
próprias mãos um adversário. Resta ao filme o corpo como começo e fim dos acontecimentos.
Não o corpanzil utilizado pelos action actors dos anos 80, Stallones e
Schwarzeneggers. Bond não é uma anta, ele pensa até, mas é com seu corpo (sua
imagem na cena) que o filme narra os acontecimentos sem que a palavra sufoque
o cinema. Até o elegante smoking, reserva inexpugnável dos outros Bonds, é estraçalhado
nessas execuções selvagens, nos envenenamentos, acidentes automobilísticos e surras
que leva (inclusive nas partes baixas). O filme comenta esse “lado B” com planos
fechados do herói presenteado com cortes, hematomas, sangue em corredeiras, esfacelamentos.
Um “outro lado” que impede mitificações, porque a imagem apresenta contaminações
de outras caracterizações, como a dos sádicos vilões do cinema. Em
tempo: vale dizer que, salvo exceções (o ineditismo de Dr. No; o passo
além como thriller de espionagem de Moscou contra 007/1963; e as ousadias
paródicas da era Roger Moore - a perda da inocência dos anos 70 muito bem formalizada
em 007 contra o Homem com a Pistola de Ouro/1975 e a sintonia com o frenesi
de Caçadores da Arca Perdida em 007 contra Octopussy/1983), a maioria
dos títulos oficiais não resolveu em imagens o seu momento histórico - sobretudo
os filmes dos anos 90, com o personagem em crise pós-queda do Muro. Nesse contexto
é que 007 – Cassino Royale é, certamente, o melhor exercício cinematográfico
de todos os 21 Bonds levados oficialmente para as telas.
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