A
Casa de Sandro, de Gustavo
Beck (Brasil 2009)
por
Fábio Andrade
O
esvaziamento do afeto
A
Casa de Sandro começa com seu mais sintético e belo
plano: um sapo boiando, paralizado, em uma piscina. A câmera insiste na fixa observação
e, aos poucos, as pernas do animal parecem se mover quase espasmodicamente. Depois
de mais de um minuto, o sapo, como que despertado por uma energia emanada pela
câmera, nada para a borda da piscina. O plano é essencial para além do maravilhamento
(perceptível nas reações entusiasmadas da platéia), pois declara os princípios
de interação que serão trabalhados ao longo de todo o filme: a abordagem do cinema
como ferramenta de observação, mas de uma observação que contamina o que é filmado
e estabelece, com isso, uma nova relação. A cena, portanto, é a seleção de um
olhar sobre um mundo aparentemente adormecido que – pela espera, ou pela retroalimentação
(dependendo da crença individual nessa operação) – se revelará para a câmera.
Em um primeiro momento, Gustavo Beck e equipe observam
Sandro nos diversos ambientes de sua casa de fazenda. Interpostos aos “momentos-Sandro”,
temos vistas de sua casa – essa sim, personagem que, estranhamente, dá título
ao filme – e arredores, filmados, geralmente, com lentes mais abertas. Sandro,
por sua vez, ganhará enquadramentos distanciados em tele-objetiva, extremamente
bem compostos, mobilizados em panorâmicas de limites surpreendentemente bem delimitados
para uma observação estritamente documental (lembrando, pela fluência e precisão,
os documentários de Jia Zhang-ke). A
opção de lentes começa, porém, a derrubar a primeira relação exposta em seu título:
casa e Sandro parecem raramente interagir, pois a tele-objetiva usada para filmar
o personagem o isola em foco extremamente seletivo, desconectando-o do ambiente
que o cerca. Esse ambiente aparece sempre mediando a filmagem – os objetos desfocados
tomam, por vezes, o centro visual do quadro – mas o rigor plástico desse enquadramento
não parece se construir como discurso. Há uma observação e ela é extremamente
entrecortada, e isso é tudo que os quadros parecem querer dizer. Na primeira metade
do filme, observamos Sandro em tarefas ordinárias com o mundo que o cerca, passando
com um certo constrangimento pela relação com o exterior (as cenas à tv e ao telefone,
onde o personagem não expressa qualquer vontade de se comunicar) e as pessoas
à sua volta (o distante e único momento de interação com sua companheira ou a
secura cordial para com sua empregada doméstica). Essa certa
indiferença do olhar faz lembrar Liverpool, filme de Lisandro Alonso em
que uma personagem vaga por um espaço sem conseguir concretizar relações que se
apresentem como significativas. Em vez disso, temos uma personagem em errância
letárgica, absorta na contenção de sua própria presença, observada sem indício
mais claro de intervenção ou coerção por parte da câmera. Não há, aparentemente,
vontade de construir um discurso a partir de Sandro para além da relação entre
corpo e câmera, em planos sempre duradouros, sempre presos a um eixo físico, quase
sempre distantes e mediados. Até que nos vemos em um ateliê de pintura. Sandro
põe uma tela em branco no cavalete, e começa a riscar alguns quadrados em tinta
preta. Acompanharemos, de maneira fragmentada, a confecção desta obra. A
revelação súbita de que Sandro seria um artista parece esboçar um primeiro traço
de interesse por aquele universo: assim como o sapo tem seu tempo particular para
sair do repouso, a obra-de-arte é fruto de um momento anterior que é ocioso enquanto
produção artística. Os estágios de ócio que antecedem a pintura espelham o processo
do filme, pois a banalização (a rigor, bastante saudável) da criação artística,
a partir da abordagem conscientemente esvaziada na filmagem, reconfigura o que
havíamos visto até então. A espera parece, enfim, se mostrar o tempo necessário
para o sapo começar a se mover. Esse breve indício de discurso será, porém, complicado
por um retorno posterior ao ateliê: Sandro pega um outra tela, já pronta, e começa
a recobri-la com tinta branca. Em pinceladas de eterno retorno, a obra volta à
aparência de um suposto primeiro estágio, onde tornaremos a aguardar o despertar
de um mundo novamente sonolento, mole e entorpecido. Com esse movimento, Gustavo
Beck parece trazer o discurso novamente para o plano da realização, onde o trabalho
do artista se instala na montanha de Sísifo: a relação de afeto estabelecida na
confecção de uma obra é mais importante do que seu resultado. Essa
relação, porém, é sempre coagida para a margem do quadro: um cochicho entre diretor
e operador de câmera fora do quadro; o enquadramento da kombi que transportava
a equipe; uma última e decisiva entrada em quadro pela equipe do filme, no jantar
com Sandro que encerra o filme. Há, portanto, um inegável desejo de valorizar
a relação – algo que, por si só, é um caminho bastante legítimo para o cinema,
documental ou não. As opções estéticas feitas por Beck levam, porém, o filme para
um entruncamento bastante problemático, onde o dispositivo de feitura parece substituir
o filme. Estaria esse suposto afeto impresso na distância receosa assumida em
sua estratégia de observação? Mais do que isso: o que apreendemos, de fato, dessa
relação, para além do fato de sabermos que ela existe e foi conscientemente registrada
por uma câmera? Pois, se A Casa de Sandro é o registro
de uma relação, a ausência de questões levantadas por essa relação leva a uma
inevitável pergunta: seria ela especialmente digna de um registro, se as amarras
desse registro (uma necessidade de se ater à cronologia da filmagem; a articulação
entre equipe e Sandro, pontual demais para se tornar um ponto de fuga para o filme)
parecem anulá-lo enquanto discurso? Seria todo registro, por mais rigoroso em
seu conceito que ele venha a ser, uma obra de arte? Existe uma distância entre
os grandes filmes de observação (indo de Lumière ao cinema de Wang Bing – passando
por Don`t Look Back, Cocksucker Blues, In Public e tantos outros
filmes) e o simples registro do mundo, e essa diferença vem da manipulação dos
elementos do meio para uma expressão artística particular que está além desses
elementos individuais. A obra-de-arte é fruto de uma contradição, pois ela precisa
ser suficiente em sua autonomia, mas produzir algo (um sentimento, uma reflexão,
uma idéia) para além de seu domínio. Falta a A Casa de Sandro justamente
esse salto do conceito para o filme; do registro para a obra de arte; da integridade
para o risco; da morosidade para o movimento. Aquele sentimento de contágio, construído
no primeiro plano, parece, aos poucos, se esvaziar em uma posição realizadora
que se contenta em registrar. É essa a diferença entre reportar o afeto, e construir
um filme plenamente afetuoso. Janeiro de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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