A Casa de Alice, de Chico Teixeira (Brasil, 2007)
por Ilana Feldman

A casa abandonada

A casa de Alice, primeira ficção do documentarista Chico Teixeira, revela um universo bem pouco explorado pela cinematografia nacional. Longe das periferias e dos segmentos “médios” mais abastados da burguesia, o filme concentra seu olhar na vida de uma família de classe-baixa, moradora de um edifício popular em algum bairro da cidade de São Paulo. A partir do espaço delimitado da casa, somos apresentados, logo na primeira sequência, a seus cômodos desarrumados sob a luz da manhã: uma cama de casal desfeita, um quarto com o beliche bagunçado, a sala ainda desabitada e a cozinha, o cômodo mais expressivo e acolhedor dessa casa.

Alice, manicure, e sua mãe Jacira, dona-de-casa aposentada, são as personagens por meio das quais adentramos o espaço da casa e do cotidiano da família. O que não significa que a percepção do filme esteja colada às percepções de Alice e Jacira. Antes, o filme as observa, observa atentamente os espaços da casa, escuta concentradamente seus sons, estabelecendo com elas, e entre elas, uma relação pautada por uma sutil intimidade e por uma discreta solidariedade – manifestas, sobretudo, em um eloquente momento de compreensão no silêncio (quando as duas, encostadas à noite no parapeito da área de serviço, olham a esmo). Mãe e filha, filme e personagem: não é de todo descabido associar ao filme um tipo de maternidade.

Alice recebeu um nome cujo significado está associado à verdade, já o nome de sua mãe, Jacira, à doçura. Conotações das personagens femininas, encarnadas pelas expressivas atrizes Carla Ribas e Berta Zemel, que informam e amalgamam o próprio projeto estético de Chico Teixeira. Filiado a certo realismo-naturalista contemporâneo, presente na premiada filmografia dos irmãos Dardenne e, como referência ainda mais evidente, no pujante O pântano, de Lucrecia Martel, A casa de Alice parece almejar fundir essas duas vertentes de um realismo-naturalista internacionalmente prestigiado.

De um lado, a observação mais seca, a ausência de qualquer som que não venha do espaço diegético e a valorizaçao da experiência fenomenológica dos personagens comprometida com a expressão de uma verdade – muitas vezes marcada pela ambigüidade. De outro, uma observação que, ao diminuir a distância entre o olhar e os espaços, entre a câmera e os corpos, se aproxima afetivamente de seus personagens, valorizando, por meio de uma contida ternura, afagos, tensões físicas e latências sexuais. Alice transita, assim, entre a experiência no mundo (o mundo da casa e o mundo do trabalho) e a experiência de seu corpo no mundo (o mundo do desejo).

A partir então da utilização de figuras de linguagem e de procedimentos estéticos e dramatúrgicos filiados a um “apelo realista”, A casa de Alice constrói efeitos de verdade e de real por meio de um afeto discreto e discretamente sensual. No entando, diferentemente dos Dardenne (em Rosetta, O filho e A criança, por exemplo), não há um esgarçamento da experiência e, por consequência, da narrativa. Do mesmo modo, a modorrência, como a que se instala em O pântano, as não-ações e os contatos físicos que emergem nesses momentos são por demais controlados e funcionalizados em A casa de Alice.

Chico Teixeira acerta ao trabalhar com espaços confinados e bem recortados por seu seletivo olhar, ao trabalhar com lugares quaisquer, mas jamais com qualquer lugar. Porém erra ao não acreditar, profunda e convictamente, nas (im)potências de uma experiência temporal. Nesse sentido, o que se perde é a possibilidade da construção de um senso de cotidiano mais pregnante, de um senso de rotina, extenuante pela possível automatização das ações, por um lado, mas imensamente prenhe de errâncias, deslocamentos, hesitações, desautomatização dos gestos e derivas.

Alice, manicure de um salão, passa todo o filme atendendo a uma mesma cliente, Carmem, cuja presença na narrativa, bem como a posterior ausência, é excessivamente funcionalizada. Não temos acesso ao cotidiano de seu trabalho simplesmente porque ele não atende a uma narrativa por demais roteirizada. Não temos acesso a um senso de rotina simplesmente porque a montagem parece querer eliminar tudo aquilo que não sirva a propósitos dramáticos claros e pré-determinados. Em A casa de Alice, a montagem parece também não acreditar, engajadamente, na proposta dramatúrgica de que parte o filme.

Em vez de confiar que os sentidos possam ser extraídos do material, por meio de uma organização mais tênue e não-funcional, a montagem organiza o mundo de Alice excessivamente. Até as elipses e os ocultamentos, estratégias narrativas tão interessantes, assemelham-se mais a soluções de roteiro que, de fato, a uma marca temporal, a uma possibilidade de encobrimento de uma experiência fugidia, sobre a qual não temos controle. Nesse sentido, A casa de Alice parte de procedimentos estéticos e dramatúrgicos modernos, mas continua refém de uma estrutura narrativa ainda bastante clássica e controladora: excesso de situações dramáticas, conflitos adensados, viradas de roteiro, personagens funcionais e soluções “ex-machina”.

Também a fotografia, quando capta as cenas das refeições à mesa, alterando e alternando sucessivamente o foco dos rostos dos personagens – os três filhos de Alice -, adere a um tipo de maneirismo que inconscientemente parece querer delegar à movimentação da câmera uma suposta ausência de ação na cena. Mais uma vez, falta aí a crença. Porém, em diversos momentos, essa ausência de convicção e de engajamento no tempo é amenizada pela presença sóbria e comovente de Jacira, mãe de Alice, sogra de Lindomar e avó de Lucas, Edinho e Júnior.

Como é Jacira dona-de-casa e a verdadeira dona da casa, é permitido a ela experimentar, de modo efetivo, a duração e a trivialidade de suas ações: arrumações da sala, lavagem das roupas, preparação da mesa para o almoço, movimentações pela área de serviço e deslocamentos por sua cozinha. Jacira é quem mais exerce a observação, atenta e sapiente, e seu olhar coincide, diversas vezes, com o olhar do filme. Por isso sabe até o que não deveria saber, condição que a faz sofrer com uma visão que às vezes lhe falha. Desde Édipo, a cegueira é o preço que se paga por quem sabe demais.

Talvez seja por saber em demasia que Jacira se abandona à própria sorte. Jacira sabe e, por isso, diferentemente dos outros, acredita e confia. Mas o abandono não é só de Jacira, largada em um asilo pelo genro e por um dos netos com quem mais tem cumplicidade. A casa, os filhos, o marido, as traições, o peso, as disputas e as tensões também são abandonados por Alice, que, por sua vez, é abandonada pela promessa de felicidade, leveza e prazer oferecida pela possibilidade de passar algum tempo – dias, meses, anos? –ao lado de seu amante. Alice, na tentativa de abandonar, é antes abandonada, não apenas pelo amante, mas pelo próprio filme. Filme como uma mãe que, por não suportar mais, precisa deixar seus “filhos”.

A casa de Alice acaba por revelar-se um filme sobre o abandono, mas o abandono não apenas como um universo temático com o qual se trabalha. Ao terminar de um modo inacabado, inconcluso e rarefeito, em meio a uma ação (o olhar de Alice) e ao gosto do cinema moderno, o filme abandona, enquanto efeito dramático, seus próprios personagens. No entanto, Jacira é “salva” por uma frivolidade que ilumina toda a sua vida – como conseguir, enfim, e ainda que de um asilo, conversar com o locutor de sua rádio favorita, em um dos planos mais tocantes do filme, no qual dá as costas para a câmera enquanto fala ao telefone. Já Alice, na última sequência, longe de casa e na mesa de um bar, aguarda, com o olhar apreensivo, o que lhe reserva o próximo instante.

Essa condição inacabada, inconclusa e abandonada dá a A casa de Alice, a despeito de sua demasiada organização, um frescor de filme-ensaio. Filme que se ensaia na medida em que revela uma espécie paradoxal de busca: encontra algo que não procura, encontra o que parece não estar previsto. Seja uma potência ou uma impotência, o que importa para Jacira e Alice é que, mesmo abandonadas, lhes fora oferecida uma possibilidade.

Setembro de 2007

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