cartas dos leitores
Humores de São Paulo

Cléber,

Achei interessante a abordagem do "em trânsito" do seu texto, mas gostaria de comentar principalmente sobre o "senso trágico" e a raridade de humor (pelo menos dos filmes paulistanos que têm se mostrado mais relevantes). Fico pensando se tudo não pode ser explicado pela própria formação histórica da cidade; São Paulo é pluricultural, mas essencialmente "metacultural" (desculpe o termo, não achei nada melhor), no sentido de que a cidade recebeu muita cultura, mas pouca coisa pode ser chamada de "paulistana". As culturas são transformadas, achatadas e simplificadas muitas vezes, para incorporarem-se a um gosto que fundamentalmente tem sido burguês. Quero dizer que cultura em São Paulo é transitória: chega, se instala, muda, vai embora, volta e assim vai, meio que na balada da burguesia paulistana. Não acho que o modernismo e a antropofagia tenham surgido em SP à toa, pois refletem muito sobre aqui.

Mas o que isso tem a ver com o peso trágico paulistano? Acho que todo o peso se dá porque aqui as pessoas não encontram seu antepassado, encontram sempre em outro lugar; São Paulo sempre foi um lugar de encontro com a vastidão do esquecimento de si – vide os poetas romanticos da SP de 1850. Os filmes de agora talvez estejam refletindo um auge de "deslugar" de SP e o peso de descobrir que você é de um lugar que é tudo, mas que esse tudo é de outro traz um elemento trágico dantesco. Não temos carnaval; nosso samba é mais "chorinho"; nosso futebol, profissional; como rir num cenário desses?

Bem, isso são só coisas que passaram pela minha cabeça enquanto lia a terceira parte do seu texto (o que significa que de fato ele me interessou). Me incomodo em ser um cidadão paulistano e ver que os filmes tem um peso trágico e pouco humor, pq acho que temos muitos humores possíveis, mesmo para esse imenso "deslugar".

Abs

Raul Arthuso

* * *

Raul

Em primeiro lugar, fico feliz por meu texto (motivado pelos filmes) ter motivado sua reflexão. Fico ainda mais feliz que tenha compartilhado sua reflexão conosco, motivando (sempre motivações – motivos das ações, mote de reflexões) novos pensamentos do lado de cá. Isso não é uma resposta, mas um retorno, porque esse assunto renderia ensaios. Portanto, encare como esboço mais do que como uma colocação.

Sua hipótese para uma certa raiz desterrada "dos de São Paulo" parece coerente, mas para além dos filmes. Ou seja, pode ser sim uma entre outras razões para esse senso trágico – embora eu acredite que não chegue a explicá-lo, porque senão a relação "filmes-realidade" seria direta demais, com os filmes refletindo muito claramente os processos históricos da cidade onde se situam. E nunca é exatamente assim. O senso trágico tem a ver com o controle e o descontrole dos personagens sobre suas vidas e sobre a vida de quem está por perto, tendo a cidade como sujeito dessa tensão controle/descontrole. Isso está melhor explorado no texto de Ilana Feldman. A incapacidade de planejar os passos ou de executar o planejamento, em um espaço em que uma série de ações estão em andamento, muitas delas em direção contrária a dos personagens ou em colisão com eles (os atropelamentos nos filmes), parece ser uma questão fundamental para esse "senso trágico", que nem sempre é levado ao cabo. Em alguns casos, sai-se do registro da tragédia, ao menos parcialmente, para se salvar o personagem de um fim em queda ou engarrafado. Em alguns, o sinal fica amarelo, em outros verde, entre a espera e o siga em frente.

Nada disso, enquanto dramaturgia, é exclusivo de São Paulo. Isso em si não é paulistano. Torna-se paulistano quando essa estratégia dramática de lidar com percurso de personagem passa a ser recorrente nos filmes, quando começamos a ver que existe uma cultura de filmes paulistanos, um certo tom, temperamento, atmosfera e mesmo linhas dramatúrgicas, que são muito fortes nos filmes ambientados na cidade, independentemente de onde seja o cineasta. Mas talvez possa haver alguma novidade com a série Alice (que, por não ter HBO, não poderei acompanhar, mas que, como universo, me interessa imensamente). O que me interessa, sobretudo, Raul, é o olhar para um lugar que, nos casos abordados, guardam alguns pontos de contato, mas também muitas distinções: o fim de Nina ou de A Casa de Alice, por exemplo, não estão no mesmo diapasão do fim de Não por Acaso (em Nina, sinal vermelho; em A Casa de Alice, sinal amarelo; em Não por Acaso, sinal verde).

Mas não acho que esse olhar para esse lugar (SP) não pode ser visto como o próprio lugar ou um olhar que capta os ânimos, humores e energias desse lugar de maneira ampla. Na verdade, os filmes captam recortes, mediados pelos ânimos, humores e energias desses realizadores de cinema, a maioria pertencente a uma "safra histórica" de realizadores surgidos a partir dos anos 90 do século 20. Gente hoje na casa dos 30/40 anos. Ou seja, esses são olhares de uma geração, olhares para uma cidade em determinado tempo histórico específico e olhares de um segmento específico da sociedade (cidadãos que fazem filmes). Óbvio que podemos ampliar, mas, como ponto de partida, é preciso circunscrever, de modo a não tomar algo mais específico como a visão geral e generalizada para o cinema feito em um lugar e para o próprio lugar.

Eu acho que há humor nos filmes de Ugo Giporgetti, mesmo sendo um humor cada vez mais amargo, mas não sei se o desterramento e a transitoriedade, como colocado por você, pode ser a grande razão disso. Acho que a razão, em certo sentido, também é cultural. O carioca nasce sabendo o que é o papel cultural do carioca no país. O humor está entre eles. A celebração, acima de tudo. E o paulistano ou quem aqui mora? Qual é seu papel?  Certamente, não é fazer humor, culturalmente falando.

Estou apenas divagando com você...

Em relação à transitoriedade, sim, acho que os filmes captam isso, tudo está em trânsito, nada está acabado. Pouca coisa permanece. Será por isso que prefeitos aqui não são reeleitos? Mas o contrário do trânsito, de maneira ampla, não seria a estagnação? Ou será a tradição? Ou a tradição está em trânsito? Em Linha de Passe, ouvimos ao final, "anda... anda... anda...", e acho que, no fundo, de forma direta ou metafórica, toda a questão desses filmes está em, por diversos caminhos, deslocar, realocar, estagnar ou cair.

Abraços
Cléber Eduardo


Setembro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br

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