cartas dos leitores
A crítica: métodos, critérios, políticas II:
Perto de Casa


Fábio,

Te escrevo, pois li a matéria do Cine Esquema Novo escrita por vc, que de maneira geral achei boa e acertada, inclusive em sua análise dos filmes que lá foram exibidos. Meio que obviamente te escrevo por não ter concordado com sua rápida análise de Perto de Casa e querer debater contigo.

"Tão somente um simpático registro familiar, com todas as reviravoltas de estômago que a facilidade dessa exposição trazem consigo." Não ter concordado não significa deixar de entender que o texto está sendo escrito por uma pessoa, que tem uma opinião subjetiva e que está no papel de revelar sua opinião. Aliás essa é uma crítica comum a esse tipo de proposta de "registro familiar", vc não é o único, claro. E há outras opiniões sobre o filme que não são a mesma que a sua, como a do próprio júri do festival que concedeu uma menção ao trabalho “pela atenção à picardia e pela felicidade na relação cinema, família e mundo”.

O que me chamou atenção foi o seu discurso dentro e fora (em conversas de bar em POA) do texto que sugerem  que os filmes que não trabalham com vigor (e anteriormente) a linguagem cinematográfica não são cinema ou não são obras de arte. No seu texto, vc cita mais uma questão de dramaturgia, de filmes indefinidos, mas acho esse é um olhar que vai além e cai num problema comum a críticos e curadores cinéfilos e estudantes das teorias e técnicas do cinema, que é, como me referi, a de não dar muita bola a filmes que não tem um trabalho de articulação de linguagem explícito. Considero um erro, até porque um dos grandes problemas do cinema atual é o excesso de linguagem. É o de vermos o rastro do roteiro, do diretor, de suas propostas estéticas, dramatúrgicas, etc, se sobreporem à cena que poderia fluir e ser viva para quem experiência o filme. A falta em geral é muito mais criticada e o excesso perdoado pelos críticos.

No caso de Perto de Casa, é um trabalho que só resolvi pôr pra ser exibido em festivais porque, apesar de ser simples e se dar a partir de um registro, (num certo sentido até mal registrado, se formos pensar nos movimentos da câmera, por exemplo, ou na diferença de texturas) ele contém de uma maneira não muito elaborada, mas com certeza clara e marcante, uma provocação a respeito da sexualidade, da educação familiar e da inocência da infância. E essas questões, colocadas de maneira despretensiosa, não a partir de uma elaboração de linguagem, mas a partir do simples desdobramento de fatos acontecidos "ao acaso" é que se comunicam (sempre bem, em todas as sessões que acompanhei) com o público e levantam essas questões que mencionei anteriormente. Mérito do acaso? Ou mérito de quem escolhe o recorte para apresentar ao público? Mérito do espetáculo causado pela sensação de intimidade possível apenas por quem usa a "exposição fácil" como vc diz, de explorar a família? Ou pela percepção de quem detém esses arquivos, de que há uma pulsão e uma potência nas imagens que será impactante ao espectador, mas não apenas impactante, mas também gerador de reflexão e de sentidos, se aproveitando da leveza, do humor e da despretensão do registro?

O registro, o encontro, parecem algo muito fácil, mas pegue uma câmera e saia pra rua e você verá que não é bem assim. Existe trabalho, técnica e principalmente sensibilidade envolvidos nesse tipo de proposta, e que muitas vezes, muitas mesmo, trazem imagens e filmes muito mais potentes e interessantes. Não acredito, como vc parece acreditar, que esse tipo de ação não corresponde à elaboração de um trabalho artístico. Fácil, e até ingênuo, é se apegar a uma rápida impressão de que é fácil. Acho também extremamente simplista pensar no "registro familiar" como facilidade e exposição. Vejo mais como um campo fértil de revelação da experiência humana mais à flor da pele, onde o limite da ética pode ser mais discutível e por isso mesmo muitas vezes mais potente e revelador. Um campo fértil para se articular  imagens em movimentos e sons de forma profunda e sensível, superando a falsa questão do documentário e da ficção.

Obviamente o Perto de Casa não se aprofunda num possível campo de pesquisa de encenação e de relação, o que o torna propenso ao tipo de crítica que vc fez. Mas ainda assim acho que o seu comentário rápido atua mais no sentido de usar o filme para se encaixar nas suas hipóteses de crítica audiovisual do que há um olhar maduro e sensível pra verificar o que revela por detrás da aparente facilidade e da real, mas funcional despretensão.

Em todo caso, parabéns pela matéria e até um próximo encontro.

abç
Sérgio Borges

* * *

Sérgio,

Obrigado pela mensagem e pelos questionamentos, que certamente servirão para esclarecer algumas das posições tomadas no texto e na vivência crítica aqui na Cinética.

Acho necessário apontar algumas discordâncias fundamentais que tenho em relação ao que você disse. Não acredito que exista um excesso de linguagem no cinema, como não acredito que possa existir um excesso de linguagem na fala. A linguagem é uma ferramenta, e como tal ela pode ser usada de maneiras diferentes. Não vejo, portanto, a possibilidade de se falar ou filmar com mais ou menos linguagem, pois isso já implica em um juízo de valor que não me interessa. Acredito, portanto, que a linguagem possa ser usada para determinados fins, onde estão igualmente incluídos os desejos pelo excesso e pela transparência.

Não argumento em meu texto a favor de uma dramaturgia mais tradicional, como talvez você tenha mal compreendido, mas sim da articulação dos elementos de linguagem que o filme escolhe usar, para os fins que ele determina para si. A partir do momento em que uma câmera é apontada para algo, temos ali uma série de variantes (distância, lente, condições de luz, movimentação, etc) que produzem uma relação. O diretor pode usar esses elementos de diversas maneiras, mas sempre – da observação mais distante à interação direta – produzindo sentidos. Acho ingenuidade acreditar que um filme mais “contido” use menos linguagem do que um filme calcado em “excessos” – ambos fazem uso da mesma linguagem, apenas com recortes diferentes. Deleuze dizia que a melhor maneira de se chamar atenção para a câmera é deixando ela fixa. Acho que, nesse caso, ele tinha razão.

Quando falo da “facilidade de exposição”, não me refiro exatamente à questão familiar, ou privada (termo que me parece mais apropriado). Gosto muito de alguns filmes realizados por cineastas que tiram força justamente desse recorte – sejam eles os filmes-diários de Jonas Mekas, os documentários familiares de Naomi Kawase, ou mesmo as auto-ficções barrocas de Terence Davies. Não vejo, porém, um vínculo (positivo ou negativo) da força com a questão privada, inclusive por alguns filmes serem mais interessantes que outros. O interesse me parece proporcional ao quanto eles usam o particular como impulso para questões artísticas. Se eu tenho enorme interesse por um filme como Tarachime, por exemplo, não é por ele registrar certas situações familiares, mas sim por trabalhá-las de maneira com que elas alimentem as inquietações da própria obra. O meu incômodo diante de certos filmes – e no caso do CEN, o único que trabalhava em esfera privada a me provocar essa sensação era o seu – vem da ilusão de que a simples exposição de uma situação é, por si só, um discurso artístico de força. Acredito, sim, que o cinema sempre será uma forma de registro, mas reduzi-lo somente a isso me parece subestimar muito sua potência. Lumière filmava o movimento do mundo, mas o fazia com uma enorme sensibilidade plástica, pois tinha consciência de que ao artista não cabe somente registrar o mundo, mas sim registrá-lo de uma maneira que lhe seja particular. Acredito ser essa a diferença entre o cinema e a reportagem: estamos falando de arte, não de taxonomia.

O meu incômodo, portanto, é de ver filmes que encaram o registro de questões – que sim, estão lá em Perto de Casa, mas me parecem pertencer mais a seus filhos do que ao filme em si – como algo suficientemente forte. Não acredito que o caminho seja por aí. Já vi o Perto de Casa em duas sesssões diferentes e sim, o público estabeleceu uma relação forte e imediata com o filme. Acredito, porém, que a crítica não deve ser termômetro de sessões de cinema ou guia de programas, e precisa se posicionar criticamente também em relação às escolhas do público e dos júris dos festivais. Crianças são seres frequentemente cativantes, mas me questiono se a relação com o público se dá pelo filme, ou somente pelas crianças. Se seus filhos estivessem presentes em todas as sessões, sem qualquer mediação da câmera, fazendo o que eles fazem no filme, o público reagiria de maneira diferente? Desconfio que não.

Sobre o uso do filme para servir a hipóteses minhas sobre arte, esse me parece um risco inerente ao juízo artístico. O que é um belo plano? Antes mesmo das palavras, as impressões são carregadas de conceitos particulares e intransferíveis que acessamos no contato com o mundo. Assumo, literalmente, que esse é um risco que corro ao escrever aquele texto – embora ele me pareça implícito em qualquer texto crítico. A meu ver, era um risco necessário. O que me parece definitivo, porém, não é que eu tenho minhas gavetas onde guardo as coisas, pois isso, todos temos. A questão é que existem filmes que desestabilizam essas armações, e outros que se encaixam nelas.

Abraço,
Fábio Andrade


Janeiro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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