cartas dos leitores
As opções de Milk

Cléber,

Não concordo de forma alguma que Milk- A Voz da Igualdade seja um filme "oficial". Ao se focar a vida de um político militante (e por mais fora da curva que seja este político) sempre haverá a necessidade de, por uma questão de verossimilhança mínima, de mostrar discursos do personagem. E o filme tem outras camadas que vão além destes discursos, principalmente a homofobia internalizada do personagem de Josh Broslin que acaba por matar Milk e o prefeito.

Mas é num ponto de sua crítica que um equívoco histórico mais se impõe, como que sugerindo uma falsa compreensão do universo GLBT ,do qual faço parte e posso falar por experiência própria, alguns anos de análise e do contato com amigos, amantes, também da mesma "turma":

"A vida do militante homossexual Harvey Milk nos é mostrada em sua missão: a luta e o sacrifício da própria vida em nome dos direitos dos gays assumirem suas opções sexuais e suas atitudes públicas sem serem presos ou agredidos."

Ora a homossexualidade e algumas de suas variantes nunca foram uma opção! "Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim..." Opta-se por ser crítico de cinema ou, num caso oposto, ladrão como Maluf, mas não se opta por ser um homossexual. Claro que alguém que se considera um transexual pode optar por operar ou não o pênis. Mas esta é outra história.

Feitos estes reparos, acrescento que admiro sua bagagem intelectual, mas conforme já observei em outras críticas esse "aparato intelectual" eclipsa uma emoção mais genuína que se pode ter em relação aos filmes. Quando li certa vez um texto seu na revista "Sinopse" em que se destacava "Abril Despedaçado é mais outro deslocamento inútil de Salles", não tive nenhuma vontade de continuar a leitura. Mas tenho lido seus textos na Cinética, sempre ressabiado. Mas justiça seja feita: seu texto sobre O Pianista de Roman Polanski é primoroso. Assino embaixo.

Abraços,
Nelson Rodrigues de Souza

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Oi, Nelson

1 - Que bom que discorda do oficialismo. Nada a fazer. Eu revi o filme e, por questão de ponto de vista ou sensibilidade, continuo achando-o oficial. Só atente-se para um detalhe do texto: oficialismo sobretudo de cinema, e não de política cultural (a ser discutido, se for o caso – mas não me interessa, pessoalmente, essa discussão em primeira instância). É uma posição minha. Respeito quem pense o contrário. Só não serve para mim

2) Mantenho a opção pela opção conscientemente, com todos os atritos possíveis e mal entendidos compreensíveis, porque se você nasceu homossexual, se não escolheu nascer homossexual, você dever ter optado por ter assumido isso de alguma forma (para além da prática e da orientação), optou por ser militante (atitude política e identitária), não simplesmente viveu sua homossexualidade sem fazer opções. Ou eu vi duas vezes um filme muito diferente daquele que aparentemente estamos aqui tratando ou o filme trata de opções e não de determinações. O que muda na vida de Milk? Ele ter feito uma opção, construído seu lugar em um espaço público, político e social "a partir" de sua sexualidade. O filme não trata de determinações sexuais, de códigos genéticos vincilados à sexualidade, da atração de homens por homens e mulheres por mulheres, mas de que opções se pode fazer com isso. Por isso, mantenho a opção pela opção, sem pedir desculpas para a História, porque a História a gente constrói também, ela não é imposta e aceita sem nos colocarmos diante dela.

3) Se fosse você, leria o texto da Sinopse, que considero um bom texto depois de passado alguns anos, apenas porque, aha, o texto não reflete aquele título. Como você parece ser bem informado, deve saber ou desconfia, que títulos de textos, mesmo em uma revista independente como a Sinopse, não são necessariamente responsabilidade do autor do texto. Foi o caso. Acho o título infeliz, diz quase o contrário do que o WS coloca em seus deslocamentos (eles são pautados por uma utilidade dramática), sempre comentei esse atrito entre o que é o texto e o que é o título. Isso não quer dizer de forma alguma que eu ache Abril Despedaçado o pior filme do WS, pior que A Grande Arte, e não significa também que eu não ache.

4) Ao contrário do texto sobre o WS na Sinopse, eu hoje não gosto do texto sobre O Pianista na Contracampo, por uma série de razões, embora continua achando o filme bem forte (revi ano passado e tenho em casa). Uma vez participei por email de uma entrevista com o Godard, na qual ele afirma que A Band Apart, o filme dele escolhido pelo Tarantino para dar nome à sua produtora, é o pior filme que fez e, se Tarantino gosta, é porque para ele Tarantino é uma criança tola. Questões de sensibilidade e de ponto de vista

5) De tudo o que você colocou, há algo, realmente, que me fala mais alto. O aparato intelectual em relação às relações menos mediadas com os filmes. Ver um filme já é experiência mediada, escrever sobre ele é outra mediação dentro da mediação e racionalizar essa experiência por meio de alguns caminhos coloca ai novas camadas. A questão central para mim, Nelson, para não dizer a questão mais honesta para mim, é deixar o filme determinar em mim essa mediação. Em um texto meu como o sobre o Pan-Cinema Permanente, há razão e emoção declaradas porque o filme me estimulou a isso. Em Milk, embora saiba que nosso colega de redação Rodrigo Oliveira se emocionou a beça com o filme, eu fiquei distante, racional sim, porque não houve comunicação extraracional entre eu e o filme. Procurar essa emoção onde ela não existiu é faltar com a honestidade

6) Desconfie sempre dos textos. Eu não prometo provas, mas sinceridade. Se os filmes sobre os quais escrevo andam me estimulando pouco a emoção, não posso reagir de maneira contrária. Sobra a racionalização, quando ela é estimulada. Quando não é, nem escrevo

Obrigado pela reação e pelas colocações. Foi sincera e isso é tudo. Para mim, discordar é viver

Abraços
Cléber

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Cléber,

1)  Entendi melhor agora o que você quer dizer com o suposto oficialismo de Milk. Para um diretor que fez filmes esteticamente tão anti-convencionais como Elefante, Last Days, Paranoid Park, em termos de linguagem cinematográfica, Milk pode soar "oficial". Mas vejo vários elementos no filme que tornam esta "biografia" senão grandiosa, mas bem engendrada, com elementos bem atraentes como a bela mistura de ficção e documentário (se valendo de cenas de "The Times of Harvey Milk" de Rob Epstein).

2) Fico intrigado (e agora esta não é uma questão só de sua crítica) quando leio textos que passam ao largo de comentar a interpretação de grandes atores. Se o filme Milk não desperta emoções, será que o trabalho magnífico de Sean Penn também não? Já li críticas negativas de Vera Drake e Mar Adentro. Não concordo em nada com elas,  mas até entendo. O que acho inacreditável é não ler nenhuma linha sobre as interpretações extraordinárias de Imelda Stanton e Javier Bardem respectivamente nestes textos. Como se opera este milagre destes grandes desempenhos não provocarem emoções? Outros exemplos podem ser citados, como Anamaria Marinca em 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias. Será que críticos são tão distantes assim do espectador "comum"?

3)  Concordo inteiramente com você que a gente deve ter o máximo de honestidade ao  escrever, escudados que temos que ser nas emoções autênticas que sentimos.Se não as sentimos porque forjá-las? Seria realmente desonesto. Pan-Cinema Permanente de Carlos Nader é um filme que tanto nos emociona como é admirável como articula cinematograficamente seus elementos para se constituir num documentário único. Para isto ajuda bastante a persona de seu "protagonista", o intenso,  camaleônico e multifacetado Waly Salomão. Já quando Lírio Ferreira e Hilton Lacerda se valem até de imagens de Brás Cubas de Júlio Bressane para fazer pontes entre Machado de Assis e Cartola, isto me incomoda, dentre outros recursos, porque não tem nada a ver com a leveza cristalina de Cartola, mesmo em suas canções que tendem à melancolia. Mas no conjunto ainda gosto do filme, apesar de não estar à altura da grandeza de Cartola.

O que acho incrível na sua colocação é que você não tem visto filmes ultimamente que lhe pegassem pela emoção além da razão. Que grande dieta! Peguei-me chorando com A Troca, O Leitor e numa emoção mais interior com Foi Apenas Um Sonho, Quem Quer Ser Um Milionário? e Entre os Muros da Escola. E outras emoções mais contidas em outros filmes dos quais gosto um tanto menos.

Pela elaboração dos seus textos creio que no mínimo deve ter lido uns "500" livros pelos quais nem passei perto. Mas atrevo-me a lhe sugerir uma leitura (se é que já não a tenha feito) que é "A Literatura em Perigo" de Tzvetan Todorov onde ele, que foi um dos maiores divulgadores do estruturalismo, hoje, sem negar o passado, vê no ensino de Literatura na França um excessivo apego pelas visões estruturalistas, semiológicas e formais (que devem ser tidas em consideração, como um meio e não um fim), tanto por parte de professores como até de escritores, em detrimento de procurar entender o que as obras podem estar comentando sobre o mundo em que vivemos, nossas vidas e a condição humana. Simplifico aqui: o livro é muito mais bem elaborado.

4) Realmente em Milk o que se dá ênfase é nas lutas políticas de Harvey Milk e da comunidade GLBT de San Francisco. Aqui sim se trata de opções. Mas não se vê no filme slogans como "respeitem nossas opções sexuais"... (este é pra mim o ponto que é um grande equívoco do seu texto e para quem acompanha os movimentos GLBT mundo afora, causa grandes transtornos, com gente ainda hoje querendo curar homossexuais, dado que seria uma opção....). A questão da homossexualidade com algo intrínseco a certos seres humanos aparece em Josh Brolin, o assassino, provavelmente um gay encalacrado, o que merecia ser mais bem explorado no filme, o que comentei em texto no meu blog. Não considero "Milk" um filme essencial, vejo defeitos. Mas que emociona, emociona (pelo menos a mim e conforme você relatou a Rodrigo de Oliveira). E para tal é fundamental a entrega de Sean Penn ao protagonista. Algo que não pode ser alienado e passar sem comentários.

Abraços,
Nelson

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Oi, Nelson

Quanto a seus comentários, há pertinência em todos. A reclamação sobre ausência de análise de atores é de fato uma questão séria, que já tem me incomodado (em mim mesmo) faz algum tempo. O mesmo sobre as armadilhas do racionalismo e do estruturalismo.

Fiquei sensibilizado com o filme do Cantet, mas, racionalmente. Já que racionalizou a relação autor\personagem, assim como mencionou o colonialismo, talvez eu veja as coisas ali com mais ambiguidade, ainda que essa ambiguidade não tenha sido assim tão intencional. Preciso pensar com mais cuidado a esse respeito, em como o filme lida com os efeitos do pós-colonialismo, em como lida com a noção de autoridade, porque, como bem coloca, há diferença entre narração do filme e posições dos personagens. O professor não é o alter-ego, mas uma consciência imobilizada pela situação: não achaste um filme sobre a impotência diante daquele cenário?

Bem vindo à discussão.

abraços
Cleber

Março de 2009

editoria@revistacinetica.com.br

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