cartas
dos leitores A crítica e o cinema
infantil Olá Eduardo!
Lembro da minha reação quando vi o folheto do filme Por Água Abaixo no
multiplex, pensei: uma animação com sotaque inglês sobre ratos no esgoto deve
ser interessante. O filme começa e com alguns minutos percebo tanto as características
que você levantou no artigo, quanto um outro detalhe importante. Realmente me
fascinou a criatividade do diretor ao levantar gags tão geniais como a
da barata lendo Kafka, das lesmas como elemento de trilha ou sonorização-clichê
para satirizar certo tipo de cinema, ou, sem dúvida o genial sapo francês fazendo
mímica. Porém, me deixa triste ver que ainda há uma espécie
de dilema nos produtores de animação mundial. Percebi que, em Por Água Abaixo
(assim como em outras animações), há algum problema em relação a qual público
deseja se atingir com um humor X ou Y. Ora, um filme como Shrek (da mesma
Dreamworks) consegue compor um humor que também agrada às crianças, porém, tem
piadas de referências a filmes, cenas, contextos sociais que crianças tão novas
talvez não entendam. Porém, sua história simples de um conto-de-fadas-que-não-é-conto-de-fadas
agrada a elas. Já em Por Água Abaixo, vejo que esse problema não se resolve
totalmente. Percebi que o filme, mesmo dublado, não agradou tanto às crianças
da sala quanto um filme mediano como O Galinho Chicken Little (assistindo
animações, costumo prestar atenção no clima das crianças que estão na sala). O
ritmo de Por Água Abaixo, que me parece ser destinado adultos (ou não,
como explicarei), não agradou tanto às crianças. A mim,
além de boas gags, não agradou o suficiente: tive a estranha impressão
(aí, é possível que por causa da dublagem também) de que estava vendo um filme
indeciso, cheio de piadinhas legais para adultos entenderem e uma história boba
como outra qualquer para "agradar" às crianças (que, provavelmente,
ainda devem ser o maior público de animações no cinema, especialmente nas férias).
Percebo que isso tem acontecido com outros filmes com uma frequência considerável.
Os Incríveis não me agradou nem um pouco, exatamente por isso: é um filme
cheio de referências fantásticas a filmes de super-heróis ou a conceitos complexos
(depressão dos super-heróis, dilema dos super poderes, etc) que parecem estar
se dirigindo a adultos, mas com uma história boba, cheia de clichês que, normalmente,
estão nos filmes infantis. Creio que depois de Shrek, poucos filmes conseguiram
realmente alcançar esse patamar de uma história realmente criativa e que agrade
aos dois públicos de maneira razoável.
Abraços Ricardo Oliveira
* * * Caro Ricardo O ponto
que você levanta é bem complicado. Primeiro porque não é tão fácil caracterizar
o público infantil ou o adulto como apenas uma entidade com o mesmo gosto – há
vários públicos infantis e adultos. Segundo, que nem sempre um sucesso de público
representa o melhor filme, como bem sabemos – se fosse assim nem precisaríamos
da crítica e nos bastariam os números de bilheteria. Finalmente, tenho sérias
dúvidas de que a platéia adulta precise tanto assim de “enredos complexos” para
se sentir satisfeita (basta ver muitos dos sucessos do cinema adulto), e que as
crianças se agradem tão fácil com “histórias bobas”. Isso
dito, discordo de você sobre Os Incríveis e Shrek, por exemplo:
não sou um fã inveterado do primeiro, como há vários entre os críticos, mas acho
que há bem mais do que apenas clichês infantis naquela trama; já no caso do ogro
verde, acho que ele é um caso de filme que faz quem assiste se sentir mais inteligente
por reconhecer as citações pop, mas para mim há bem pouco interesse para
além do jogo de referências e o desejo de criar uma animação 3D característica
– o filme resvala quase sempre num moralismo abissal. E discordo também no Por
Água Abaixo: acho que a trama aqui não parece exatamente “boba”, e sim quase
uma abstração altamente consciente dos filmes de ação, cuja brincadeira com os
cânones do gênero vai bem mais longe do que apenas boas gags. Mas,
o ponto em que sua carta me fez pensar que realmente me interessa é o problema
que a crítica sempre tem com os filmes “infantis” (embora eu não ache que Por
Água Abaixo seja um...): como julgar o sucesso de um trabalho supostamente
pensado para agradar crianças? Alguns críticos chegam a levar crianças com eles
para as sessões, como se pudessem então “compreender” melhor o filme. Ora, não
creio que nosso papel, especialmente numa revista como a Cinética, seja o de dizer
para pais se seus filhos vão ou não se divertir com um determinado filme infantil
– afinal, espera-se que a crítica seja mais que um ajudante de programação do
fim de semana. Para mim, nosso papel é tentar enxergar no filme infantil toda
uma gama de dimensões que trabalham simultaneamente, em categorias semelhantes
às da crítica de qualquer outro filme – inclusive porque nossos leitores, necessariamente,
serão adultos. É claro que há ainda uma outra dimensão de
especial interesse no caso destes filmes que é interpretar o discurso que se busca
montar para as crianças a partir de determinadas condições de realização do filme.
Ou seja: aquilo que se pensa ser o que agrade a uma criança, a partir de diferentes
pressupostos históricos, nacionais, ideológicos. Pelo menos a mim são estas as
questões que interessam quando vou ver um suposto “filme infantil” – além de prezar
muito os filmes que tratam as crianças como seres plenamente inteligentes e individualizados.
Abraços Eduardo
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