cartas dos leitores
A crítica: métodos, critérios, políticas II:
A Falta que Nos Move


"13 horas de filmagem. 3 câmeras na mão. 5 atores dirigidos durante a filmagem por torpedo de celular. Os atores chegam numa casa para serem filmados ininterruptamente sem deixar de seguir roteiros e cenas."

Me animei a escrever mais sobre A Falta que Nos Move a partir da leitura da crítica “E o teatro, o que é?” que Eduardo Valente publicou na Revista Cinética. Do seu ponto de vista um dos principais problemas da FALTA residiria na explicitação, somente nos créditos finais, do dispositivo que organiza a filmagem - e não nos créditos iniciais, como se isto estivesse em desacordo com o projeto. Se toda a campanha de divulgação do filme, e inclusive a sua sinopse, baseia-se na explicitação destas regras, este argumento me parece irrelevante. As regras são expostas ao longo do filme, reiteradamente. Não há dissimulação. Pelo contrário. São elas que constituem a matéria do longa-metragem. A opção por enumerá-las organizadamente no final da projeção tem para mim um efeito de síntese. É algo que já está dito e entendido. Poderiam ser no início também, como eu coloquei aqui. Sinceramente não é este o ponto.

A potência da A Falta que Nos Move se afirma em esgarçar, além dos limites que o próprio filme impôs, as regras do jogo. Uma atriz se machuca, pessoas se magoam, uma mesa é jogada ao chão. Até que ponto tudo isto é paródia? Seria só mais uma cena de novela, de melodrama, se isto fosse apenas levado a sério. Mas não é. Em jogo estão as construções ficcionais, que dentro do dispositivo do cinema clássico narrativo atendem a um desejo (moderno) de ‘representação da realidade’, mas dentro deste cinema vivo atendem a um desejo de desconstrução. Como andei discutindo com amigos: transparência opaca. Na verdade o que A Falta que Nos Move nos põe a fazer não é acreditar, mas é duvidar, o tempo todo. É justamente este acreditar, este pacto do cinema clássico narrativo (herdeiro do teatro burguês), onde sabemos que estão todos fingindo, mas acreditamos, que no filme é posto por terra. Lembro aqui de Goethe, citado por J. Crary em seu seminal “Techniques of the Observer”: não há ilusões de ótica; só há verdades óticas.

Entre aspas transcrevo os pontos mais problemáticos do texto da Cinética que me incitam à reflexão:
“… em termos de linguagem, haja um esforço considerável para dar dinamismo ao que se vê, como se justamente nisso se buscasse fugir de possíveis engessamentos desta matriz teatral”
- Como se o teatro não pudesse ser dinâmico, e como o cinema, o fosse, por definição?

"(no cinema) “o ator, não será o dono do poder do discurso, como é no teatro.”
- Podemos dizer que um ator é dono do poder do discurso? Esta frase soa mal. Um discurso é uma estratégia de poder. Mas também na arte os discursos são criações coletivas, práticas sociais, não são algo que pertença a um dono.

“o fato de que a arte da performance de um ator possui força tal que, mesmo assumida totalmente a falsidade da encenação(…)algo acontece ali em que intrinsecamente nós acreditamos”
- Esta argumentação foi cunhada por vários teóricos de cinema para dar conta do que se passa com o espectador do cinema clássico narrativo. Ele sabe que são atores, sabe que é um filme, mas se esquece disto e vive aquela vida por duas horas. No caso do filme de Jatahy, baseado em sua peça codinome “todas as histórias são ficção” não há intenção de esquecimento, mas de lembrança.

Mais do que simplesmente enaltecer a performance (o elenco é fenomenal, diga-se de passagem) o que o cinema vivo da A Falta que Nos Move faz é potencializar a vida, os encontros, as presenças, as durações. O filme de Jatahy é o mais puro cinema contemporâneo, nas suas dimensões deleuzianas de um regime cristalino que sai da armadilha da representação e suas oposições entre real e ficcional. O conceito de mise en scène, que já Comolli transmuta em mise-en-doute, define o recorte de Jatahy, que se vale de procedimentos de transparência de maneira opaca – a presença das câmeras, as referências ao roteiro, o cuidado com os microfones (como bem sabemos artifícios bastante recorrentes no audiovisual contemporâneo, constituindo um tipo de meta-linguagem presente desde os novos cinemas do pós-guerra).

O sentido da A Falta que Nos Move reside nesta mise-en-scène como mise-en-doute, neste apontar para o dispositivo de maneira contundente: técnica brechtiana antes de ser godardiana, e se Walter Benjamin afirma que o cinema é a forma técnica do teatro épico, temos aqui nesta A Falta que Nos Move um grande exemplo disto. Um grupo, que pertence a uma classe social, que pertence a um tempo, a um lugar, a uma prática discursiva, a um cinema vivo.

“Ou seja: o processo é mais importante que o resultado, que o filme.”
Sim, o processo é mais importante, sempre. Sabedoria Zen, atentar para o caminho e não para a chegada. Lições de Live Cinema, a conferir pela Ressaca de Bruno Vianna: não há filme dado, só há encontro, processo, devir.

“Eternizar este corte significa, sempre, a afirmação de que o cinema continua sendo, queiramos ou não, a arte do diretor”.
Não acredito nesta definição. Para mim cinema é a arte do encontro entre pessoas e técnica, entre filme e público.

Paola Barreto, em seu blog

* * *

Paola,

Fiquei muito feliz de ler o teu texto porque acredito sempre que o papel da crítica é este: o de, em algum sentido, continuar o trabalho da obra de arte (no caso o filme), e portanto criar outras inúmeras crises e críticas possíveis a partir dela. Ainda mais importantes e relevantes quando vindas de alguém como você que tem não só estudado, mas feito parte de movimentos em torno destes vários temas.

Claro que são muitos os pontos que você levanta e que, como você mesma faz questão de ilustrar muito bem, ocupam e ocuparão a cabeça de muita gente importante na teoria das imagens e da arte. Seria impossível levar cada ponto destes até o fim, antes de tudo pelo motivo mais óbvio (não há fim para eles). Mas acho que é mais do que apenas uma saída covarde da minha parte reafirmar também que o texto que você destrinchou era resultado limitado não só do imediatismo do trabalho crítico, mas dele no seu pior momento em termos de imediatismo, que é na cobertura de festivais. Assim, o que eu vejo ao ler alguns dos teus questionamentos são pontos em que, muito mais do que voltar atrás, eu precisarei me explicar melhor porque estas frases soltas num contexto como aquele realmente não podiam carregar todos os sentidos e desmentidos possíveis, como seria o caso num longo texto teórico.

Por exemplo, acho que há algumas simplificações argumentativas usadas por mim no contexto já explicado daquele texto, como quando você discute sobre minhas afirmações em torno do “ator ser dono do poder” ou “do dinamismo do teatro”. Claro que cada uma destas frases não se prestava a silogismos ou interpretações literais como “então o teatro não é dinâmico e o cinema sim”, ou “o poder do ator no teatro é absoluto”. Talvez seja o preço de se escrever textos de curta argumentação – algumas frases se prestarão a este papel em última instância, pois não carregam todos os senões e disclaimers acoplados a ela, mas o fato é que eu me sentiria até constrangido em ter que argumentar que é óbvio que não é exatamente isso que eu queria afirmar com elas. Acho que são frases que só fazem sentido dentro do texto, nunca pretendendo-se como postulados que, retirados e aspados, sustentem-se como teorias. Não são, e tanto assim que eu realmente não vejo como necessárias de eu me alongar, preferindo me ater ao específico da nossa percepção distinta do filme.

Quanto a isso, minha discordância fundamental contigo já está no primeiro ponto que você levanta: o do lugar da “explicação da metodologia” dentro do filme. Para mim faz sim muita diferença se aquela cartela vem no início ou no final do filme. Talvez porque acima de tudo eu discorde radicalmente de você – primeiro, quando menciona materiais de divulgação ou sinopses, porque não acho que como materiais estes façam parte do filme, embora transitem em torno dele, sendo algo que não entendo que deva ser levado em conta na experiência ou no relato crítico de uma obra, quase nunca (eu, por exemplo, não tinha lido nada disso). Mas principalmente discordo quando você diz que: “as regras são expostas ao longo do filme, reiteradamente”. De minha parte, e na minha experiência de ver o filme, eu não acho que elas sejam nunca expostas de fato, pelo menos não da forma que a palavra regra me faz pensar (seja em jogo, seja em limitações). Eu acho que fica claro sim que há um jogo ali, que há limitações, mas o espectador que não será exposto a elas durante o filme. Veja bem, eu não estou dizendo que isso em si é um problema – pelo contrário, eu acho que não ter as regras pode ser parte do jogo do filme. Só que isso muda quando se sente a necessidade de expô-las ao final – e buscar, como você mesma diz, uma “síntese”, afinal síntese era tudo que me parecia que o filme não buscava. É uma discordância profunda, de saída.

A outra diz respeito à inclusão do filme dentro do guarda-chuva do live cinema e dos significados deste – e principalmente de como o filme transita por ali. Você citou o filme do Bruno Vianna, Ressaca, que também tive oportunidade de assistir em uma apresentação, mas sabemos bem que há uma diferença radical entre os dois projetos que não possibilita que tratemos deles num mesmo contexto que os torne similares a partir de uma só categoria (“live cinema”): afinal, no filme do Bruno, não há a idéia de um produto final, de um filme de fato que se possa conter e chamar de “o Ressaca”. Ele se (re)faz a cada apresentação, pela montagem e sonorização no momento da apresentação de cenas previamente filmadas. Há ali um processo “live” de fato que, não só é fundamental como é parte integrante (e eu diria até a mais importante) do espetáculo – inclusive visualmente, com aquela traquitana eletro-digital multicolorida com a qual ele manipula o filme na frente do espectador. Ali sim eu entendo o “live” com alguns dos seus sentidos mais amplos, que qualquer crítica que se faça ao “filme” (acho até difícil usar o termo, que soa antigo e incapaz de dar conta dele) e se abstenha de dar conta disso, estaria se equivocando de saída.

No A Falta que Nos Move, a maneira como o “live” entra em cena é muito distinta. Afinal, há sim ali a “eternização de uma versão”: uma montagem pensada e finalizada de uma determinada maneira, com a apresentação ao público de um “produto final”. O processo da realização pode ser livre em várias camadas, mas o processo de feitura da obra a que assistimos não está se dando ali, na hora mesmo da projeção, na frente do espectador – não no sentido em que acontece com o Ressaca, pelo menos (sim, podemos nos perder em dizer que “todo filme está se fazendo no momento em que é visto por alguém”, mas quanto a isso nada de significativo mudou desde os Lumière ou Casablanca). E é claro que isso (o filme ser apresentado em uma versão final, “pronta”) implica sim uma mudança de postura necessária da parte de todos: seja na prática do artista, seja também no olhar do crítico.

A maneira como chegou-se a este produto final pode incorporar conceitos do “live” – mas, convenhamos, não exatamente mais do que muito que se faz e já se fez a partir do cinema moderno e seus filhotes, há bastante tempo. Havemos de concordar que a improvisação, o imprevisto, a questão do ator se misturando com o personagem, a incorporação do erro, a exposição do aparato técnico como tal e como produtor do discurso, nada disso é exatamente novo ou recente para o cinema. Não que eu ache que algo precise ser novo ou único para ser apreciado – não nos percamos de novo neste entendimento mais direto e simplista. O que eu estou dizendo só é que acho que, se formos por aí, não creio que o filme traga de uma especial contemporaneidade, nem acho que a maneira como isso é colocado em cena seja, como você diz, algo “contundente” no filme. E, de novo, não creio que isso seja O problema em pauta (porque não estou atrelado a uma pauta pré-histórica da crítica, que fosse incapaz de incorporar qualquer uma dessas coisas), você considerar esse uso contundente ou um exemplar do “mais puro cinema contemporâneo” só me diz que vimos filmes bem diferentes.

No fundo talvez o que me incomode mais, aliás, seja exatamente não conseguir ver esta contemporaneidade radical ou toda essa contundência (que, aliás, eu vejo no filme do Bruno e até mesmo no Fluidos, filme que discuti em outro artigo durante o Festival do Rio, e que apresenta outros tantos problemas). E, ao não ver, acabar considerando que as questões que ele coloca sim em jogo não são resolvidas ou exploradas de maneira que tenha conseguido me colocar em um lugar de maior conflito. E por isso, talvez, tenha caído no principal da minha experiência (logo, da minha crítica) do filme que é: nem a ficção que os atores interpretam, nem o fato deles estarem ou não interpretando-a, nem as incorporações de suas próprias vidas colocadas ali me chegaram como experiências efetivamente fortes por si – o que talvez fosse necessário para achar que o jogo em torno e a partir delas fosse forte também. É um caso onde talvez a teoria em torno de tudo isso me pareça muito interessante e desafiante, mas este objeto resultante dele, o filme, não o foi. No fundo, talvez, seja simples assim.

Um beijo, e “apareça” sempre por aqui
Eduardo


Janeiro de 2010

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