cartas dos leitores
Sobre o naturalismo em Canções de Amor


Olá,

Gostei do artigo sobre o filme Canções de Amor, porém, creio que o autor fez uma pequena confusão do termo naturalismo com o termo realismo neste trecho:

"Não que o cinema de Honoré seja naturalista (de forma alguma), nem que com este artifício ele queira dizer o mesmo que um Cláudio Assis com as imagens finais de Amarelo Manga (onde, filmados de frente, personagens "reais" das ruas de Recife se equivaleriam aos que vimos em cena). No caso de Honoré parece claro que se trata menos de uma questão de realismo ou de personagens, mas sim de relação com o espaço da cidade de Paris como musa inspiradora principal (e não por acaso o título do filme anterior era aquele). Pois, como dizíamos, Canções de Amor segue o caminho contrário: seus créditos se abrem sobre imagens documentais de Paris, e é a partir delas que descobriremos a personagem de Ludivine Sagnier num espaço parisiense por natureza – a fila para um cinema. No movimento oposto, um mesmo sentido: parte-se de Paris, para chegar ao filme que, para o cineasta, só faz sentido naquela cidade."

O cinema de Honoré na verdade é naturalista. Naturalismo é a técnica de filmagem que torna o que é visto pela audiência com aparência de real, de natural. Quando utilizado no cinema o termo naturalismo não tem o mesmo significado do estilo literário naturalismo, que é derivado do realismo e foi criado por Emile Zola. O que o autor tentou dizer provavelmente é que o filme não é realista. Ainda mais quando faz a ligação com Amarelo Manga. mesmo sendo uma ligação forçada, porque um filme que beira o musical nunca será realista. Essa pequena confusão não é um grande problema, mas pode causar estranheza para quem estuda ou lê livros de teoria de cinema.

Um filme pode ter estética naturalista como o próprio Canções de Amor e não ser realista, mas nada impede que ele seja naturalista e realista, o que é o caso do Amarelo Manga. Mas, creio que o filme de Cláudio Assis não pode se encaixar perfeitamente no rótulo realista: há um certo neo-realismo, ou pós-realismo no cinema brasileiro, principalmente no feito em Pernambuco. Creio que outro filme que pode ser classificado da mesma maneira seja o Cidade Baixa.

O Canções de Amor é um bom exemplo do cinema pós-moderno contemporâneo francês. onde técnicas e estilos de cinema são misturados  e mesmo assim o resultado é coerente. muitos filmes franceses atuais fazem esse tipo de mistura. Como Caché, que mistura linguagem de documentário, com um naturalismo quase exagerado e uma tensão digna de um Hitchcock.

Abraços
André Carvalho

* * *

André

Obrigado pela carta, antes de tudo.

Deixa eu te dizer porém que, embora seja fato que a maioria das enciclopédias vão falar do naturalismo literário e suas raízes mundiais com Émile Zola e brasileiras com Aluisio de Azevedo, enquanto o realismo vem com Flaubert e Machado, o fato é que quando a gente vai para as obras mesmo, a coisa complica bem mais porque as obras de arte são bem pouco fáceis de se destrinchar “cientificamente”, e as fronteiras entre gêneros e escolas vão se cruzando de uma tal maneira que é bem complicado simplesmente delimitar.

Quando a gente chega no cinema, então, e começa a usar termos das artes anteriores na maior parte do tempo (literatura, pintura, teatro), as fronteiras vão caindo cada vez mais na dificuldade de delimitação. Basta dizer que sempre nos ensinam nos livros e nas faculdades sobre o Expressionismo Alemão ou o Neo-Realismo Italiano como tendo esta ou aquela quantidade de características, e se vamos aos filmes vemos que apenas uns bem poucos cinco ou seis em cada lugar são efetivamente “expressionistas” ou “neo-realistas” ao pé da letra, e que depois disso ficamos a mercê de um olhar do observador. E isso me parece mais que saudável, porque aproximar filmes a escolas e modelos é importante, mas gosto de pensar que eles as desafiam e escapam.

Isso tudo para dizer que, a meu ver, “naturalista” e “realista” são hoje termos com uma profusão tamanha de significados e apreensões que, melhor do que nos apegarmos a que eles signifiquem exatamente isso ou aquilo, seria que se permitisse ao autor que deixasse bem claro o que ele quer dizer quando usa determinado termo – o que, aliás, de fato eu não fiz até por aquele ser um artigo escrito no calor da hora dos festivais de cinema, sem o requinte de conceituação e linguagem de uma verdadeira “obra da teoria do cinema”.

No entanto, dada a oportunidade eu te diria que vejo a questão do realismo e do naturalismo de maneira um pouco distinta da tua: o naturalismo para mim se caracteriza principalmente na questão da atuação dos atores e da forma de capturar situações cotidianas – no que me parece que Canções de Amor não se encaixa, pela sua auto-consciência como representação (em oposição podemos falar, para sermos bem diretos e amplos, do “naturalismo televisivo” da maioria das atuações em telenovelas). Já o realismo, onde não deixo de encaixar o filme, se refere a meu ver a alguns índices de representação dentro de regras do mundo material conforme vivenciados por nós – ou seja, não há monstros de outro mundo, suspensões de leis básicas da física ou do mundo como o vivenciamos em Canções de Amor, mesmo sendo um musical.

Acho importante a chance de esclarecer este meu uso dos termos, mas aproveito para comentar a partir dos teus rápidos exemplos como o entendimento/leitura de algumas características em filmes é profundamente pessoal: o Amarelo Manga, a meu ver, aspira a um super-naturalismo, quando na verdade me soa absolutamente teatral (em composições de ator) e estetizado na sua construção – talvez possa ser isso que você chama de pós-realismo, mas eu acho que é algo mais perto de um duplo registro mesmo, entre o desejado e o realizado; já o Caché não me parece nada hitckcockiano. Por outro lado, prefiro deixar o pós-modernismo de lado, porque é um chapéu que tem sido usado vezes demais, e com isso alargou tanto que cabe quase tudo dentro dele (e algo que pode ser tudo, como sabemos, quase sempre é nada).

Sigamos adiante para os próximos textos, porque estas conversas são sempre fascinantes. Obrigado, de novo, pela atenção aos detalhes do texto, e pelo tempo na escrita da carta.

Abraços
Eduardo

editoria@revistacinetica.com.br


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