cartas
dos leitores A crítica: métodos,
critérios, políticas I: Alô Alô Terezinha
Em seu
texto sobre o filme Alô Alô, Terezinha, de Nelson Hoineff, Cléber
Eduardo escreveu em um determinado trecho: "Seres humanos podem ser
usados ali como massa de modelar visual em nome de interesses do realizador.
(...) Só o espetáculo do constrangimento. Tudo é somente imagem? Pode-se
tudo? Essas pessoas não existem fora dali?".
Em Jogo de Cena,
de Eduardo Coutinho, uma paciente psiquiátrica, ainda que fora de surto, mas claramente
infantilizada, também teve sua imagem e fala usadas no filme, causando constrangimento
a familiares que a conhecem "fora dali" e sabem de suas limitações
em termos de não ter plena clareza de como e quando proteger sua privacidade e,
por extensão, dos seus. Pessoas que consideramos ingênuas (mais ou menos
ingênuas – ou nem tanto ou mesmo nada disso) existem, querendo seus
dez segundos de fama a qualquer preço e em pleno exercício de vontade lúcida
e consciente de acordo com suas expectativas de acesso e projeção social através
da mídia. Outras pessoas não têm seu juízo crítico bem determinado por seqüelas
de doenças psiquiátricas, por exemplo.
Se o filme de Hoineff incorre em
momentos questionáveis de exposição de nomes de terceiros (mencionados sem terem
sido entrevistados), e se, por outro lado, o eixo da crítica for de
fato apontar – como na sua conclusão "os sinais graves de derrota
de certos valores" [morais – conforme mencionado sobre travellings
pouco antes] -, fica em aberto a questão sobre tantos filmes que formalmente merecem
apreço da crítica – e de uma parcela de público cinéfilo – mas que incorrem em
exacerbação de uma verdadeira pornografia de violência destrutiva e/ou complacência
com um ideário de condutas opostas aos valores ideais e metas do processo civilizatório;
em resumo, questões éticas e morais ainda mais amplas.
Não se trata de clamar
por uma censura moralista que impedisse a liberdade de expressão, circunstância
de péssima memória seja no MacCarthysmo americano, seja durante as ditaduras como
nos anos de chumbo do Brasil e de outros países, mas de considerar que, ao
se tomar como eixo da crítica a denúncia de questões morais como neste
caso específico, que tal atitude não deixe de atingir todo e qualquer material
com que se lida, ou seja, os filmes, sejam eles avaliados como "bom"
ou "mau" cinema e acima das inevitáveis idiossincrasias de cada
subjetividade.
Independente de uma escala de valoração estética que possa
considerar o filme de Coutinho em um patamar e o de Hoineff em outro, fica em
aberto a questão de porque a crítica não fez nenhum questionamento ao uso feito
por Jogo de Cena de uma pessoa prejudicada psicologicamente e agora esteja
havendo o questionamento sobre pessoas que sempre buscaram exposição na mídia,
mesmo que através do ridículo, do patético e do grotesco (ao nosso ver) mas
com plena liberdade de escolha consciente, ainda que com valores e interesses
pessoais muito distantes dos que seriam certamente os nossos.
Acrescento
que não estou dizendo que a crítica não deva questionar aspectos éticos
e/ou morais, ideários ou ideologias embutidas nos filmes sobre os quais se debruça.
Pelo contrário, penso que, além da linguagem, narrativa, forma, enfim, o
tão desvalorizado "conteúdo" (muitas vezes menosprezado atualmente por
enorme parcela da crítica) demanda reflexão e análise nos ensaios e resenhas críticas.
Atenciosamente, Luiz Fernando Gallego Psicanalista e Crítico de Cinema *
* * Caro Leitor Antes de mais nada,
confesso que não sei exatamente a qual pessoa em déficit psíquico, explorada em
estado de vulnerabilidade diante de uma câmera, você se refere em Jogo de Cena.
Esse dado está no filme? Também não sei quais filmes com méritos estéticos estão
sendo levados em conta por você quando afirma a necessidade da crítica de colocá-los
em questão por esse viés considerado por você ético ou moral (conceitos diferentes,
por mais amplos, ambos, que possam ser). Há mesmo essa incompatibilidade entre
estética e política (ou ética)? Os filmes legitimados não o são por uma política
de legitimação e pelo emprego político de suas escolhas? Partamos
das minhas escolhas. Em primeiro lugar, eu não respondo pela CRÍTICA. Respondo
apenas pelas minhas críticas. Seria bom individualizarmos a discussão porque a
generalização dela é irresponsável e pouco corajosa. Dar nomes próprios a pessoas
e reconhecer ações é uma maneira política de agirmos no mundo. Quais filmes você
tem em mente além de Jogo de Cena? A quais críticos se refere quando fala,
sem usar essas palavras, em dois pesos e duas medidas? Refere-se a filmes de Coutinho?
Refere-se aos críticos de Cinética? Quais? Em quais textos? E onde estão esses
problemas éticos ou morais nos procedimentos e operações nos filmes e nas críticas?
Atenção para essas duas palavrinhas. Procedimentos e operações. Porque
não sei se você entendeu bem minhas colocações sobre Alô Alô Terezinha.
Eu não me coloco contra o uso do poder da câmera e da edição diante de pessoas
indefesas ou sem poder de defesa. Eu me coloco contra determinadas escolhas específicas
e determinado tom geral. Contra certa visão de cinema diante do humano. Toda operação
com uma câmera é um exercício de poder, mas há uma troca nesse exercício. Aquelas
pessoas no filme querem estar no filme, por razões delas, por uma orfandade da
mídia que elas tanto desejavam, assim como os entrevistados ou personagens de
qualquer documentário, por razões também pessoais e às vezes opacas, também querem
ser vistas e ouvidas. Há fluxo de poder em mão dupla nos dois casos (há poder
em tudo, em todos), em Jogo de Cena ou em Alô Alô Terezinha. Mas
é óbvio que o poder maior é de quem realiza. Cabe então, para se decidir o que
filmar, como filmar, o que incluir e que relações estabelecer entre imagens, alguma
responsabilidade. Uma ética. Uma política. Não sou contra filmar pessoas perturbadas
como Estamira, nem cegas como as irmãs de A Pessoa é para o Que Nasce,
nem sem o domínio da sonoridade das palavras como o caso do pintor naif
de Moacir Arte Bruta. Não se trata de uma proibição ontológica. Se
estamos falando de cinema e de pensamento sobre imagem, seria bom colocarmos essa
questão historicamente. Para Claude Lanzmann, o diretor de Shoah, o holocausto
é irrepresentável. Interdição: nenhuma imagem. Por isso, seu filme é pautado pelo
testemunho verbal. Contra isso, contra essa interdição, temos Georges Didi-Hubermann,
historiador, filósofo e crítico de arte, que defende uma arqueologia de rastros
do holocausto (em Images Malgré Tout). Nada é irrepresentável, segundo
Jacques Rancière, porque as interdições, quando se trata de filmar alguém ou de
tornar visível uma representação visual, não são de ordem absoluta. São de ordem
da maneira de representar. Modos de representação. Trata-se de escolhas, enfim.
Travellings como moral ou moral como travellings
são escolhas políticas. Políticas são escolhas. Opções. Posições. A moral do cinema
não é uma questão de leis. É uma questão de formas. Uma questão política, mais
ética que moral, se tomarmos o conceito de Gilles Deleuze, a partir de Espinosa.
Moral seria o valor transcendental, uma universalidade consensual. Ética é um
valor imanente, da existência, das ações mundanas. Em cinema, a questão, insisto,
é de emprego da imagem, de como se constrói essa imagem. Quando Jacques Rivette
ataca Kapó, de Gillo Pontecorvo, em 1962, na crítica intitulada Da Abjeção,
ele não repudia um travelling pelo travelling. Ele coloca em questão
um realismo que, para representar um campo de concentração e suas relações lá
dentro, não problematiza a própria representação, como havia feito Alain Resnais
em Noite e Neblina, em 1956. Para Rivette, Kapó coloca-se como a
representação de uma verdade, não uma verdade da representação (ou a representação
que se quer justa, não objetiva ou inquestionável). Talvez devamos pensar toda
proposta realista dentro dessa problemática da falsa objetividade, não problematizadora
de si mesmo, positivista, que se coloca como a imagem final sobre algo, ou a melhor
imagem, ou a única imagem. Uma auto-propaganda de que assim foi. Ou assim é. É
uma questão, não afirmação. Uma leitura no blog de Jean-Claude
Bernardet, em seus posts sobre Emile Zola, pode ajudar nessa reflexão sobre o
realismo. Não seria o apagamento da construção e do autor, nos moldes do realismo
positivista, justamente uma reivindicação da mais justa representação? Por ser
mais justa, é a mais objetiva. Por ser mais objetiva, é a verdade, aquela a que,
por ter olhares mais atentos, chega-se com ares de representação definitiva, como
não escolha, porque a escolhe é a única possível, aliada às coisas como elas são.
Porque não há objetividade possível no terreno das escolhas. Importa, portanto,
as escolhas. Essa era a lógica de Luc Moullet quando afirma, para defender Pickup on South Street, de Samuel Fueller, que era taxado de anticomunismo primário: “Notemos
que o anticomunismo se limita ao tema: nem os enquadramentos, nem a mistura, nem
a montagem são moscovofóbicos...”. Moullet contra-atacava
Georges Sadoul, que via anticomunismo e fascismo em quase todos os filmes americanos,
não pelos modos de representação, mas pela simples eleição de um tema. Esse mesmo
modo de pensar pode incorrer em valorizações estéticas por conta da escolha dos
filmes por tratar de determinadas questões e de filmar determinados ambientes
sociais. Kapó seria, nesse raciocínio, um bom filme; um filme com bondade
em seu coração. Rivette vê o contrário. E condena o travelling na sequência
da morte de uma personagem, travelling inclinado para cima, ligeiramente,
para melhor mostrar a mão da mulher, caída, e produzir nesse momento uma bela
imagem. Uma imagem bela em um momento hediondo. Nenhuma beleza possível. Quando
em sua mensagem você fala em conteúdo, em tema, eu considero dicotômica essa separação,
feita como se fosse um antagonismo. Haverá um conteúdo sem forma que o produza
para nossa percepção? Haverá significado sem uma linguagem a gerá-lo e a veiculá-lo?
Haverá enunciação sem escolhas estéticas? Não se trata de uma coisa e outra, separadas,
como se a forma fosse vazia e preenchida por conteúdo, ou como se o conteúdo fosse
em si, fosse ontológico, espontâneo e não construído. Trata-se de uma coisa e
outra, de uma coisa amalgamada à outra. Todo realismo é ideológico, mas uma ideologia
na forma, não fora dela. Procurei em meu texto expor essa
relação entre as escolhas de Alô Alô Terezinha e os efeitos gerados por
essas escolhas em relação às pessoas filmadas. Não sou contra a existência do
filme, não sou contra que se filme aquelas pessoas, que se ouça aquelas pessoas,
mas contra a forma específica com que foram filmadas e contra a maneira de associar
as imagens. A forma de se incluir Nelson Ned, por exemplo. Na verdade, é o melhor
exemplo. Uma forma de diminui-lo, quase como resposta à recusa dele diante dos
realizadores, ao seu pedido de se parar ali a filmagem. Não importa que as coisas
aconteceram, que as pessoa falaram, tiraram a roupa e não sei mais o quê, porque,
em um filme, o que se fala e como se fala, o que se mostra e como se mostra, é
responsabilidade do filme. Mais: o que vemos não é o que aconteceu, mas o fruto
de uma relação entre realizadores e aqueles que estão ali diante da câmera. Jean
Louis Commoli, sobre o documentário, já fez a afirmação: “filmar é filmar relações”. Há
perguntas, estratégias de aproximação, negociação, tons de abordagem, tudo ausente
no filme. Assim como em Estamira, talvez em Alô Alô Terezinha o
filme mais interessante (não necessariamente melhor) tenha ficado fora de quadro:
justamente essas provocações, de parte dos realizadores, para gerar as palavras
dos entrevistados/personagens. Mas nos resta, para lidarmos criticamente, o que
está em quadro. E o que está lá, fruto de construções, de opções, de uma política
da imagem, para mim é abominável. Atenciosamente Cléber
Eduardo
Janeiro de 2010
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