ensaios
Carta aberta aos críticos de cinema do New York Daily
por Jonas Mekas, em tradução de Daniel Caetano

Publicado em 11 de Outubro de 1962

Na semana passada vocês estraçalharam o que talvez seja o melhor filme – certamente um dos melhores – entre os produzidos nesse país este ano: The Connection. Vocês enganaram completamente as plateias americanas com essas malditas críticas. Vocês não fizeram nenhum esforço para entender uma obra de arte, cuja beleza poderia ter feito vocês chorarem. Vocês ficaram diante da tela, mas não ouviram a sua voz, nem viram as suas imagens. No que diz respeito a cinema, vocês são surdos, cegos e estúpidos.

Vocês desprezaram The Connection pelo seu conteúdo (“monótono”, “agressivo”, “bizarro”, “cru”, “doente”, “vulgar”, “baixo nível”, “sórdido”, “desagradável” etc) – mas vocês não têm a menor ideia sobre o que o filme contém (ou o que a arte contém, de modo geral), nem sobre o seu sentido. Vocês desprezaram o filme por causa da técnica, estilo e forma – mas vocês não têm nenhuma idéia sobre o que são técnica, estilo e forma no cinema (e eu não quero nem começar a falar em cinema moderno). Suas resenhas são piadas completas, mas seus editores vendem elas para milhões de pessoas, vocês são pagos, compram ovos e pães, criam filhos.

Os cineastas conhecem os seus mestres. Eles pagam tributo a D. W. Griffith. Eles não se opõem à crítica aos seus trabalhos. A crítica de arte tem uma função, e a boa crítica chega a ser uma arte. O trabalho de um artista é também a crítica ao trabalho de outro. Mas qual é a função e, me digam, qual é o critério que estão por trás de uma crítica que despreza The Connection e, na mesma página, enaltece um filme hollywoodiano ou estrangeiro de quinta categoria? Por que Cléo de 5 às 7 é tão melhor que The Connection? Deve haver alguma ferramenta para medir de forma muito sutil, que nossos críticos utilizam e eu não conheço. Ou será que O Mais Longo dos Dias é mesmo uma descrição da guerra muito melhor do que The Connection é uma descrição da paz? Ou por que Convicts Four é melhor que The Connection? Se vocês podem arrumar desculpas por todos esses casos, vou lhes dizer que não quero nem ler o que vocês têm a dizer: para descrever os critérios de vocês, eu poderia usar a mesma palavra que The Connection usa para heroína.

Por que vocês não admitem que ficaram para trás e que não sabem lidar com o cinema moderno? Por que vocês não arrumam suas coisas e vão para casa? Nossas salas de cinema e nossos distribuidores deveriam ignorar os seus comentários enganosos e sem valor; eles deveriam parar de citar as suas abobrinhas. Eles deveriam, ao invés disso, citar – se eles realmente precisam de citações – nossos poetas, escritores, pintores; artistas, homens inteligentes e com senso estético que, embora não sejam críticos de cinema, ao menos compreendem e sentem o que está acontecendo nas artes hoje, e o que está acontecendo no coração da humanidade.

Meu Deus, vocês criticam até a linguagem de Gelber! Será que algum de vocês, em algum momento, já escreveu uma linha criativa? Tudo que vocês escrevem é a sua própria vaidade e ignorância. A beleza e a humanidade dos filmes que vocês estraçalharam deveriam derreter vocês, deveriam destruir a sua vaidade e torná-los abertos para a vida. Ao invés disso, vocês se preparam como açougueiros e fazem os seus malditos trabalhos. Será que vocês sabem mesmo sobre o que é tudo isso? Será que sabem o que significa “monótono”, “agressivo”, “bizarro”, “cru”, “doente”, “vulgar”, “baixo nível”, “sórdido”, “desagradável”? Eu vi vocês sentados naquelas exibições para críticos, vi os rostos de vocês e me perguntei: essas são as pessoas que vão dizer à América o que deve e o que não deve ser visto? São essas as pessoas que fazem o julgamento sobre a beleza e a verdade?

Não importa o que vocês escrevam, os trabalhos que vocês estraçalharam ainda estarão aqui depois que vocês estiverem mortos. The Connection vai estar aqui, o belo Orfeu de Cocteau estará aqui, Anticipation of the Night de Brakhage estará aqui.

Na verdade, nem sei por que fico com raiva, falando aqui com vocês. Eu sei muito bem que amanhã, daqui a um ano e daqui a dez anos, eu vou pegar um jornal e vou ver o trabalho de alguém sendo destruído pela sua vaidade, pretensão e ignorância. Eu queria apenas botar isso para fora, para limpar o meu sistema. E então eu vou voltar para as montanhas de Vermont e ver as folhas caindo. Lá não há jornais – só o vento, de vez em quando, traz algum recorte de algum lugar, um pedaço amarelado e frágil , já voltando para a terra, sem nenhuma palavra legível ou compreensível.

Agosto de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta