Carreiras,
de Domingos Oliveira (Brasil, 2005) por Eduardo
Valente De
Domingos, Priscila, Vianinha Já quase no final de
Carreiras, um longo plano sem cortes vai se fechando no rosto da atriz
principal, Priscila Rosenbaum, até que não resta outra paisagem em cena que não
a sua expressão facial enquanto fala ao telefone com a distante família com quem
já não mantém contato há algum tempo. Mais do que o ápice do desespero e da regressão
na trajetória desesperada de uma noite na vida de Ana Laura (a personagem), o
que esse plano deixa claro é uma curiosa inversão que se opera neste filme dentro
da obra de Domingos Oliveira (especialmente a mais recente): mesmo que um eterno
obcecado pela força da presença feminina como centro do mundo de seus personagens
(afinal ninguém começa no cinema com um filme chamado Todas as Mulheres do
Mundo à toa – e não custa lembrar que o filme anterior a este último chamava-se
Feminices), os filmes de Domingos são sempre feitos inegavelmente pela
visão de um homem. Do Paulo José inicial (de Todas as Mulheres... mas também
de Edu Coração de Ouro) ao próprio Domingos nos filmes mais recentes (em
especial, Separações) sempre houve um ponto de vista masculino olhando
para aqueles mulheres que enlouqueciam, fascinavam, confundiam e sem quem não
se podia viver. Pois em Carreiras não: aqui não só
a mulher está no centro da ação como ela domina também a voz do filme, o olhar
dele. Claro, continua sendo um filme de Domingos Oliveira, portanto um filme feito
“pelo olhar de um homem” (e não vamos cair aqui na armadilha instigante, mas também
um tanto interminável e improdutiva, de discutir o que significa um “cinema masculino”
ou um “cinema feminino”). No entanto, podemos dizer que Carreiras é um
filme “sobre” Priscila Rozenbaum (não a pessoa fora da tela, mas o centro dramático
do filme), e não mais sobre o próprio Domingos Oliveira, como todos os seus filmes
anteriores eram (no entanto é curioso ver como velhos hábitos são difíceis de
morrer: quando Domingos entra em cena num curto papel, a câmera quase se esquece
de que este filme acompanha Ana Laura/Priscila do início ao fim, e por um breve
momento fica na casa de Esteves/Domingos enquanto ela sai, como que por um velho
hábito de estar ao lado dele). E, exatamente por ser um filme sobre/a partir de
Priscila e sua presença cênica, é também um pouco um filme de Priscila
Rozenbaum – no mesmo sentido que Uma Mulher sob a Influência muitas vezes
parece também ser um filme de Gena Rowlands ou que um Gritos e Sussurros
parece ser um filme de Liv Ullman. Cassavetes e Bergman,
pois. Curioso que seus nomes apareçam aqui neste momento, pois não há nada de
coincidência em lembrar dos dois enquanto vemos Carreiras (a estrutura
em abismo ao longo de uma noite remete um tanto a Faces). Mas, deixemos
o americano de lado por um segundo, e relembremos aquele close que citávamos no
começo do texto: ele lembra muito algumas das explorações da paisagem do rosto
humano (feminino em especial) feitas nos closes de Bergman. De fato, toda aquela
seqüência da praia, filmada com um cuidado pela decupagem que o Domingos mais
recente parecia ter deixado um tanto de lado, é a mais bergmaniana de sua carreira.
Ela responde inclusive uma pergunta que lembro de me fazer no auge da juventude,
vendo meus primeiros Bergman passados em meio às duras e frias paisagens suecas:
“como se faria um filme com esse sofrimento existencial intrínseco debaixo do
sol carioca?” Naquela seqüência na praia, Domingos chega bem perto: repentinamente
tornando a beleza alegre da vida boêmia da Zona Sul do Rio que sempre estrelou
seus filmes (chopes até o amanhecer no Baixo Leblon, praia) parte final da angustiante
ópera da destruição interna de uma pessoa. Essa angústia
desesperada e hiperativa que exala de Carreiras, se tem muito a ver com
a cocaína consumida industrialmente pela personagem, também deve muito à origem
do projeto: a peça de Oduvaldo Vianna Filho, Corpo a Corpo. Sim, porque
ao notarmos diferenças deste filme em relação aos primeiros e aos mais recentes
de Domingos não se pode deixar de anotar essa alteração substancial: aqui, ao
invés de escrever algo originalmente seu ou adaptar uma peça de sua própria lavra,
Domingos adapta uma peça de Vianinha, escrita em 1970 – não apenas em plena ditadura
como pouco depois do AI-5. Embora não seja aqui o lugar para nos debruçarmos sobre
o dramaturgo ou a peça (para isso, recomendo fortemente passadas de olho aqui
e aqui), é
importante ver que a incorporação e atualização que Domingos faz desta narrativa
de uma individua sendo atropelada pelo sistema (inclusive e principalmente pelo
seu próprio desejo, ao final, de ser soterrada) tem raízes muito fortes na dramaturgia
de Vianinha. Não
por acaso, o filme começa com uma longa discussão de bar entre Domingos e alguns
amigos (em cena absolutamente dominguiana) sobre os limites e conflitos
entre as linguagens do cinema e a do teatro. O que pode um sobre o outro? Ironicamente,
em se tratando de um filme baseado em uma peça, o prólogo termina com a conclusão
da boca do próprio Domingos de que um belo filme no teatro continuaria forte,
enquanto uma peça clássica no cinema não se sustenta. Curiosamente, seu filme
parece apresentar argumentos a favor e contra esta mesma tese: a favor em várias
das cenas na casa de Ana Laura, onde a matriz teatral parece travar o filme. O
artifício do telefone, usado para criar no monólogo de Vianinha o espaço do “outro”,
funciona pouco no cinema: o texto de Ana Laura fica pesado, os personagens com
quem se conversa parecem por demais “representações abstratas”, "escadas
de texto" com as quais a linguagem direta do cinema não se dá tão bem. Ali
, o filme patina. No entanto, quando escapa as ruas, quando coloca Ana Laura no
mundo, o filme cresce: são momentos de feliz resultado em especial a conversa
com o porteiro do prédio e a última passagem pelo bar, com o telefonema fatal
ao Garra se espalhando pelas ruas e indo culminar na praia. Ali o cinema vive
e respira, a partir do texto de Vianinha, e, ao mesmo tempo em que relembra que
o teatro deste continua atualíssimo, também surpreende ao revelar um Domingos
de forte teor social – ainda que totalmente dentro da sua praia: os pequenos dramas
da burguesia carioca, que aqui ganham relevos trágicos. Finalmente,
cabe notar que faz parte desse a princípio surpreendente teor político do filme
(já que Amores, Separações e Feminices assumiam uma mais
que saudável “alienação” do social em favor do desejo de falar dos pequenos dramas
emocionais-sexuais – o que é uma afirmação política, aliás) a sua apresentação
como “manifesto”, incorporando ao filme um pré-prólogo em defesa do BOAA (Baixo
Orçamento e Alto Astral). É, sem dúvida e independente das melhores intenções
de Domingos ao fazer isso, o que o filme tem de mais fraco. As cartelas iniciais
incorporam uma certa leitura moralizante sobre a produção brasileira em favor
de determinadas condições de realização que funcionam para muito poucos projetos
(tanto que Domingos filma em condições distintas seus projetos atuais: ainda com
baixos orçamentos, mas sem a radicalidade de Feminices ou Carreiras)
e que certamente não permitem pensar num “profissional de cinema” – além do que,
o próprio texto do começo fala da necessidade desta produção se viabilizar economicamente
por si mesma, o que não aconteceu no lançamento do filme. Para
além disso, voltemos aqui a Cassavetes: que Domingos escolha uma forma de realizar
o seu cinema que se ponha à margem do “cinema oficial” (como o americano fez na
maior parte da sua carreira) é mais do que louvável. Mas isso parece tão mais
forte quanto postura artística ao se refletir em resultados nos filmes, e menos
como um postulado político a ser exportado/pregado. A excelência do cinema de
Cassavetes está tanto no seu gênio quanto na sua forma de realizar, sem precisar
de qualquer manifesto para além dos filmes. Carreiras deveria, então, ser
seu próprio discurso. editoria@revistacinetica.com.br
|