in loco - cobertura dos festivais

Autobiografia de Nicolae Ceausescu (Autobiografia lui Nicolae Ceausescu), de Andrei Ujica (Romênia, 2010);
Carlos, de Olivier Assayas (França, 2010)

por Filipe Furtado

A História é um filme

Ambos cinebiografias, Carlos e Autobiografia de Nicolae Ceausescu são filmes à primeira vista opostos: enquanto o de Olivier Assayas (foto ao lado) é uma ficção biográfica típica, com todo seu arco dramático de ascensão e queda filmado à moda dos thrillers do cineasta (demonlover e Boarding Gate), o trabalho de Andrei Ujica é um filme-ensaio, construído a partir de material de arquivo do governo romeno sobre o ex-ditador comunista. No entanto, se nenhum dos dois filmes nos diz muito sobre seus protagonistas para além deles possuírem egos enormes, ambos sugerem que suas trajetórias estão unidas pela mesma concepção de história. Carlos e Autobiografia de Nicolae Ceausescu são movidos pelas mesmas constatações: que a história se reduz a mise en scène, e que há um limite claro de até onde se pode chegar quando se retorna a ela. Ou, como disse o próprio Ujica: “História e historiografia são e sempre foram um tipo de ficção, mais ficção do que ciência...”

É o paradoxo que une os filmes: se a história se apresenta como um filme, todos os filmes sobre a história serão, por principio, limitados. Não à toa ambos trabalham com longas durações (Carlos tem 5 horas e meia, Autobiografia cerca de 3), pois repetição e exaustão são essenciais para suas constatações. E enquanto tudo em Carlos é informação (cada fato levantado na sua meticulosa pesquisa encontra espaço no filme, sendo o drama constantemente subjugado pela informação - o filme até se abre pedindo desculpas pelos pontos em que teve que se afastar dos fatos, como se isto não fosse o normal de qualquer cinebiografia), Autobiografia de Nicolae Ceausescu (foto acima) até nos dá uma idéia geral da trajetória do seu protagonista, mas trabalha o tempo todo em direção a drená-la do que esperamos encontrar num filme como este (nenhum espectador aprenderá nada sobre Ceausescu assistindo o trabalho de Ujica). 

A critica mais freqüente ao filme de Olivier Assayas é justamente o filme jamais transcender seu gênero. Como se esperássemos mais do “grande autor” do que um amontoado de fatos encavalados em seqüência. Mas este é justamente o ponto de Carlos: não há escapatória honesta para a cinebiografia. Seu limite é claro. O toque “autoral” do cineasta francês é só à moda das melhores cinebiografias (o J Edgar Hoover de Cohen ou o Lucky Luciano de Rosi): tratar a trajetória de Carlos como um policial B. Com todos os seus fatos e detalhes, Carlos mais triunfa quanto mais abraça a ficção - suas melhores seqüências justamente no entrecho que lida com o seqüestro dos ministros de petróleo na reunião da OPEP. É também o ponto alto da carreira do terrorista, onde o fracasso do seu objetivo nominal se torna irrelevante diante do seu sucesso como espetáculo. Um triunfo da mise en scène sobre a informação.

O filme de Olivier Assayas chega, assim, via sua lógica de thriller B, na mesma celebração da pomposa parada que o governo norte coreano oferece a Ceausescu (de acordo com Ujica, Kim Ill-sung é o David Selznick dos ditadores comunistas). As seqüências de grandes eventos públicos como esta reforçam como ritmo e coreografia de Autobiografia de Nicolae Ceausescu por vezes sugerem um musical, no seu ideal próprio de espetacular (diferente, mas complementar ao thriller B de Assayas). Certamente não é coincidência que Ujica tenha buscado uma montadora, Dana Bunescu, acostumada a trabalhar em filmes de ficção (ela é responsável, entre outros pela montagem de A Morte do Senhor Lazarescu e 4 Meses 3 Semanas e 2 Dias) para ajudar a organizar o amplo material que tinha em mãos. 

Todo o filme é baseado em aparições públicas de Ceausescu, mas as aparições menores (seja nos ocasionais home movies, seja nos pequenos eventos como sua visita ao comércio no subúrbio de Bucareste) são provavelmente mais reveladoras que as paradas e discursos da vida pública oficial. Ambas esferas públicas são subjugadas ao mesmo tipo de mise en scène, mas é nestas aparições menores que fica claro que, se Carlos deseja viver num filme, Nicolae Ceausescu literalmente vive num. Cada elemento de cena tão controlado como num palco preparado ao longo de semanas para perfeitamente agradar seu ator central/principal espectador. Para longe da aparente ironia, o título de Autobiografia não poderia ser mais exato já que o filme está longe de ser uma análise de como o aparato de estado controlava a imagem de seu ditador, sendo muito mais uma afirmação sobre como seu personagem central consome sua própria encenação.

Se a história é um filme, tanto em Carlos como em Autobiografia de Nicolae Ceausescu não há dúvidas que o único espectador que importa de fato a ambos são aqueles contidos já nos títulos dos filmes.

Outubro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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