in loco
Dia 9: O experimento é narrar
por Eduardo Valente


Antes do texto acerca dos outros filmes do dia, uma explicação se faz necessária. Nessa cobertura de Cannes não se mencionará criticamente nenhum dos dois longas brasileiros exibidos no Festival: 5XFavela – Agora Por Nós Mesmos e A Alegria. Isso acontece por motivos práticos bastante diretos: A Alegria é produzido pela Duas Mariola Filmes, empresa produtora da qual sou um dos sócios; já 5XFavela é produzido pela Luz Mágica Produções, que está custeando boa parte da minha estadia em Cannes por conta de um terceiro projeto em comum, a ser exibido depois no Canal Brasil. Assim sendo, obviamente este que aqui escreve não tem o menor distanciamento para gostar destes dois filmes, e muito menos se encontra em posição de defendê-los com isenção nestas páginas virtuais.

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Le Quattro Volte, de Michelangelo Frammartino (Itália/Alemanha/Suíça, 2010) –
Quinzena dos Realizadores
Two Gates of Sleep, de Alistair Banks Griffin (EUA, 2010) – Quinzena dos Realizadores

É engraçado, e talvez digno de mencionar para o leitor que está distante dos detalhes comezinhos da programação do Festival, como a Quinzena dos Realizadores optou, neste primeiro ano sob a direção artística de Frederic Boyer, por fazer uma distinção clara entre as três faixas de horário que ocupa por dia. Assim, enquanto às 19h30 deixou seus filmes com claro contato mais direto com o público, e às 22h seus filmes mais pesados, colocou no horário até certo ponto alternativo das 17h uma série de filmes que têm em comum uma inquietude marcada com o cinema clássico narrativo, expressa de inúmeras maneiras, e quase sempre marcado por produções hiperindependentes, muitas vezes autofinanciadas.

Este é o caso destes dois filmes que acabei por ver no mesmo dia, em reprises num cinema alternativo da Quinzena, mas que ocuparam originalmente a faixa das 17h no seu palco principal. E que, também por coincidência, lidam diretamente com a relação entre o homem e a natureza, passados em espaços isolados no interior da Itália e dos EUA, respectivamente. Dos dois, Le Quattro Volte (foto) é indubitavelmente o mais bem sucedido em atingir seus resultados buscados, e isso acontece por um motivo bem simples: embora seja um filme sem nenhum diálogo e que é literalmente protagonizado em metade do seu tempo por animais e até mesmo uma árvore, o filme tem uma capacidade de saber muito bem o que deseja fazer, e encontrar os melhores meios para fazê-lo, cinematográfica e narrativamente.

No começo, há algo de preocupante mesmo na maneira como começa a se aproximar de um pastor de ovelhas no meio do campo italiano. Parece propor um olhar idealizado e de uma contemplação meio fácil para a vida do homem em meio à natureza. Longe disso, porém: logo, Michelangelo Frammartino vai injetando no seu filme um humor discreto, porém preciso, e que deixa claro que não há qualquer idealização da vida na natureza. Muito pelo contrário: na medida em que o homem passa a fazer parte da paisagem (a ponto de ter seu rosto tornado campo de passeio de uma formiga), o que Frammartino destaca é que ele é apenas mais um elemento no meio de um ciclo. Assim, da mesma forma que é a ação humana que determina os destinos de uma árvore, de uma série de caracóis ou de um rebanho de cabras, da mesma maneira será um cachorro, uma cabra e algumas formigas que determinarão o destino de um homem.

O mais impressionante aspecto do filme de Frammartino, aliás, é sugerido no fraseamento acima: o que poderia facilmente se contentar em ser apenas um filme de olhar distanciado, algo entre o cinema de arte autocongratulatório pelo seu “olhar delicado” e um National Geographic humanista (e o diretor demonstra ter cacife e facilidade para fazer um exemplar de ambos muitíssimo bem resolvido), na verdade é um filme de imenso controle do seu andamento, seja através do ritmo, seja através, principalmente, de uma precisão absurda de enquadramentos. De fato, não é por acaso que vem à mente enquanto o vemos Jacques Tati (ou mesmo de Elia Suleiman, por tabela): Frammartino finge deixar nascer do mundo naturalmente uma narrativa (com direito a uma mudança de protagonista na metade que faz não deixa devendo nada ao Lost Highway de Lynch), quando de fato ela é colocada em movimento de modo incrivelmente preciso. Como poucos filmes no Festival deste ano, Le Quattro Volte nos deixa partilhar de alguns daqueles momentos no cinema onde ainda soltamos um “oh” encantado. Não é pouca coisa - pelo menos para estes olhos cansados de dias e mais dias de imagens.

Justamente este encantamento, de qualquer tipo que seja, é o que falta a Two Gates of Sleep, de resto um filme realizado por um diretor que, sem dúvida, conhece muito de história do cinema, da arte, e é assessorado por técnicos muito talentosos em áreas como a fotografia e a trilha sonora. No entanto, todo esse conhecimento resulta num filme que, se também é hipertrabalhado ao extremo, ao invés da complexa simplicidade que emana do filme italiano, só consegue atingir uma simplória complexidade. Simplória pela sua incapacidade de despertar nosso empatia pelo que se passa na tela, seja através de qual critério for: os corpos que vagueiam pela tela não nos interessam como personagens, como imagens, como enigmas. Ao tentar fazer deles disso tudo um pouco, com muita consciência, o filme não permite que eles se encarnem como nenhum.

Assistimos o filme todo pensando numa série de nomes que tentaram em anos recentes coisas semelhantes às que o filme busca atingir (Bela Tarr, Gus Van Sant, Lisandro Alonso, Terence Malick), ainda que com objetivos distintos. E com isso vamos lembrando como, em cada um destes casos, nosso engajamento era conseguido – talvez, principalmente, pelo que restava de enigmático nos ruídos dentro da sua própria construção. Em Two Gates of Sleep, não: tudo é límpido – não como explicação, que não é o caso, mas como imagem mesmo. Todos os planos parecem munidos de uma mesma pictorialidade excessivamente autoconsciente, que aprisiona seus personagens numa natureza que, mais do que se relacionar com eles organicamente, oprime-os pela beleza. Se fosse essa a intenção do filme, maravilha: acontece que os seres humanos são seu foco; a natureza, o fundo (e diga-se que o filme deixa isso claro literalmente muitas vezes, usando exaustivamente do foco para compor belas imagens). E aí, o que é seu foco, com o perdão da repetição, nunca entra em foco.

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Sound of Noise, de Johannes Stjärne Nilsson e Ola Simonsson (Suécia/França, 2010) –
Semana da Crítica

A explicação para este longa ter sido o único a conseguir me mobilizar numa ida até a mais distante sala de exibição do Festival (a da Semana da Crítica) nasce da curiosidade ao saber que este primeiro longa da dupla de diretores suecos era uma extensão, de alguma maneira, do que eles haviam feito no curta Music For One Apartment and Six Drummers, visto mais de uma vez em festivais nacionais do formato, após sua exibição aqui mesmo na competição de Cannes em 2001. O curta (encontrável no YouTube, com mais de 10 milhões de views) é uma pérola de humor, ritmo e mise-en-scène, que consegue criar 10 dos mais divertidos minutos do cinema sueco em muito tempo. No entanto, também me parece o mais improvável dos filmes a inspirar (e dar consistência) a um filme de 100 minutos como este, então eu realmente precisava entender como isso tinha acontecido.

De fato, e com alegria, o longa me causou uma confirmação e uma surpresa. A confirmação é a da mistura de talento e grande senso de diversão que a dupla de diretores consegue impor no seu cinema. Mas, como isso acontece no formato longo tem a ver com a surpresa: para além dos números musicais criados para o filme com enorme criatividade e saudável falta de noção, os diretores conseguiram escrever um roteiro que, ao longo de 100 minutos (com pequeníssimas exceções, uma delas sendo, infelizmente, bem perto do seu desfecho), nos mantém absolutamente ligados aos personagens na tela, por mais improváveis que eles pareçam – e, de fato, sejam. Há essa capacidade rara de criar um mundo ficcional que funciona com regras à parte, e conseguir nos inserir nelas – basicamente por acreditar muito neste universo, mas também por sabê-lo passível de ridículo, e nem por isso menos apaixonante. Fato é que, mais do que qualquer outra coisa, Sound of Noise tem isso em comum com o curta: é, disparado, um dos filmes mais divertidos que se pode assistir. O que faz toda a diferença num festival como o de Cannes, onde os filmes que nos desinteressam o fazem de maneira geralmente profundamente desagradável principalmente por se levarem muito a sério.

Maio de 2010

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