in loco
Dia 8: Sobre Kiarostami, a partir
de Godard
por Eduardo Valente
Copie Conforme,
de Abbas Kiarostami (França/Itália, 2010) – Competição
Falávamos
outro dia, a partir dos novos filmes de Takeshi Kitano e de Jia
Zhang-Ke sobre como pode ser fascinante seguir o caminho de alguns
autores, com seus passos sempre adiante que, muitas vezes, podem
ser absolutamente surpreendentes mesmo em sua coerência. E isso
certamente se aplica à experiência de assistirmos este
novo filme de Kiarostami. Afinal, quem depois de ver seus últimos
três longas (Dez, Five, Shirin), poderia
realmente dizer que esperava um filme onde, não obstante ele sair
do Irã pela primeira vez (não apenas como paisagem, mas de qualquer
outra maneira – não há um iraniano em cena nem qualquer questão
que diga respeito ao país), encontramos ele no que, a princípio,
pareceria ser seu exercício mais convencional em relação ao trabalho
com os atores e até no próprio tema abordado (as relações entre
homem e mulher) – tanto assim que todas as críticas publicadas
sobre o filme fizeram questão de se referir a, vejam só, Antes
do Amanhecer/Pôr do Sol, de Richard Linklater!! E,
no entanto, embora essa lembrança esteja longe de poder ser chamada
de absurda, ainda assim Copie Conforme, uma vez visto pelo
que é, faz todo o sentido neste momento da carreira de Kiarostami.
Como pode um filme atender a essas duas descrições? Este é o grande
mistério deste Copie Conforme – filme, aliás, a ser visto,
revisto, e desvendado muito, muito aos poucos.
Desde sua primeira cena, com a notada ausência
do personagem principal num quadro que espera por ele para fazer
sentido, Kiarostami nos lembra o que sempre uniu seus trabalhos:
uma capacidade de nos instalar no espaço extremamente rara – seja
ele o espaço de um carro (Dez), o de uma praia onde patos
passeiam (Five), ou o de seus filmes pelas cidades do Irã,
que vieram antes. Existe uma capacidade radical e incomum neste
diretor (da qual talvez Close Up seja o exemplo mais óbvio)
que é a de nos fazer perceber cada pedaço da construção que faz,
e ao mesmo tempo nos fazer esquecer totalmente de que está a construir
algo. Neste sentido, talvez Shirin represente mesmo a depuração
máxima do que o cinema de Kiarostami sempre conseguiu nos fazer
sentir: de uma situação absolutamente falsa e montada a partir
de todos os pressupostos mais fictícios, extrair uma emoção sincera
e verdadeira. Pois a construção, destruição e reconstrução constante
deste sentimento é exatamente do que se compõe Copie Conforme,
um filme no qual o espectador se sente o tempo todo da sua duração
igualmente desconfortável e totalmente acolhido. Não se pode diminuir
o tamanho do talento de um cineasta que consegue tal reação.
O
filme começa com uma longa palestra sobre a verdade que há
na relação do espectador com a cópia de uma obra de arte. Poderia
ser uma excruciante pré-explicação, ou manual de instruções para
assistir o filme – no entanto, Kiarostami cria na ficção que encena
uma série de ruídos ao longo de toda a cena (a entrada atrasada
do personagem, sua maneira de falar, a entrada de Binoche e seu
filho, as interrupções constantes) que faz com que ela soe como
tudo menos isso. Que não restem dúvidas: essa questão é central
ao filme, e afinal é o complemento preciso a tudo que Shirin
nos fazia pensar. A partir dessa cena inicial, Kiarostami nos
tem em suas mãos, e o que fará a partir daí é literalmente brincar
(“to play”) com o cinema: com os atores, com a idéia mesmo de
ficção, com as locações, com as palavras (as trocas constantes
de idiomas e a maneira como se dão, são essenciais ao filme).
Em suma, nada que ele já não venha fazendo há anos e anos, mas
que nunca tinha feito exatamente desta forma (e existe definição
melhor para o cinema de um grande autor?).
Ao longo do filme, Kiarostami volta a uma série
de seus mais conhecidos motifs (a conversa dentro do carro,
o carro que transita pelas estradas pequenas do interior, as caminhadas
pelas cidades que compõem o trajeto dramático dos personagens,
a entrada de elementos externos que reposicionam a trama – a cena
no café italiano é de uma genialidade difícil de descrever, assim
como a cameo essencial de Jean-Claude Carriére), mas em
todas as vezes nos parece que vemos aquilo tudo pela primeira
vez. A brincadeira entre o que é verdade ou não (que nos lembra
muito de Através das Oliveiras) e sobre aquilo em que devemos/somos
capazes de acreditar ou não, se revela extremamente potente até
o plano final. De fato, Kiarostami refaz todos os filmes de amor
já feitos num só - não são todas as histórias de
amor a mesma? Se há um “original” em jogo (e o que é o original,
pergunta o filme, literalmente?), este é mesmo o Viagem a Itália,
de Rossellini (ou a Itália não seria a locação do filme), do qual
se pode dizer que Copie Conforme seja, como sugere o título,
a cópia autenticada – só que, como toda cópia, ela não
tem mais nada do original, embora tenha tudo. Ou vice versa.
* * *
Film Socialisme, de Jean-Luc Godard (Suiça/França,
2010) – Un Certain Regard
De
todos os clichês que se ouve em um lugar como Cannes, pelo
menos um deles faz sentido: não é possível criticar a sério um
filme de Godard, muito menos ESTE filme de Godard, numa primeira
visão – primeira visão que, além de tudo, se dá no ambiente infernal
da correria e do cansaço de Cannes. Não se trata de querer colocar
o suíço num pedestal diferenciado, porque eu nem seria a pessoa
mais indicada para isso. Se trata simplesmente de constatar que
uma obra como Film Socialisme pede um tempo (além
de uma revisão ao menos), antes de se emitir qualquer palavra
minimamente consequente (artigo raro em Cannes, é verdade).
De fato, eu iria mais longe: um novo filme de
Godard não deveria mesmo é passar no Festival de Cannes
– tal a forma como os dois parecem objetos incompatíveis. No final
da sua vida, Bergman, por exemplo, se recusou a exibir Saraband
nos maiores festivais, exatamente por achar que o verdadeiro circo
que eles haviam se transformado era incompatível com o cinema
que ele queria fazer. E não é possível discordar, na verdade.
Eu, particularmente, gosto bastante dessa insanidade de Cannes,
mas sei reconhecer que ela não serve para todas as experiências.
Por isso mesmo, por exemplo, quase sempre evito a Cannes Classics,
pois considero a necessidade de mergulhar num filme de 30, 40,
70 anos atrás, entre a corrida de entrada e saída de um filme
contemporâneo, um outro choque perceptivo que geralmente não me
permite construir muitas idéias/sensações úteis. Há uma distância
muito grande entre o que me move aqui em Cannes (mergulhar no
que se desenha como o cinema do mundo hoje, em linhas gerais,
com suas maiores qualidades e maiores defeitos, e perceber melhor
o estado das coisas) e o que nos pede uma revisão de Psicose
e Sapatinhos Vermelhos, ou a primeira visão de um desconhecido
filme da Índia dos anos 60 ou da Coréia do Sul dos anos 50. Não
dá (ou melhor, não dá para mim) para desligar e religar estas
chaves diferentes.
E
aí a gente chega a Film Socialisme, e de alguma maneira
este argumento faz todo sentido, porque é um filme que parece
fora do seu tempo, como a própria visão de todos os outros filmes
em volta fazem crer. Não que se trate necessariamente de um filme
atrasado no tempo, nem um filme de vanguarda: é os dois ao mesmo
tempo – mas, paradoxalmente, de uma contemporaneidade absurda.
Só não parece é ser contemporâneo dos outro filmes, embora
o seja do mundo. Godard exacerba aqui algo que vinha das suas
últimas experiências, seja no História(s) do Cinema, seja
nos seus últimos longas, e faz um filme que parte muito mais dele
mesmo do que de qualquer outro estímulo. E o que Film Socialisme
deixa claro é como, para Godard, todo o fluxo da História (seja
ela a do mundo, seja ela a da arte, seja ela a das imagens em
movimento) está conectado de uma maneira que, ao mesmo tempo em
que desafia qualquer compreensão simplificadora (e não por acaso
o filme se estrutura principalmente a partir de uma conexão constante
entre elementos à primeira vista completamente distintos
e, muitas vezes, incompatíveis), ao nos ser proposta da maneira
como ele faz, nos coloca num estado outro de percepção.
A verdade é que Film Socialisme
nos maravilha, irrita, inquieta, confunde, esclarece, chateia
– tudo isso, mais ou menos, a cada minuto. Assim como os aforismos
que cada vez mais parecem fascinar Godard (como podemos ver, por
exemplo, nesta
entrevista), seu filme nunca poderá ser aceito ou recusado
incondicionalmente, sob risco desta atitude ser subserviente a
interesses outros que os do próprio filme e diretor – afinal,
Godard, com certeza, não faz um plano, uma sequência, uma superposição
de sons e imagens, com o objetivo de ser admirado. Por isso mesmo,
este filme não se presta a uma análise nas linhas que se faz aqui
nessa cobertura, que tentam dar uma idéia ainda vaga, ainda ampla,
do que são alguns filmes. Não dá para se fazer isso com Film
Socialisme, porque ele são muitos. Por isso, o mais honesto,
por enquanto é fazer isso que se tentou: falar do que foi a experiência
de ser apresentado a ele. No futuro, com mais uma visita, quem
sabe podemos começar a conversar mais sobre e com ele.
Maio de 2010
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