in loco
Dia 7: Filmes religiosos, sem fé
no cinema
por Eduardo Valente
Todo ano circulam por Cannes duas frases feitas,
que não significam de fato absolutamente nada: 1) “os filmes deste
ano tratam muito das relações familiares, especialmente dos pais
e filhos” (como se 90% dos filmes feitos no mundo, fora dos espetáculos
de ação hollywoodianos – embora muitas vezes incluindo eles –
não lidasse, de alguma forma, com essa questão); 2) “a seleção
deste ano está muito dura, com temas pesados” (como se um festival
como Cannes não desse absoluta atenção na sua competição aos filmes
de “grandes temas”, geralmente duros, deixando comédias e filmes
de gênero, em grande parte, nas sessões paralelas). Se isso acontece
quase todo dia, a exibição quase seguida de dois dos filmes da
competição hoje certamente elevou o tom e a frequência destes
clichês na edição 2010.
* * *
Biutiful, de Alejandro González-Iñarritu (Espanha/México, 2010) – Competição
Des hommes et des dieux, de Xavier Beauvois (França, 2010) – Competição
Se
falamos de “grandes temas” e de “vida dura”, já sabemos: Iñarritu
está em casa.
Mas mesmo os que já achavam que Amores Brutos,
21 Gramas e Babel eram, em ordem de exponencial
crescimento, um exagero de exploração da miséria humana para fins
de extrair aparentes “beleza” e “arte”, nem mesmo estes estavam
preparados para o que nos trouxe Biutiful. Uma sinopse
do filme chega a parecer piada, como uma sátira do tipo “Just
Another Tragic Exploratory Movie”: afinal, o personagem principal,
interpretado por Javier Bardem com todo o grau de “acting!” possível,
é um médium que fala com fantasmas que sofrem antes de desencarnar,
enquanto ele mesmo está doente de câncer terminal e tem que cuidar
sozinho dos seus dois filhos, uma vez que sua ex-mulher sofre
de transtorno bipolar (e tem um caso com o irmão dele). Ah, sim:
no meio tempo, ele emprega uma rede de imigrantes africanos ilegais
como camelôs, enquanto agencia trabalhadores chineses ilegais
para trabalho exploratório em construção civil. E claro que a
tragédia (e a polícia) vão atacar todos os dois grupos de imigrantes,
colocando mais culpa nos ombros de Bardem. Faltou alguma coisa?
Ah, sim: ele tem um trauma por não ter conhecido seu pai, morto
violentamente, e cujo cadáver está para ser exumado de um cemitério
porque será construído um shopping em cima deste. Não, eu juro
que não estou brincando.
A sinopse acima basicamente esclarece o que nos
perguntávamos sobre o muito divulgado fim da parceria entre Iñarritu
e Guillermo Arriaga, roteirista-estrela dos três primeiros filmes
dele, e depois diretor de um filme próprio. De Arriaga vinha mesmo
a lógica do entendimento da complexidade do mundo através de multiplots
catárticos (embora Iñarritu flerte com ele aqui e ali, em cenas
no mundo dos imigrantes em suas línguas natais que nos colocam
em território muito próximo do “babeliano”), com obsessão por
fechamentos perfeitos e desordenamento narrativo; enquanto, de
Iñarritu vinha o fascínio pelo sofrimento humano e a paixão pela
manipulação emocional rasa do espectador (algo que já podíamos
até intuir ao ver o Três Enterros, que Tommy Lee Jones
dirigiu de um roteiro de Arriaga e cuja segunda metade segue a
única parte realmente potente da obra deste).
Na
frase que fecha o parágrafo acima, é importante que fique claro
que o termo complicador é “rasa”, porque manipulação do espectador
é algo inerente a qualquer filme. Só que a manipulação (para não
dizer o entendimento do mundo e do ser humano) nas mãos de Iñarritu
sempre precisa passar pelo lugar comum, pelo uso das ferramentas
de construção cinematográfica (principalmente fotografia e trilha
sonora) para os fins mais óbvios e banais possíveis. Claro, tudo
a serviço dos temas muito sérios e urgentes, demonstrando o máximo
possível de carpintaria auto-elogiosa. O resultado disso tudo,
já se sabe: prêmios aqui e ali, elogios em maior número, e acima
de tudo, muito prestígio autoral. Nada que o mundo da política
já não tenha nos ensinado sobre a prevalência e utilidade de explorar
o mínimo denominador comum – que, no caso, se fecha com a redenção
que vem com uma morte que, claro, se constrói como cheia de sentido,
heróica na sua disposição ao sacrifício e bondade.
Curiosamente,
um cineasta tão distante de Iñarritu como se poderia pensar (pelo
menos no terreno da narrativa ficcional clássica), o francês Xavier
Beauvois, apresentou um filme na competição que, se tem inegavelmente
mais força e decência humana (até por ter um pouco das duas, o
que não é o caso no outro), acaba se perdendo muito pelo mesmo
motivo. Ao lidar com o caso verídico dos monges franceses seqüestrados
na Argélia em 1996, Beauvois termina por se render de forma muito
óbvia à tentação da redenção, da afirmação de que a morte serve
a um propósito, sempre. Poderia se dizer que ao fazer isso ele
se espelha na fé dos seus personagens, claro, mas este é exatamente
o problema: ao lidar com oito indivíduos diferentes, se o filme
abre bastante espaço durante a sua duração para a dúvida, para
a dor do ceticismo e da incerteza frente a morte (que é, afinal,
o drama humano por excelência), da mesma forma ele sente a necessidade,
no seu terço final, de caminhar rumo a uma afirmação absolutamente
excessiva (em todos os sentidos do termo – excesso de cenas com
o mesmo tom, excesso de exposição dos sentimentos em diálogos),
além de totalizante no conjunto dos personagens, de uma quase
beatitude bastante simplista. Seus monges viram santos.
Não
parece ficar dúvida de que boa parte disso tem a ver com o fato
do filme se basear em história real bastante recente, de personagens
que são profundamente significativos para a França. Há aí uma
natural pressão para que o filme crie, a partir de sua horrível
morte, um sentido maior. Mas, se como eu disse, isso pode ser
compreensível em uma série de critérios (comercial, pessoal, de
relações políticas e/ou sociais a partir do filme), não vai se
tornar menos redutor como objeto artístico, que tem como maior
força justamente a possibilidade de colocar o ser humano frente
às dúvidas da existência, de elevar o espírito justamente ao não
precisar simplificá-lo. Ao fazer isso, por mais que construa ao
longo de sua uma hora inicial alguns momentos de enorme força
cinematográfica (principalmente na relação dos monges entre si,
e deles com a paisagem e os habitantes argelinos do entorno –
em especial, no primeiro ataque dos terroristas ao monastério),
Des hommes et des dieux cai na armadilha de ser muito mais
discurso religioso do que artístico, pois não resta dúvida: usar
o cinema como ferramenta de consolo ou de garantia da vida eterna
para os espectadores não é muito diferente de um sermão de domingo.
Eu, particularmente, não acredito – não na mensagem em si, mas
no fato de que o cinema seja potente quando se torna intermediário
dela.
* * *
Carancho, de Pablo Trapero (Argentina/França/Chile, 2010) – Un Certain Regard
Como
seu impactante plano final não deixa qualquer dúvida, os problemas
de crença no caso de Carancho são bem diferentes - o que
já seria de se esperar, uma vez que Pablo Trapero certamente não
é um cineasta que tenha por hábito reduzir a experiência humana
a um slogan ou uma necessidade de redenção. No entanto, seu novo
filme acaba resultando bastante insatisfatório como experiência
de fruição, por motivos bem distintos. O primeiro e principal
talvez seja de casting, e aí a questão é caseira mesmo:
ao colocar sua mulher (e produtora!) como protagonista feminina
do filme, Trapero comete um equívoco sério (ainda que por razões
pessoais bastante compreensíveis), pois se Martina Guzmán tinha
a força de presença ideal para Leonera, onde precisava
ser uma “mãe coragem obsessiva e presidiária”, ela não consegue
fazer com que a parte romântica deste novo filme decole. Tudo
que envolve sua relação com o personagem de Ricardo Darín acaba
soando falso, uma imposição do roteiro, simplesmente por esta
falta de química (algo, aliás, de que Darín já sofreu em
O Segredo dos Seus Olhos – não
haveria atriz argentina na sua idade capaz de segurar a onda como
seu par romântico?).
Por outro lado, talvez o problema seja ainda anterior
ao do casting da atriz: assim como acontecia no citado
filme ganhador do Oscar, de Campanella, a questão de fundo parece
realmente ser a simples necessidade, de fundo obviamente comercial
(o cinema, esta arte prostituta), de criar esse caso de amor entre
os dois personagens. Carancho parece bastante constrangido
por isso (assim como era o caso com Campanella), com um certo
medo de "sujar as mãos" no que é preciso para
fazer uma história de amor funcionar na tela (algo de que, por
exemplo, o cinema americano – matriz/referência clara e de qualidade
para os dois filmes – raramente sofre). Assim, o filme de Trapero
parece sempre mancar entre seus dois lados: o de uma história
de amor e o de denúncia de um sistema de exploração legal de pessoas
que sofrem acidentes de automóvel. No fundo, não parece haver
convicção de fato em nenhum deles, com um roteiro que faz o mínimo
necessário para estruturar ambas as narrativas da maneira mais
banal e desinteressada, e o filme vive de tours de force
eventuais de direção e de atuação de Darín. O resultado pode até
vir a ser um sucesso comercial, mas é um tremendo passo atrás
no cinema de Trapero (certamente, aliás, não foi por acaso que
Cannes optou por “rebaixá-lo” da Competição para a Un Certain
Regard - mesmo num ano em que não havia tantos nomes já previamente
garantidos de diretores “de competição”).
Maio de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|