in loco
Dia 6: Dois cineastas em processo
por Eduardo Valente


Ao falarmos ontem do fenômeno da fabricação de um autor, mencionando o caso Xavier Dolan, pode ter ficado a sensação de que enxergamos o conceito apenas com cinismo e/ou descrença. Não é o caso, só cabe estar atento a alguns dos vícios a que o seu predomínio no entendimento do cinema pode nos levar e aprisionar. No entanto, é claro que o conceito não perderá boa parte do sentido original que o trouxe ao mundo, ainda que já em outro lugar ou com outras motivações. Hoje, por exemplo, foi dia de ser relembrado de duas maneiras bem diferentes, por dois cineastas asiáticos que se impuseram no panorama internacional dos últimos 20 anos com força, sobre como pode haver prazer em acompanhar ao longo do tempo o desenrolar e os caminhos que levam adiante a obra de alguns diretores. Caminhos estes que são misteriosos na sua forma de ir em frente e ao mesmo tempo olhar constantemente para trás, para o já feito e para o que ainda há por fazer.

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I Wish I Knew (Hai Chang Shuan Qi), de Jia Zhang-Ke (China/Holanda, 2010) – Un Certain Regard

Apresentando seu filme para a platéia, Jia Zhang-Ke disse que, depois de olhar com atenção para a China contemporânea nos seus últimos filmes, ele sentia necessidade de fazer um filme que olhasse para o passado, por ter um pressentimento de que boa parte de tudo aquilo que ele tentava retratar tinha suas chaves neste tempo anterior, na História em suma. E, de fato, I Wish I Knew se estrutura exatamente desta maneira: um diálogo constante entre presente e passado, através da dimensão da memória que sobressai no filme a partir dos depoimentos de 18 pessoas que relembram trechos da sua história pessoal (e, a partir dela, iluminam aspectos da história do país). A câmera do fotógrafo habitual de Jia, Yu Lik-Wai, traça movimentos aos quais os conhecedores da obra do cineasta já estão bastante acostumados: uma exploração cuidadosa da paisagem (no caso, principalmente a de Xangai), sempre a partir da inserção do elemento humano dentro dela; e, num elemento particularmente presente nos seus documentários, uma atenção extrema a planos de detalhes e closes em rostos que sempre impressionam pelo apuro visual com que são construídos – mesmo quando resultam extremamente simples, os planos de Jia e Yu nunca são banais.

Falamos acima de documentário, e é um fato que I Wish I Knew pode ser principalmente caracterizado como tal, mas ainda restam aqui reflexos do seu ousado trabalho anterior, 24 City, através da utilização, mais uma vez, da figura de sua atriz-fetiche Zhao Tao, que paira pelas ruas de Xangai como um fantasma – termo que é mais que adequado, como veremos quase no final do filme. No entanto, a maneira como a ficção mais efetivamente se insere como parte do que é o filme é através do uso extremamente respeitoso, e mesmo amoroso, que Jia faz de uma série de filmes da história chinesa, de trabalhos mais antigos até os recentes Su Zhou River ou Flores de Xangai. Não por acaso, vários dos entrevistados têm relação direta com a História do cinema chinês: desde cineastas a uma atriz, passando mesmo por um homem que acompanhou, representando o Estado, as filmagens que Antonioni fez no país no começo da década de 70. Uma das principais afirmações que I Wish I Knew parece fazer é de que o cinema é parte essencial da construção da memória e da história de um país – e não se pode deixar de notar como o próprio filme parece ter muita noção da sua importância como objeto histórico já na hora de sua realização.

Finalmente, é interessante perceber a maneira como Jia parte de Xangai como seu objeto principal de atenção, mas o filme acaba sentindo a necessidade de ir parar em Taiwan e Hong Kong, que surgem nas próprias lembranças de seus entrevistados como destinos a (des)cobrir, uma vez que a história da chamada Liberação de Xangai (chamada de Tomada de Xangai pelos que moram fora do país) também é a história do exílio nestes dois destinos dos chineses que apoiavam (ou simplesmente estavam ligados a) o regime de Chiang Kai-Shek. Esta disposição de ampliar o seu objeto na medida em que percebe esta necessidade dá uma idéia da organicidade do processo de Jia, que não deixa que as fronteiras de um objeto pré-determinado (Xangai) impeçam o filme de ir atrás do seu destino natural. I Wish I Knew é principalmente assim, com o perdão da metáfora fácil e tão usada: parece fluir com a naturalidade de um rio, ou da história do homem e de um pais, incorporando necessariamente tudo aquilo que vai surgindo no seu caminho, e mudando junto com isso.

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Outrage (Autoreiji), de Takeshi Kitano (Japão, 2010) – Competição

Se a carreira de Jia, agora com pouco mais de uma década, vai seguindo o caminho de uma depuração de questões que claramente seguem adiante com o que vem dos filmes anteriores (o que não significa, diga-se, que necessariamente os novos filmes são melhores do que os anteriores), Outrage nos mostra um autor que já foi ao inferno e voltou. Nos seus últimos 3 filmes (Takeshis’, Glória ao Cineasta e Aquiles e a Tartaruga), Takeshi Kitano demonstrou uma disposição bastante incomum aos cineastas do primeiro time do mundo: a de se colocar em questão publicamente, através de sua própria obra. Sua trajetória meteórica ao topo (que lhe rendeu um Leão de Ouro em Veneza antes mesmo de completar dez anos – assim como Jia, aliás), seguida com enorme devoção, pareceu colocar-lhe num ponto de crise sobre o que o movia, levando a este corajoso passo atrás que o distanciou do público, de boa parte da crítica, e até mesmo nos festivais, onde acabou ficando relegado nos últimos filmes a vagas “hors concours” (algo do tipo “ok, vamos perdoar essa sua excentricidade, mas queremos ter você por perto”).

Nesse sentido, a volta dele à “primeira divisão” (no caso, a competição em Cannes) dar-se com este Outrage é altamente simbólico do que isso pode significar sobre a recepção geral da sua obra, mas também pode ser visto como um gesto tão fortemente irônico e agressivo da parte do diretor quanto o de seus filmes anteriores – configurando-se numa curiosa mistura de aparente conformidade e enorme ousadia. Isso porque, ao mesmo tempo em que o filme marca a volta de Takeshi (o cineasta, mas também o ator) ao ambiente que lhe rendeu fama internacional (e o Leão de Ouro para Hana-Bi), ou seja, os filmes com protagonistas ligados às gangues japonesas yakuza, ele é também um exemplar desse tipo de filme que vai bastante no sentido contrário dos que Takeshi havia feito antes.

Não há em Outrage nenhuma sombra da poesia lúdica que invadia eventualmente um Sonatine ou o próprio Hana-Bi, e muito pouco do humor de um Brother. De fato, este seu novo filme é de um desencanto completo com o próprio universo retratado, de onde desta vez não sobressai nenhum sentido de honra, amizade, nem mesmo um improvável heroísmo. Outrage, de fato, é basicamente composto de duas horas de traições e golpes mútuos entre vários braços de uma organização mafiosa, que, invariavelmente, deságuam em cenas de uma violência impressionante (a maior parte delas filmada de forma absolutamente frontal, sem nenhum espaço para prazeres estéticos a partir delas). Mesmo que a figura interpretada por Takeshi seja a mais simpática ao espectador, está longe de ser configurado como um protagonista: passa muito tempo fora de tela, é capaz dos mesmos atos de traição e violência injustificados, e não terá fim diferente de nenhum dos seus colegas. Trata-se, de fato, de um filme tão desencantado, que termina por deixar um gosto ruim na boca, não só pelo seu final (que nos indica que, sim, a traição pode dar certo – “o crime compensa”), mas pela experiência francamente desagradável que Takeshi faz com questão que seja assisti-lo.

Difícil acreditar que a crítica institucionalizada esteja pronta a abraçar um filme como este, ou que prêmios venham em sua direção. De fato, dá para se acreditar que, se fosse assinado por qualquer outro cineasta, o filme estaria nos subterrâneos do mercado, onde boa parte do cinema de gênero mais direto vai parar, e não na nobreza da competição. Outrage parece, ao final, uma forma de Takeshi nos dizer: “ah, vocês querem gângsters violentos da Yakuza? Pois, ok, vamos a eles”, e ao mesmo tempo continuar com sua crise em praça aberta – algo que o faz um dos autores mais instigantes no cinema hoje, justamente por estar tão abertamente desagradado com seu próprio posto dentro dele.

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La Casa Muda, de Gustavo Hernández (Uruguai, 2010) – Quinzena dos Realizadores

Falamos acima do nome de um autor reconhecido como algo que pode distinguir, para um Festival como Cannes, um filme de gênero como os trocentos que vemos todos os anos à venda no mercado (e com pôsters cada vez mais criativos nas revistas diárias deste) daqueles que são convidados a exibições em suas diferentes seções. Pois bem, este La Casa Muda representa um outro exemplo curioso, inclusive por algumas características que são responsáveis por um certo interesse assim como por algumas de suas maiores limitações. Sim, porque na maior parte de sua duração La Casa Muda abraça de maneira tão completa quase todos os clichês do filme de “casa assombrada” (uso do som fora de quadro para criar suspense e sustos, a mulher bonita e indefesa, as incongruências absolutas de roteiro e ações dos personagens, até mesmo a mais que batida figura de uma sinistra menininha morta) que sua presença na Quinzena dos Realizadores poderia parecer francamente corajosa (um filme tão “comum” na aproximação com o gênero?).

Podemos começar a entender essa escolha, porém, ao sabermos que o filme foi realizado (ou simulado, não importa muito, importa mais que o resultado propõe isso) em plano sequência – e sabemos como os festivais adoram essas “ousadias” formais. Não parece importar tanto que, na maior parte da sua duração, o filme se ressinta absolutamente dessa opção, como a maioria dos que resolvem seguir este caminho: uma decupagem dentro das cenas, elipses e um ritmo dado pela montagem certamente pareceriam fazer com que ele atingisse determinados resultados de forma bem mais fácil. E, afinal, em tempos de REC e alguns outros filmes (inclusive um exibido na mesma Quinzena, PVC-1), isso por si já não chega a ser um grande atrativo. No entanto, é o final de La Casa Muda (que tentaremos ao máximo não desvendar, mas é impossível falar do filme sem uma mínima menção) que parece ser a cereja do bolo, ao propor uma surpresa que causa a reinterpretação de todo o filme, criando uma questão até interessante de discussão sobre o filme e sua forma (até mesmo a escolha pelo plano sequência).

Voilá! Com essas duas características, está completo o menu para o filme ser mais do que “apenas mais um filme de terror”, e estar em Cannes levantando discussão. Mas, ao final o espectador fica apenas com uma pergunta: melhor seria ver um autêntico filme de terror barato que se preocupe mais em apresentar a quem vê as sensações e a forma que melhor resolvem sua fruição, ou um filme que durante boa parte do tempo parece banal e pobremente realizado, mas está centrado em duas idéias formais e narrativas que o justificam como experiência a ser discutida? Como quase sempre é o caso, a cada espectador fica o direito e o dever de encontrar sua própria resposta.

Maio de 2010

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