in loco
Dia 5: Autores na adolescência, personagens envelhecidos
por Eduardo Valente


Les amours imaginaires, de Xavier Dolan (Canadá, 2010) – Un Certain Regard
Kaboom, de Gregg Araki (EUA, 2010) – Sessões de meia-noite

Xavier Dolan é um jovem cineasta canadense (de Quebec, para ser mais exato) que traçou nestes dois últimos anos o típico caminho bem-sucedido para se tornar um autor reconhecido no círculo internacional dos festivais de cinema: seu filme de estréia, J’ai tué ma mère, foi exibido ano passado na Quinzena dos Realizadores, onde recebeu prêmios e uma boa dose de elogios e atenção que assegurou sua exibição em boa parte dos eventos ao longo do ano pelo mundo (Brasil incluído), além do lançamento na França e afins. Agora, seu segundo longa chega no ano seguinte (e manter essa noção de timing é essencial para ser bem-sucedido, para que as pessoas não te esqueçam), e faz imediatamente o que é comumente considerado um “pulo” de divisão para a Un Certain Regard (embora a Quinzena na maior parte dos anos tenha uma seleção mais interessante que a UCR, esta segunda faz parte da chamada “seleção oficial”, por isso é considerada pela maior parte dos freqüentadores um espaço de maior nobreza dentro do Festival).

Mais do que estes detalhes práticos, porém, Les amours imaginaires reforça essa idéia de autoria por voltar a algumas das características mais marcantes do filme anterior de Dolan, nesta que é uma outra estratégia inteligente de afirmação, pois os festivais adoram cineastas devidamente reconhecíveis, donos, por assim dizer do seu próprio “estilo”. Voltam aqui, por exemplo, a sua presença como ator principal, representando um jovem com enormes dificuldades de relacionamento com as pessoas à sua volta; o uso de momentos no filme em que os personagens parecem se dirigir diretamente ao espectador (embora aqui isso venha mediado pelo formato de uma conversa em torno de uma mesa); o apelo a enquadramentos e manipulações na imagem que chamam a atenção para o olhar do cineasta sobre o espaço, reenquadrado de formas muitas vezes distantes de qualquer noção de frontalidade naturalista. Para além de questões pessoais de expressão

Isso tudo está devidamente relatado desta maneira "jornalística" primeiro porque me parece um assunto essencial de se entender (o funcionamento da construção de um autor), mas principalmente porque me parece que sobra pouco mais a dizer do cinema de Dolan para além disso. Afinal, se em linhas gerais minha impressão sobre seu filme de estréia já era muito parecida com o que foi escrito sobre ele por Filipe Furtado no último Festival do Rio, este segundo filme, até por toda a “coerência” em termos de obra de que já falamos, apenas amplia as mesmas sensações. Dolan tem uma sensibilidade adolescente como cineasta, em tudo de pior que o termo pode ter: tudo nele parece totalmente calculado para criar uma determinada imagem, reciclando influências do jeito mais preguiçoso possível (Wong Kar-wai particularmente parece diluído em litros de água cinematográfica) enquanto julga tudo isso muito chique (no que sua aprovação por parte dos festivais só faz aumentar o sentimento de estar no caminho certo). O curioso é que Dolan ttrata das relações amorosas e humanas com a profundidade de um pires e a chatice típica de um menino de 13 anos (embora seus personagens, e ele mesmo, por mais novos que sejam, já passaram dos 20 anos - e isso devia fazer alguma diferença), no entanto como faz isso com um certo know how de estilo e auto-promoção, aí está a fórmula: temos um auteur. Não é o primeiro nem será o último a nascer e se manter basicamente em torno de perfumarias - que, como se sabe, é artigo muito importante na França.

O cinema de Dolan se torna ainda mais pueril (se é possível) quando vemos em seguida a ele um filme como este Kaboom, de Gregg Araki, que do alto dos seus 50 anos de idade e pouco mais que vinte anos de carreira, soa muito mais jovem do que o canadense, nos lembrando o quanto o termo “adolescente” poderia ser considerado um elogio. Isso porque o filme de Araki é o exato contrário dos de Dolan: afirma e se orgulha de uma infantilidade extrema e assumida na sua construção, só que posta no mundo com energia e a testosterona. O mundo (e o cinema) parecem dar tesão a Araki, enquanto apenas servem de objeto de tédio e curiosidade distante e blasé em Dolan.

Araki mistura aqui inúmeros códigos (o filme de universidade, o filme de terror, o filme de ficção científica, o filme à la David Lynch – um gênero em si mesmo), todos filmados com um excesso de cores e nenhum realismo, num filme que ao mesmo tempo que se presta aos desejos de identificação e desenvolvimento narrativo típicos do cinema clássico, faz galhofa disso tudo ao constantemente ridicularizar sua própria história e seus personagens. E mais: sendo profundamente subversivo, ainda que num tom muito diferente do seu começo de carreira, colocando em cena uma sexualidade extremamente múltipla, alegre, e despreocupada. Assim como já tinha sido seu anterior Smiley Face (que era um pouco menos bem resolvido do que esse), Kaboom é claramente o filme de alguém que não pode se importar menos com o que vão achar dele. E talvez esse tipo de impulso adolescente, no final das contas, seja algo a que só se pode chegar com tal grau de desprendimento na maturidade. Vamos torcer, então, que Dolan siga o velho conselho de Nelson Rodrigues, e “envelheça”.

* * *

Another Year, de Mike Leigh (Inglaterra/EUA, 2010) - Competição
Um homme qui crie, de Mahamat-Saleh Haroun (Chade/França/Bélgica, 2010) – Competição

Envelhecer, aliás, foi questão central aos dois filmes exibidos hoje na competição. Algo já pressentido no título do de Mike Leigh, que tem um duplo sentido já que se refere tanto a “um outro ano” no sentido da soma deles que vai se acumulando (um ano a mais ou um ano a menos?), quanto ao de apenas um outro ano, como tantos antes dele. Aqui, temos Leigh em terreno extremamente familiar: as dores e delícias da pequena classe média inglesa, apresentada a partir do contraste entre a família formada por um casal de meia-idade e seu filho trintão e solteiro; e, do outro lado, dois amigos destes, uma mulher e um homem, ambos divorciados e também já na meia-idade.

Contraste é palavra importante aqui, porque como de hábito o forte de Leigh não é, como nunca foi, a sutileza: tudo na relação do casal (e deste com o filho) é rosa e perfeito: eles sempre se comportam com uma alegria serena e um respeito mútuo à toda prova. Já os dois amigos, que os visitam constantemente, são os próprios exemplos da disfunção: incapazes de uma vida amorosa, e mesmo social, normalizada, párias beberrões que, por compaixão acima de tudo, os Hopple aceitam quase cuidar, como sua “provação” na vida. Todos sentem o peso da passagem dos anos, mas claro que os amigos sofrem muito mais, enquanto os Hopple serenamente compreendem o processo. Esta incapacidade de não resolver tudo através da caricatura na construção de personagens sempre foi o ponto fraco de Leigh nestes filmes corais a que se propõe de vez em vez. Não por acaso o cineasta sempre parece mais confortável quando aposta na radicalidade das tintas do exagero, sem direito ao outro lado: pensamos em Naked e seu depressivo violento e marginal, ou em Simplesmente Feliz com a felicidade psicótica de sua Sally. Nos dois casos, não há tentativa possível de naturalização nem de contextualização: a evidente patologia de seus personagens se torna o próprio tema, e se irradia sobre o filme e sobre o espectador como a proposta que, em si mesma, comporta uma visão de mundo.

Já em filmes como Another Year, Leigh parece sinceramente acreditar construir um retrato “fiel e balanceado” do mundo britânico, mas só entende o mundo em termos duais. Não que não tenha espaço para demonstrar seus talentos inegáveis na construção do espaço da encenação de seus teatros da vida comum, nem seu inegável prazer em escrever diálogos e dirigir atores rumo ao exagero tão querido. Mas no fundo é muito previsível ver como cada um dos amigos do casal vai mais e mais por água abaixo, como que dotados de um toque de Midas ao contrário, onde cada ato tomado só os mergulha mais e mais na merda da sua existência. No plano final, com um lento movimento de câmera, Leigh aprisiona de forma meticulosa e eterna (afinal, ali se encerra a vida daquela personagem) a amiga mulher, retirando o som da conversa adorável da família em torno dela, mostrando-a irrecuperável e solitária, chafurdando na sua miséria. Nada de muito novo no “humanismo” do cineasta, enfim.

Radical contraste foi a exibição na mesma noite de Um homme qui crie, primeiro longa a vir do Chade para a competição de Cannes. Nele, o diretor Haroun também se dedica a olhar para a dinâmica interna de uma família em que as coisas caminham em direção trágica, mas tudo se dá de forma bem mais complicada nesta relação. O filme se abre com o pai e o filho (ele, quase idoso, mas atlético; o filho, um jovem) brincando numa piscina, em cena idílica. Logo entenderemos que a piscina é a do hotel onde os dois trabalham como salva-vidas e mantenedores, e que o país passa por delicada situação político-econômica. Demissões cercam o local de trabalho, e lá fora uma guerra civil se anuncia pela TV. Haroun constrói com cuidado nesse começo as dimensões das relações de trabalho e da casa, com a presença da mãe criando um terceiro vértice. De repente, o hotel precisa rebaixar o pai para um trabalho de porteiro, deixando apenas o filho cuidando da piscina (o que para ele é especialmente humilhante não só pela lembrança da velhice que chega e o aproxima da inutilidade, mas porque ele é um ex-campeão de natação cuja vida sempre esteve ligada à piscina).

A partir daí, mais ou menos na metade da sua duração, o filme deixa de lado o que parecia uma aproximação principalmente atenta e observacional, e vai mergulhando cada vez mais no registro do melodrama, beirando a tragédia. Logo, pai e filho amorosos precisam tomar decisões duríssimas contra a vida do outro, e quando a guerra civil se torna uma realidade inescapável, a história pessoal e familiar se mistura de vez com o país. É quando Un homme qui crie passa de um filme de um diretor seguro para um trabalho de muito maior choque, porque consegue, sem que nunca tenhamos nos dado conta de que íamos nessa direção, tratar da condição trágica do Chade a partir desse pequeno drama de dois personagens que sempre é movido pelas mais profundas necessidades de ordem pessoal. A maneira como Haroun faz essa passagem é precisa e profundamente perturbadora, construída por uma série de cenas onde ele consegue manter o equilíbrio raro entre a construção estética de uma cena com o retrato de uma tragédia social e pessoal sem nunca explorar nenhum dos dois às custas do outro, mas sim numa fluidez de quem possui uma mão certeira e, mais importante que isso, muita certeza do que o move como cineasta.

Maio de 2010

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