in loco
Dia 4: A Quinzena abre as portas
por Eduardo Valente


Foi aberta a programação 2010 da Quinzena dos Realizadores, mais importante seção paralela à seleção oficial de Cannes, e que neste ano está particularmente sob a curiosidade dos espectadores, uma vez que será o primeiro ano sob a direção de Frederic Boyer, que substitui o muito elogiado Olivier Père, que a dirigiu entre 2004 e 2009, quando saiu para ser o curador do Festival de Locarno. Com ele, a Quinzena ganhou força ao atrair alguns nomes bastante marcantes do cinema (como William Friedkin, Francis Ford Coppola, Jean-Claude Brisseau, para ficarmos em alguns), e ter apostado em filmes (The Host, por exemplo) ou diretores ainda novos e pouco conhecidos que acabaram chamando a atenção. Boyer, muito por conta certamente da safra do ano também (que tem poucos nomes marcantes até mesmo na competição), acabou apostamente quase exclusivamente nos nomes pouco conhecidos, com exceção apenas a Frederick Wiseman, que vem em sessão especial. De resto, alguns diretores com um ou dois filmes minimamente conhecidos, mas onze filmes de estreantes em vinte e dois selecionados. Promete ser uma programação interessante a acompanhar para se ver que linhas reforça e aponta. A julgar pelo programa deste primeiro dia, continuamos com perfis bem variados (dos “mais pequenos” filmes – e não menores – a produções que certamente poderiam estar na competição), que só com o passar dos dias veremos se segura a qualidade atingida com Père.

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La Mirada Invisible, de Diego Lerman (Argentina/Espanha/França, 2010) – Quinzena dos Realizadores

Logo na primeira sequência de La Mirada Invisible, que pode sem medo ser chamada de “sequência de introdução”, Diego Lerman deixa absolutamente evidente o seu domínio da linguagem cinematográfica. Ali, ele consegue, em poucos minutos, reproduzir todo o clima de paranóia e repressão vivido pela Argentina no 1982 em que se passa o filme, simplesmente filmando um grupo de alunos colocados em fila por uma inspetora de colégio e levados até a sala de aula para a chamada. Ali ele também demonstra a inteligência de quem sabe que seu filme se constrói nos olhos de seus personagens (o título, claro, já indica isso), e usa muito bem sua admirável atriz principal, Julieta Zyberberg para isso. O fato dela ter sido uma das protagonistas de Menina Santa certamente não atrapalha a que pensemos em Lucrecia Martel como uma referência forte para o filme, pela maneira como a relação do corpo dos personagens com o mundo será determinante ao longo de toda a projeção.

No entanto, é exatamente este domínio preciso que acaba sendo o calcanhar de Aquiles do filme: sempre preciso, controlado. Retomando a lembrança de Martel, é um pouco como se um filme desta fosse dirigido por Juan José Campanella. Uma estranha combinação. Lerman realiza um filme que “faz sentido” o tempo todo, consegue levantar todos os símbolos e metáforas que deseja, mas que nos toca muito pouco – exatamente porque, desde essa primeira sequência, entendemos exatamente onde ele quer chegar. Falamos em metáfora, porque é bem claro que as duas personagens principais do filme (a inspetora, e a escola em si) funcionam como metonímias da Argentina do período (tanto que, depois de resumir o filme o tempo todo ao interior da escola e da casa da personagem – com pequenas exceções todas elas filmadas de forma absolutamente fechada – Lerman nos créditos finais faz questão de trazer imagens de TV da época, com manifestações nas ruas). São personagens cheios de significados, que não podem fugir, portanto, do destino que a elas está traçado desde o começo.

Trata-se de uma estrutura que não precisa ser um problema em si, mas a questão é que Lerman não consegue fazer com que seu roteiro incuta nesta simetria e na narrativa nada que não faça com que o filme gire em círculos durante boa parte de sua duração, esperando apenas pelo símbolo final e definitivo, que vem na sequência catártica de rigor (mortis, no caso). Mas, que não haja engano: é um filme que fará sucesso no circuito dos festivais (talvez além dele) e cuja “maestria” inclusive faz com que surpreenda que não tenha conseguido um lugar até mesmo na competição, neste ano mais fraco. Lerman não deixa nada a dever para muitos dos grandes autores do cinema atual – com toda a dubiedade que o elogio pode carregar.

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Petit Bebé Jesus de Flandres, de Gust Van Der Berghe (Bélgica, 2010) – Quinzena dos Realizadores

Se o filme de Lerman nos pareceu que poderia perfeitamente estar na competição (deixando claro que isso não significa termos gostado demais dele, é uma questão de ambição e estilo mesmo), não deixa de ser bem interessante e representativo da multiplicidade de caminhos que a Quinzena tenta traçar que no mesmo dia seja exibido um filme tão completamente diverso quanto este Petit Bebé Jesus de Flandres. Dirigido por um jovem de 24 anos, tendo sido começado como exercício de curso de cinema, o filme tem todas as características de uma produção que, no melhor dos sentidos, certamente não foi começada tendo em mente uma exibição em Cannes como seu objetivo final. É um filme tão pequeno como o bebê Jesus do seu título, mas que atinge resultados muito impressionantes até por isso mesmo.

Para quem tem acompanhado de perto a produção contemporânea do cinema mundial (seja nos festivais do Rio e SP, seja via internet), um nome que certamente virá à mente ao ver as imagens aqui postadas do filme é o do espanhol Albert Serra. E, embora a lembrança esteja longe de ser despropositada, ela também limitaria bastante o que consegue atingir aqui o belga Van Der Berghe. Neste filme que reinterpreta e insere a figura dos 3 Reis Magos num Flandres contemporâneo, a maioria dos atores (e principalmente os três protagonistas) são portadores da Síndrome de Down. O que poderia num primeiro momento soar como um golpe oportunista para atrair atenção para o filme, se revela na tela com toda a força imaginada pelo diretor: esta característica dos seus atores de fato empresta aos personagens, e ao mundo por ele retratado, uma mistura de doçura e despertencimento do mundo que dificilmente se conseguiria chegar de outra maneira. A maneira diferenciada dos atores de se mover, de falar, mais do que ressaltar alguma deficiência, apenas os coloca num outro registro que ajuda muito a que embarquemos de imediato no estilo fabular buscado por Van Der Berghe.

E aí, inclusive, é que vemos a principal diferença do cinema deste belga para o de Serra: ao passo que no do espanhol existe certamente o desejo de uma recusa de um certo tempo e lógica do cinema clássico narrativo, perpassado por uma boa dose de ironia, em Petit Bebé... o que mais chama a atenção é uma profunda fé (e a palavra é mais do que adequada, porque pode-se dizer que é disso que o filme trata) no poder dessa imagem, na pregnância destas figuras e da forma de filmá-las em criar de fato uma relação com algo de sagrado, e até mesmo de místico. Não que não haja humor no filme, mas sentimos que muito mais do que uma oposição a um cinema outro, o que existe aqui é a afirmação firme e emocionada desse que se quer fazer. Além disso, Petit Bebé... é um filme que parece nos surpreender a cada plano, seja no sentido visual de sua construção, seja mesmo no andamento da sua narrativa – e isso é coisa que, particularmente aqui no Festival de Cannes, onde somos expostos a tantas imagens, a maioria delas nos parecendo óbvias repetições hiper-estudadas para aqui estar, o filme se torna um desejado refresco no meio da programação. Acima de tudo, é filme que dá vontade de voltar a ele no futuro (cruzamos desde já os dedos para que acabe num dos festivais brasileiros, pois deve ser visto em tela grande), o que é talvez a melhor sensação que um filme nos causa por aqui.

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Un Poison Violent, de Katell Quillévéré (França, 2010) – Quinzena dos Realizadores

Katell Quillévéré escolhe um dos dois caminhos mais complicados para um primeiro longa: enquanto o outro seria buscar a ousadia completa de ambicionar algo nunca feito na história do cinema, o que ela trilha é o de contar mais uma vez uma das histórias mais contadas desde sempre – no caso, a da descoberta da sexualidade por uma menina enquanto passa férias na casa dos familiares no interior da França. Para se distinguir, quando sua narrativa é tão conhecida e impossível de conter qualquer surpresa maior, só mesmo demonstrando algum talento sobrenatural, seja no que tange à direção de atores ou a mise-en-scène... em suma, qualquer que seja ele. E não é o caso aqui, pois o filme de Quillévéré segue adiante ao longo de sua hora e meia com muito pouco “calor”, por mais que os corpos (e almas, já que o filme tem toda uma parte ligada ao catolicismo da família, e a cerimônia de Confirmação da jovem) sejam filmados em plena “ebulição”. Não parece ser por acaso que ela resolva apelar para a música de folk americana toda vez que sente necessidade de um momento mais poético, como se não confiasse que simplesmente o que filma tivesse este poder. É, em suma, um filme de enormes boas intenções, mas que as confirma apenas parcialmente e de forma muito menos marcante, por exemplo, do que Mia Hansen-Love quando esta apresentou seu primeiro filme na mesma Quinzena, mais ou menos com a mesma idade que Quillévéré.

Maio de 2010

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