in loco
Dia 2: Decepções que vêm da Ásia
por Eduardo Valente


Chongqing Blues (Rizhao Chongqing), de Wang Xiaoshuai (China, 2010) – Competição

O primeiro plano de Chongqing Blues impressiona pela beleza de seu movimento de câmera, que parte dos trilhos aéreos de um teleférico para revelar a paisagem impressionante de Chongqing, com sua verticalidade extrema marcada por uma certa sujeira, algo eminentemente entre o cinza e o marrom. Logo depois deste plano inicial, Wang passa a seguir seu protagonista com uma câmera colada ao pescoço, que nos faz imediatamente lembrar dos irmãos Dardenne (e toda a série de diluidores que seguiram nas suas pegadas). Por um lado, então, temos os personagens em uma perspectiva que chama constantemente a ação para o tamanho da massa urbana em que estão inseridos, e ao mesmo tempo a tentativa de acompanhar o mergulho de um homem de meia-idade numa China que ele já não reconhece, e cujos códigos lhe são estranhos. A mistura destas duas aproximações faz com que Chongqing Blues pareça uma estranha combinação de O Filho com Still Life – e a simples menção aos dois filmes deixa claro quão esquisito é pensar nessa tentativa de solucionar opostos.

O problema é que como resultado final dessa equação, resulta que a (bela) maneira como é filmada a cidade ofusca totalmente a presença dos personagens e seu drama. Todas as vezes em que Wang Xiaoshuai e seu diretor de fotografia Wu Di tentam inserir a busca do protagonista na realidade do tecido urbano da cidade (seja usando sua majestosidade como background, seja através de cenas em que adentra espaços como uma boate de música eletrônica ou um mercado popular), ficamos com a nítida sensação de que gostaríamos de passar mais tempo contemplando e habitando esses lugares, e menos seguindo os personagens e a história que narram. Isso se dá principalmente porque essa paisagem parece tão única e reveladora, enquanto os personagens, por serem tão revelados pelo roteiro (no pior sentido do termo), vão na direção contrária e parecem tão pouco únicos, tão parte de uma mesma velha história do pai que tenta conhecer o filho depois de tê-lo perdido, em busca de uma redenção inevitável.

A verdade é que o grande problema da reedição desta mesma busca, da forma que Wang a roteiriza, é que todo fascínio que a move deveria ser da ordem do mistério: afinal esse pai nunca conheceu de fato o filho morto, e vice-versa. Mergulhar nesse mistério e na dificuldade (ou impossibilidade mesmo) de ultrapassá-lo poderia ser uma idéia e tanto, mas Wang caminha na direção contrária: aos poucos, o pai vai desvendando camada a camada do seu filho a partir de flashbacks que reencenam os dois momentos mais traumáticos de sua vida logo antes de morrer - numa espécie de estrutura à la Rashomon, só que onde todos contam a mesma história, cuja encenação nestas cenas do passado adquire então o peso de uma verdade. Esta verdade vai sendo dissecada então, passo a passo, ao longo da excruciante segunda metade do filme, que na medida em que diminui mais e mais o espaço para qualquer mistério, esvazia como a um balão furado o interesse que tínhamos por tudo que emanava daquela paisagem que nos fascina no primeiro plano.

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The Housemaid, de Im Sang-soo (Coréia do Sul, 2010) – Competição

The Housemaid é uma refilmagem de um dos grandes sucessos de público e crítica da história do cinema coreano, realizado em 1960 por Kim Ki-young (que, curiosamente, foi restaurado recentemente pela World Cinema Foundation, presidida por Martin Scorsese, e exibido em Cannes há dois anos). O projeto desta refilmagem parte, então, de um produtor que procurou Im Sang-soo para realizá-la e que, entre seu elenco escolhido a dedo (a atriz principal, Jeon Do-Youn por exemplo, ganhou o prêmio em Cannes há dois anos por Secret Sunshine), a retomada de um clássico e outras características específicas (como sua direção de arte hipertrabalhada, obras de arte de arquitetos e designers importantes, etc e tal) é o que se pode chamar da produção mais aguardada da Coréia no ano de 2010.

Esse início de texto com cara de press release se justifica pelo simples fato de que talvez saber disso tudo seja, de fato, de maior interesse do que o filme em si. Isso porque Im Sang-soo imprime a ele uma tal falta de foco e de maior desejo de levar o filme a um lugar minimamente marcante (embora, claro, existam suas duas ou três cenas de impacto visual no uso da câmera e no registro de situações de sexo e violência, como não poderia deixar de ser em se tratando deste diretor) que o que resta ao final da sessão é muito pouco além de mais uma trama de exploração sexual com ares de crítica de classe, com um toque de vingança tão ao gosto do cinema coreano mais viajado. É um filme pensado para atingir bastante público no seu país natal e ter aquele “toque refinado” (que Im imprime, inegavelmente) para fazer a ronda internacional dos festivais. Mas não é um bom sinal quando o filme mais próximo dele na sensação deixada ao seu final seja a refilmagem de Ladykillers pelos irmãos Coen – a qual era, diga-se, mais divertida de assistir.

Maio de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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