in loco
Dia 11: Natural born killers
por Eduardo Valente


My Joy, de Sergei Loznitsa (Alemanha/Ucrânia/Rússia, 2010) – Competição
Somos Lo Que Hay, de Jorge Michel Grau (México, 2010) – Quinzena dos Realizadores
Tender Son – The Frankenstein Project, de Kornél Mundruczó (Hungria/Alemanha/Áustria, 2010) – Competição

Se a violência é elemento preponderante em boa parte da história do cinema (pois, do mundo), igualmente presente é a necessidade de buscar teorias que enquadrem o próprio nascimento desta, principalmente dentro do universo dos próprios filmes. Curiosamente, estes três filmes vistos em poucos dias lidam muito diretamente com essa questão – não simplesmente a da violência, nem a da sua origem, mas também a da necessidade de localizar ambas no interior de suas narrativas.

Não resta dúvida de que, das três maneiras de filmar a violência, a mais potente é a do russo Sergei Loznitsa, realizador com vários documentários no currículo (importante lembrar de Blockade, seu filme exibido no É Tudo Verdade), e que estréia aqui na ficção. O que impressiona mais nesse primeiro filme de Loznitsa é justamente sua capacidade de criar um universo próprio, que, se certamente deve muito a diversos aspectos da história e da realidade russa (algo que se poderia esperar, vindo de sua atividade anterior), também deve igualmente à sua capacidade de transfigurar estas duas num imaginário que, desde as primeiras imagens de My Joy, afirma na tela sua capacidade de um respiro próprio da ficção. E se este respiro tem um norte, este é o da violência, como deixa claro já o primeiríssimo plano do filme (nos dois sentidos do termo), que mostra um cadáver sendo jogado numa máquina de produzir cimento. O interessante é como esta imagem, ao mesmo tempo em que diz quase tudo que há para ser dito sobre o filme (a violência indiscriminada como um aspecto fundador daquilo que seria a nação russa), não dá nenhuma idéia de como será construído o filme que vem a seguir.

Sim, porque talvez o que seja mais curioso notar no filme de Loznitsa é como, apesar da “moral” que haja por trás do seu filme ser praticamente monolítica (aquilo que um diário americano no festival resumiu muito bem como: “nenhum ato bondoso passará sem punição”), a forma como constrói sua narração é altamente sofisticada. Existe por trás de tudo, afinal, um protagonista: o motorista de caminhão Georgy. Mas esse protagonista não será um só: da mesma forma que, sobre ele, não entendemos quase nada do passado (sua cena inicial saindo de casa é um primor de mistério e sugestão), ele também sofrerá mudanças absolutamente irreversíveis ao longo da trama. A maneira como encadeia essas mudanças, e como ao mesmo tempo as faz fluir, é o grande trunfo da narrativa do filme, pois acompanhamos com enorme empatia um personagem sobre o qual, primeiro não sabemos nada, e depois se torna, para dizer o mínimo, um tanto desagradável.

No entanto, não estaria errado quem afirmasse que o verdadeiro protagonista do filme é mesmo um chamado “espírito russo”, do qual Loznitsa parece querer buscar, se não exatamente as origens, pelo menos o ponto de “não-retorno”. Este ponto, para surpresa de ninguém, está na II Guerra Mundial, que acaba sendo o palco dos dois momentos em que a narrativa de Georgy dá uma pausa para olharmos para narrativas passadas de outros personagens (sendo que, um deles, é o flashback de uma casa). Nos dois momentos, significativos exatamente porque externos ao trajeto do personagem central, emergem uma mesma crueldade e incapacidade de lidar com o mundo (e com o outro) por qualquer outra chave que não a da matança e do abuso de poder. E são estes mesmos elementos que perseguem Georgy ao longo, literalmente, da sua estrada. Sobre essa estrada, que parece ser aquela que o transforma de homem em monstro fadado à escuridão (como no plano final), cabe perguntar se não sempre foi muito mais o seu destino incontornável do que sua modificadora.

Falar de destino incontornável rumo a violência também faz todo sentido para o filme mexicano Somos Lo Que Hay. Afinal, desde o começo fica claro que o que está em pauta aqui é a hereditariedade: depois da morte, logo no começo do filme, do patriarca de uma família que, como entendemos rápido, sempre se alimentou de carne humana, nunca é colocado a seus três filhos e sua viúva qualquer outra hipótese que não a de tentar solucionar o problema de como conseguir seu alimento – uma vez que o pai era o “caçador”. Portanto, as cartas estão dadas desde muito cedo: o canibalismo e a possível fuga deste não são a questão, e sim como fazer para sobreviver. E se a lei da selva é a chave do filme, a grande sacada do também estreante Jorge Michel Grau é colocar os seus protagonistas antropófagos como apenas mais um dos predadores em cena. Mas tão perigoso quanto eles é a polícia corrupta, ou a mídia que os pressiona a criar resultados para consumo social. Em suma, nos diz Grau, a selva é tão perigosa quanto os animais que vivem nela, a metrópole urbana moderna, especialmente no terceiro mundo, é especialista na criação de grupos marginalizados, dos quais os canibais se revelam apenas mais um (temos os meninos de rua, as prostitutas, etc).

No entanto, o que é preciso destacar sobre Somos Lo Que Hay é a maneira perfeitamente integrada e nada discursiva com que Grau constrói esse painel. Se seus canibais passam constantemente de predadores a presas no meio dessa selva, isso nunca parece se dar porque o roteiro do filme quer ilustrar essa ou aquela tese, mas porque faz parte organicamente do trajeto deles tentando resolver da melhor maneira aquele mesmo dilema inicial básico (como conseguir comida). Mas, além de questão de roteiro, o que importa mesmo é que Grau sabe que, especialmente no contato direto que quer traçar com o cinema de gênero, estas questões precisam ser resolvidas é na imagem, e ali é que o filme encontra suas melhores soluções. Grau sabe construir clima, explorando com inteligência os espaços, tanto internos quanto externos. Mais do que isso: não tem nenhuma vergonha de sujar as mãos de sangue (literalmente, no caso), algo mais que necessário para se fazer o filme que deseja. Talvez por isso (como também já era o caso com My Joy), dizer que Somos Lo Que Hay é um filme extremamente desagradável seja o maior elogio que se pode fazer a ele.

Pois é justamente deste bem que não sofre em nenhum momento Tender Son. No filme do húngaro Mundruczó, a violência e tudo que vem atrelado a ela (como sabem os que acompanharam os filmes anteriores do cineasta, como Delta), como o incesto ou o abandono dos filhos, é envelopado numa extrema elegância estética e conceitual. Não é por acaso que o filme carregue este subtítulo (“The Frankenstein Project”) que parece funcionar muito mais como uma carta de intenções do que qualquer coisa que esteja no filme. Afinal, se este podia até fazer sentido como o nome do filme na sua realização (uma vez que Mundruczó assina o filme como “inspirado pelo Frankenstein de Mary Shelley”), uma vez escolhido um outro título, fica completamente deslocado, simbolizando os problemas principais que afligem o trabalho: um sentimento de erudição forçada, de desejo de filiações que o legitimem como “obra de qualidade”.

Até há algum bem vindo humor nas primeiras cenas, que dão ao cinema de Mundruczó uma inesperada humanidade, pela primeira vez, mas este vai se perdendo a cada ato de violência que se segue, mergulhando o filme mais e mais numa atmosfera de auto-importância bastante desinteressante, nada instigante. De fato, o que fica claro na medida em que assistimos o desenrolar da narrativa é que, se nos filmes de Loznitsa ou Grau a violência nascia principalmente dos meios em que se inseriam os personagens e deles mesmos como necessidade vital, aqui em Tender Son a violência nasce unicamente do desejo do seu diretor de colocá-la em questão e de sua necessidade de aprisionar seus personagens na espiral que monta para poder melhor ilustrar suas teses e idéias (de resto, bastante simplórias, malgrado o belo empacotamento). Nesse sentido, talvez a opção que mais faça sentido no filme é a de ter o próprio Mundruczó interpretando o pai da "criatura". Se My Joy e Somos Lo Que Hay parecem mergulhados e misturados na violência que seus personagens praticam, em Tender Son sentimos uma enorme e segura distância entre nós e o mundo na tela – uma sensação que tem sempre algo de um tanto covarde quando se pretende filmar o humano em toda sua falibilidade.

Maio de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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