in loco
Dia 10: E a verdade, o que é?
por Eduardo Valente
Desde o surgimento do cinema como linguagem que a sua relação
com a “verdade” é um dos principais problemas que afligem inúmeros
teóricos (e ainda mais inúmeros “práticos”, por assim dizer).
A questão tem inúmeros lados, desde as referentes à ontologia
baziniana, passando pela verdade da encenação e da ficção, e chegando
ao velho problema da definição do que é documentário e ficção
– se são categorias que efetivamente fazem sentido ao serem entendidas
por qualquer lente definitiva e/ou definidora. Estas são apenas
algumas das aproximações que estiveram presentes nos filmes (ou
a partir deles) exibidos nestes últimos dias aqui em Cannes.
* * *
Armadillo, de Janus Metz (Dinamarca, 2010) – Semana da Crítica
Em qualquer das seções de Cannes é muito raro
documentários concorrerem junto com as ficções. É tão clara a
consideração diferente para os dois registros que, mesmo que um
cineasta como o russo Sergei Loznitsa já tenha filmado alguns
documentários longos, a ele é permitido concorrer à Camera D’Or,
sempre entendido como um prêmio para “diretores estreantes”. Assim,
é muito simbólico dos problemas que Armadillo coloca em
jogo o fato de que, sendo um documentário, ele tenha não só concorrido
ao prêmio principal da Semana da Crítica (o qual, aliás, ganhou),
como estivesse concorrendo à... Camera D’Or!
Isso
tudo pode se dever a uma razão tão simples como altamente complicada:
num tempo em que cada vez mais filmes usam dispositivos caros
ao documentário para ganhar “valor de real” no campo da ficção,
a operação de Armadillo é exatamente a oposta: ao retratar
a vida de um batalhão de soldados dinamarqueses estacionados no
maior acampamento de tropas deste país no Afeganistão, o diretor
Janus Metz utiliza abertamente as convenções da ficção, tanto
na sua estrutura narrativa (com começo, meio e fim; construção
de personagens e arco dramático; etc), quanto na sua forma de
filmar (nenhuma intervenção aparente do documentarista – nem na
imagem nem com narrações em off; enquadramentos e montagens
que retornam os códigos do filme de ação/guerra atual para o campo
do documentário, etc). O resultado parece ser exatamente esta
confusão (saudável por vários motivos), que faz com que Armadillo
receba de um festival como Cannes o tratamento geralmente dado
a uma ficção, como se não se percebesse as incongruências deste
fato.
Mas,
curiosidade à parte, o que importa aqui para nós é que Armadillo
é um filme realmente poderoso, que consegue dar a esta guerra
no Afeganistão uma presença e força que nenhum material ainda
havia atingido. Em parte, claro, isso se deve ao poder das imagens
que Metz captura com impressionante nível de acesso e coragem
(sempre à beira do suicida) no campo de guerra. Mas a maior força
do filme vem mesmo da maneira como essas suas imagens são organizadas
a partir de um princípio que, ao mesmo tempo em que não sente
a necessidade de pesar a mão com nenhuma mensagem (não por acaso
o filme foi abraçado na Dinamarca tanto pelos que querem ver nele
o retrato do heroísmo dos soldados na guerra, como pelos que vêem
nele uma denúncia da inutilidade da mesma – ou seja, cada um se
espelhando como quer), tem imagens suficientemente poderosas e
inteligentes para ser inequivocamente respeitoso dos seus objetos,
e crítico ao mesmo tempo.
Em última instância, o verdadeiro bombardeio imagético
de Armadillo (sem deixar de lado o som do filme, também
fortíssimo) coloca a nu uma situação tão absurda quanto esta que
opõe jovens dinamarqueses, que obviamente estão naquele lugar
sem nenhuma perspectiva que não a do pragmatismo, a talibãs obstinados,
em minoria numérica e tecnológica. Mas, acima de tudo, o filme
consegue mostrar em algumas imagens precisas um retrato de um
povo afegão absolutamente perdido, extenuado e sem esperanças
entre estas duas forças nas quais não se reconhece, nem das quais
espera nada que minimamente se aproxime das suas aspirações de
vida no país. Que consiga colocar tudo isso em pauta, e ao mesmo
tempo construir um espetáculo capaz de nos chocar (não no sentido
da polêmica fácil, mas de apresentar imagens que realmente nunca
tínhamos visto), não é pouca coisa para falar da força deste Armadillo.
* * *
Rebecca H. (Return to the Dogs), de Lodge
Kerrigan (França, 2010) – Un Certain Regard
Mesmo num ano com Godard e Manoel de Oliveira
nessa mostra, talvez a escolha deste filme de Lodge Kerrigan tenha
sido a mais corajosa e ousada – principalmente pelo peso que os
dois cineastas acima carregam consigo. O filme de Kerrigan já
chama a atenção nos créditos iniciais que simplesmente não tem
nenhuma empresa produtora ou fonte de financiamento: apenas os
nomes dos dois atores (Geraldine Pailhas, Pascal Greggory) e o
de Kerrigan, e o título do filme. É um primeiro sinal de porque
Rebecca H. parece o filme mais “independente” visto em
todas as mostras – e ao usarmos o termo pensamos não simplesmente
em números do orçamento, e ligação a financiadores ou distribuidores,
mas principalmente na sua liberdade de criação. O novo filme deste
cineasta, que já mostrou 3 longas em Cannes, exala uma impressionante
falta de compromisso de qualquer tipo: com sua própria obra, com
o sistema de produção cinematográfica corrente, com a recepção/expectativa
crítica. Nos remete o tempo todo a um cinema que nasce de um desejo
profundamente pessoal e sincero de propor certas imagens - mas
principalmente de fazê-las, buscá-la.
Ao
falar desse filme, não se pode exatamente falar de narrativa.
Mas seu subtítulo, presente apenas no material distribuído para
a imprensa (que nesse caso, ao contrário dos caros livretos com
várias páginas e fotos coloridas, era apenas um papel A4 branco
com os nomes dos atores/técnicos e os horários das projeções),
ajuda a entender o caminho buscado por Kerrigan: “a portrait of
an actress”. Vemos no filme um verdadeiro quebra-cabeças entre
a figura da atriz Geraldine Pailhas e personagens que ela interpreta:
uma seria a tal Rebecca H, mulher claramente desequilibrada, que
assiste numa TV imagens de Grace Slick cantando em Monterrey,
1968 (cantora do grupo americano Jefferson Airplane), e anuncia
ao seu irmão (Pascal Greggory) os planos de largar tudo e ir ser
cantora na Califórnia. Logo depois, em corte direto, Pailhas surge
interpretando a si mesma numa entrevista coletiva ao lado de um
diretor de cinema (o próprio Kerrigan, também interpretando a
si mesmo), anunciando um projeto de filme sobre a vida de Grace
Slick. Depois, vemos Pailhas e Greggory interpretando uma cena
de um outro filme, sobre eles dois, em uma cena, com a interrupção
pelo diretor (Kerrigan) que corrige detalhes de atuação, e pede
novas repetições. Mais tarde, em imagens que lembram muito o trabalho
de Pedro Costa com Jeanne Balibar em Ne Change Rien,
vemos Pailhas ensaiando uma cena em que canta uma música de Slick,
repetindo exatamente imagens da própria cantora.
E assim o filme segue, indo e voltando entre cada
um destes registros, sem sentir a menor necessidade de fazer passagens
de um para o outro que imediatamente reconheçamos como tais. Vamos
mergulhando um tanto hipnoticamente na figura de Pailhas, e nessa
idéia mesmo de atuação: o que faz uma atriz? Onde reside a verdade
de uma cena? O filme nos remete bastante a Copie Conforme,
inclusive, na maneira como trabalha a figura de Greggory junto
com Pailhas, criando e recriando relações diferentes entre os
dois. Mas, que não reste dúvida: é um filme fascinado pela figura
da mulher, algo que respinga nas imagens fantásticas de Grace
Slick cantando.
Para além da força intrínseca que consegue imprimir
a essas imagens, Rebecca H. ganha algo mais de particularmente
fantasmagórico para os que conheçam a obra anterior de Kerrigan,
porque Pailhas nos lembra MUITO (só com maiúsculas para dar conta
do quanto) Katrin Cartlidge, a fantástica atriz que protagonizou
Claire Dolan (1998), talvez ainda o maior filme do diretor,
numa das grandes interpretações femininas do cinema recente –
e algumas das cenas que Pailhas interpreta retomam situações daquele
filme, assim como do seguinte, Keane. Tudo fica ainda mais
duro e pessoal quando lembramos que Cartlidge morreu em 2002,
muito jovem e no auge do seu talento, e quando Kerrigan coloca
Rebecca/Geraldine em cenas que recriam uma situação de assassinato
por asfixia. Tudo isso talvez dê uma mínima idéia de quão sofrido
e instigante Rebecca H é quando bate na tela, um filme
que parece muito mais um grito criativo do que qualquer projeto
com fins voltados para um mercado, seja ele qual for (a produtora
do filme, aliás, é Sylvie Pialat, viúva do grande cineasta francês
Maurice Pialat, que teve seu último longa protagonizado por Pailhas),
e que nos fascina muito ao virar espelho atrás de espelho sobre
si mesmo e a condição do ator/atriz.
* * *
Ha Ha Ha, de Hong San-soo (Coréia do Sul,
2010) – Un Certain Regard
Simon Werner a disparu…, de Fabrice Gobert (França, 2010)
– Un Certain Regard
Se nos dois filmes acima o que estava em jogo
principalmente eram conceitos sobre a verdade da encenação, nos
filmes de Gobert e Hong o abraço pela ficção é totalmente assumido.
No entanto, em ambos entra em pauta uma outra questão bastante
interessante que é a da verdade dos personagens: algumas das maneiras
como esta é construída pela ficção, e como ela influi diretamente
na experiência dos espectadores.
No
caso de Ha Ha Ha, mais recente (e décimo) longa do coreano
Hong Sang-Soo, podemos falar que vemos a depuração de um estilo,
que se afirma e reafirma a cada filme. No entanto, as diferenças
deste novo filme parecem fundamentais: primeiro, embora seus personagens
sejam relacionados às artes e ao cinema, como é comum nos trabalhos
de Hong, essa relação é, além de pouco importante de fato na trama,
altamente ironizada e colocada em dúvida: será que eles são mesmo
um cineasta, um crítico, um poeta? Afinal, como se é de fato alguma
dessas coisas? Ainda mais importante: se também em Hong o contar
histórias e o beber álcool sempre foram partes integrantes das
narrativas, em nenhum dos filmes eles o são de maneira tão fundante
como neste: toda a trama do filme nasce e se desenvolve a partir
do encontro entre dois amigos, e da sua longa conversa em torno
de (muitos) copos de bebida, como somos lembrados seguidamente
ao longo do filme. Com isso, não apenas temos reforçado o caráter
de parcialidade de cada um dos relatos (com uma ironia que sempre
nos lembra que o verdadeiro contador da história não é nenhum
dos dois, mas Hong), como principalmente temos colocado em jogo
a confiabilidade do mesmo – não apenas pela sua unilateralidade,
mas também por serem fruto de uma bebedeira (além de parciais
já de saída, porque combinam falar só de “boas lembranças”).
O
que realmente chama a atenção na arte de Hong Sang-Soo, e neste
Ha Ha Ha em particular, é sua capacidade de tornar seus
personagens risíveis e tocantes ao mesmo tempo. Encontrar o fino
equilíbrio entre os dois não é coisa simples, e talvez venha daí
na verdade seu melhor ponto em comum com o cinema de Eric Rohmer,
com o qual volta e meia é comparado (e neste filme em particular).
Hong talvez seja o único cineasta hoje capaz de fazer seus personagens
masculinos adultos apanharem da mãe e passearem com as namoradas
na chuva, e em nenhuma das duas vezes chegar nem perto do patético
(como construção, como personagens, eles sempre estão ali do lado
– e essa é sua beleza). Como nos lembram os dois narradores de
Ha Ha Ha, talvez o grande segredo disso seja mesmo o fato
de que Hong parece acreditar, acima de tudo, na crença de seus
personagens sobre si mesmos – e isso acaba sendo mais importante
do que acreditar neles em si.
Já
em Simon Werner
a disparu…, o assunto da verdade dos personagens vem à tona
em duas camadas. Primeiro, a mais óbvia, que é a da sua construção
como um falso filme de suspense já a partir da primeira sequência,
que revela um corpo encontrado numa mata ao lado de onde acontece
uma festa de adolescentes. A partir de então, existe esta primeira
camada de interesse pela “verdade”: o que aconteceu, e de quem
é aquele corpo. No entanto, é na medida em que essa trama vai
sendo desconstruída aos poucos que o filme revela seu verdadeiro
interesse pela “verdade” dos personagens. Simon Werner a disparu…
é construído em quatro partes, cada uma delas narrando a história
de um personagem dentro de uma escola secundária francesa, ao
longo dos 10 dias que levam-nos até a noite da festa que abre
a narrativa. A cada uma das narrativas que se segue, a troca do
foco narrativo revela não apenas o que seria um outro lado sobre
a trama (que é o que aos poucos vai desconstruindo o suspense),
mas principalmente um outro lado sobre os personagens.
O interesse de Gobert por esse expediente, que
poderia facilmente ser confundido com um simples desejo pela ourivesaria
de um roteiro em múltiplos pontos de vista (e mise-en-scène,
já que o processo inclui voltar a cenas em outros contextos),
é na verdade pensar o próprio processo de construção de identidades.
De fato, o que o filme tem de mais forte é a maneira como cada
uma das suas quatro partes, se vistas isoladamente, poderiam sugerir
o roteiro de filmes completamente diversos: assim, o mocinho sensível
de uma história pode ser o bully babaca da outra; enquanto
o freak tarado de uma se torna o incompreendido tímido
na seguinte. Mais do que uma simples brincadeira, Goberto consegue
dar a esses desvelamentos um peso identitário bem firme, num discurso
bastante envolvente sobre as tipificações – algo, afinal, tão
caro aos chamados “anos de escola”.
Cinematograficamente,
o que mais impressiona (para além do fato de que, ao juntar-se
com parceiros como a fotógrafa Agnés Godard ou o Sonic Youth na
composição de trilha original, o filme assegura no mínimo grande
força visual e sonora) é como Gobert consegue, neste que é seu
primeiro longa, associar uma enorme fluidez narrativa e de linguagem
(algo que já não é fácil, menos ainda nessas idas e vindas que
podem facilmente tornar-se protocolares) com a esperteza de quem
certamente sabe e estudou bem todos os campos minados em que está
se metendo. Sim, porque convenhamos que é preciso coragem para,
ainda tão perto da lembrança de Elefante, narrar uma história
quase toda passada numa escola, sobre um possível ato violento
entre os estudantes, dividindo-a em pontos de vista que se cruzam.
Gobert sabe lidar com esse peso com bastante suavidade, da mesma
maneira como incorpora elementos de várias outras linhagens dos
filmes jovens e de escola (algo do humor e sustos de Pânico,
um pendor pop das Patricinhas de Beverly Hills, uma melancolia
de John Hughes, um tanto dos clichês das comédias românticas mais
banais), colocando todos para jogar a seu favor. Consegue assim
não fazer do filme nem apenas um exercício cerebral e metalingüístico,
nem algo que tenha uma tola crença em uma verdadeira “obra original”.
E assim encontra sua própria verdade, o que talvez seja o mais
importante (e difícil) para qualquer filme – ainda mais uma estreia.
Maio de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
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