in loco
Dia 12: Passando a limpo várias coisas
por João Cândido Zacharias, colaboração especial

La vie moderne, de Raymond Depardon (Franca, 2008) – Un Certain Regard
Chelsea On The Rocks, de Abel Ferrara (EUA, 2008) – Sessão especial

Dois réquiens passaram aqui em Cannes, quase desapercebidos. Mantidas as devidas diferenças entre os cinemas de Raymond Depardon e Abel Ferrara (que, afinal, são muitas), La vie moderne e Chelsea on The Rocks falam sobre o fim de eras. O primeiro é a última parte da trilogia Profils paysans (Perfis camponeses), e nele, seguindo os mesmos moldes dos filmes anteriores (L’approche, de 2001; e Le quotidien, de 2005), o cineasta entrevista camponeses, registrando suas rotinas. A grande maioria dos personagens é de velhos e o tema principal das suas falas é quase sempre a morte. Seus filhos, netos e outros personagens mais jovens aparecem sempre ou como seguidores insatisfeitos dos trabalhos na fazenda da família ou como proprietários eles mesmos – mas sempre com perspectivas de futuro negativas. O que Depardon quer captar nesse terceiro filme é o fim, anunciado nos outros dois longas, de um mundo em que ser um fazendeiro com duas vacas e três galinhas ainda era um modo de vida possível. Atropelados por mega-fazendas e seus equipamentos modernos, esses camponeses esperam a chegada morte. Sem se deixar tomar pelo espírito nostálgico dos “velhos tempos”, Depardon faz um pequeno manifesto, nessa sua tentativa de captar os últimos momentos daquele modo de vida, aonde ele foi criado.

Chelsea on The Rocks faz um caminho parecido no retrato do lendário Chelsea Hotel, prédio novaiorquino que foi casa de Janes Joplin e Andy Warhol e palco do assassinato de Nancy Spungen (pelas maos de Sid Vicious? ninguém sabe...), entre outras coisas. Misto de hotel e pensão, o lugar era comandado até pouco tempo por uma figura única chamada Stanley Bard, típico gerente/síndico que diz “Vai ficando, paga quando puder”. Ferrara (que também já morou por lá) mistura entrevistas com ex-moradores do lugar, material de arquivo e cenas ficcionais para fazer o raio-x de um espírito legitimamente sexo-drogas-e-rock’n’roll, bem ao gosto do diretor.

Como descobre-se lá pelo meio da projeção, durante uma conversa (sempre descontraída e cheia de intimidade), o Chelsea Hotel está agora nas mãos de jovens empresários que querem fazer da fama do lugar um atrativo para turistaa, o que resultou na expulsão de todos os moradores fixos e aumentos absurdos no preço das diárias. Assim que soube disso, Ferrara pegou sua câmera e correu para registrar os últimos dias do Chelsea como ele era. Como Depardon, o americano não mergulha em saudosismos, mas cria uma visão múltipla daquele lugar, resultando numa espécie de “Edificio Master on acid”. Um retrato pessoal e carinhoso de uma existência que, para o bem ou para o mal, ficou para trás.

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A Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele (Brasil, 2008) – Un Certain Regard

Esse primeiro filme dirigido por Matheus Nachtergaele começa com um plano de cima de um casal nu acordando e termina com um plano bem parecido, passado 48 horas depois. Entre um plano outro, o filme revela que o casal é formado por Santinho (Daniel de Oliveira) e seu pai (Jackson Antunes). O mundo que os entorna é revelado durante o filme, que acompanha a preparação e o desenrolar da festa do titulo, homenagem a uma menina morta 20 anos antes, que se comunica com o povoado (e supostamente faz milagres) através da figura de Santinho. Bebendo forte na fonte de Cláudio Assis (com cujos filmes este longa divide o roteirista, Hilton Lacerda), Nachtergaele e o fotógrafo Lula Carvalho (de alguma forma emulando aqui o trabalho do pai, Walter, nos filmes de Assis) parecem fazer o supra-sumo do chamado world cinema, algo que tem dado frutos positivos (O Céu de Suely, Linha de Passe) ou nem tanto (Amarelo Manga) no Brasil.

Infelizmente A Festa da Menina Morta não parece vislumbrar muito além desse Brasil folclórico, “para inglês ver” (ainda que seja também para brasileiros – “do sul” – ver). Santinho e sua auto-indulgente importância gritam o quão impossíveis são as relações entre todos os personagens do filme, senão pelo caminho da religiosidade dolorosa, da fé que penaliza, que manda. Mas vale ao menos destacar um belo plano (infelizmente um pouco sufocado no meio de quase todos os planos que se esforçam por serem belos), quando a câmera se distancia de todo esse mundo estranho e vai para o meio da praça, acompanhar um grupo de meninos dançando ao som da bossa nova O astronauta, de Pery Ribeiro e Leny Andrade. Um respiro de alivio e leveza em meio a um filme-bigorna.

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The Chaser, de Na Hong-jin (Coreia do Sul, 2008) – Sessão de meia-noite
The Good, The Bad, The Weird, de Kim Jee-woon (Coreia do Sul, 2008) –
Sessão de meia-noite

A Coréia do Sul tem aparecido nos últimos anos como um dos grandes fornecedores de cinema de gênero no mundo, talvez o maior depois de Hollywood. Um policial e um faroeste, respectivamente, foram selecionados em caráter hors concours em Cannes esse ano. Tanto Na Hong-jin, de The Chaser, quanto Kim Jee-woon, de The Good, The Bad, The Weird, mostram um apuro técnico incrível, não só em suas especificidades, como fotografia e direção de arte, mas ao mostrarem que entendem bem o abc da cartilha do cinema de gênero. A grande questão é o que eles fazem com esse entendimento.

The Chaser é a história de um cafetão que desconfia que suas “filhas” (como as chama), estão sendo assassinadas por um serial killer. No espaço de 24 horas, ele vai conseguir prender o homem de quem suspeita e correr atrãs de provas para incrimina-lo, enquanto tenta salvar sua última vitima, que talvez ainda não esteja morta. Prendendo a atenção e empolgando na primeira hora, Na Hong-jin acaba por desandar a receita ao cair num melodrama descarado, safado mesmo, com direito a criança machucada, prostituta arrependida e perda-tarde-demais. E aí, todo o apuro técnico parece um pouco jogado por água abaixo em nome de um moralismo fácil.

Mais fundo no cinema de gênero vai Kim Jee-woon nesta sua quase-refilmagem de Três Homens em Conflito, o grande clássico de Sergio Leone – pelo menos na opinião desse que escreve, um dos maiores filmes de todos os tempos. O diretor parece totalmente ciente de que entre 1966 (ano do filme de Leone) e 2008, o cinema passou por uma montanha russa de mudanças que, no caso da exploração que ele pretende aqui, teve seu ápice nos Kill Bill de Tarantino. Assim sendo, a base da coisa está lá: um faroeste com três protagonistas (um bom, um mau e um que passa de feio a estranho – e garante o lado cômico da historia) que estão atrás de um tesouro (eles e mais um bando de gente, incluindo aí o exercito japonês), que será encontrado na sequência final, em meio a um duelo entre os três personagens.

Como em Leone, o bom não é tão bom assim – como ninguém no filme. Enchendo seu longa de cenas de briga, batalha e tiroteio, Kim Jee-woon faz uma autêntica diversão aloprada que, talvez apenas nas mãos de um Tsui Hark fosse ainda mais forte. Interessante pensar o significado de um tiro (e da violência de modo geral) em cada um dos dois filmes: se em The Chaser a culpa parece carregar cada sangue espirrado, em The Good... esse sangue (e as batalhas) parece ser o motor para a sopa-de-tudo-um-pouco. No segundo filme, funciona.

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Surveillance, de Jannifer Lynch (EUA, Alemanha, 2007) – Sessão de meia-noite

Surveillance chega a Cannes (como Encaixotando Helena, em 1993) com a marca de “filme da filha de David Lynch”. Injustiça cruel fazer qualquer tipo de cobrança em cima dessa relação familiar, mas fato é que a diretora abraça nesse novo filme muitos dos elementos presentes no cinema do pai, como câmeras de vigilância, estradas e máscaras deformadoras – mas, por sorte, ela prefere se ater a uma história mais, digamos, narrativa à tentação de tentar fazer filmes sensoriais como os de seu pai. Desde Encaixotando Helena, aliás seu único longa antes desse, Jennifer Lynch já tinha assumido um cinema B, no melhor sentido da expressão: atuações exageradas, muito sangue e um mistério pairando no ar, mesmo quando tudo parece resolvido. O elenco é encabeçado por um Bill Pullman alucinado no papel de um agente do FBI que, ao lado de sua parceira (Julia Ormond), chega a uma delegacia de cidade pequena para tentar desvendar o que aconteceu durante um bizarro acidente de carro que pode estar ligado a um série de assassinatos. Mantendo uma linha narrativa dividida em flashbacks de três grupos de personagens diferentes, Lynch se centra num ambiente fechado e num número restrito de atores, apertando fundo o acelerador do filme B. Os últimos 15 minutos deixam claro que Surveillance se sabe uma grande e divertida brincadeira sanguinolenta, algo de muito saudável no meio de um festival como Cannes.

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Ocean Flame, de Liu Fen Dou (Hong Kong, 2008) – Un Certain Regard
Eldorado, de Bouli Lanners (Bélgica/Franca, 2008) – Quinzena dos Realizadores

Chega um momento em festivais como Cannes em que, depois de dez, doze dias de filmes demais e noites mal dormidas, a gente começa a ficar um tanto de saco cheio de todas as coisas que são exatamente aquilo que a gente previu nos primeiros cinco minutos. É esse o caso desses dois aqui que, talvez vistos em cartaz, num dia comum e rotineiro, fossem melhor recebidos.

Ocean Flame (ao lado) reconta a velha história do homem culpado pelo mal impingido a uma mulher. Wong Yiu acaba de sair da prisão e vai visitar a mãe e o irmão de Ni Chen, moça apaixonada por ele que, depois de muita humilhação, toma um ato desesperado. Liu Fen Dou se banha num blablablá de culpa que, sem entrar em mais detalhes, tenta tirar de sua estrutura em tempo não-cronológico alguma graça que não possui. Já Eldorado, por outro lado, tem um interesse um pouco maior (tanto que ganhou alguns prêmios na Quinzena). É um road movie que segue 24 horas na vida de um autêntico loser e do rapaz que tenta assaltar sua casa. Bebendo na velha fórmula que mistura drama, comédia e humanismo com olhar social, Bouli Lanners algumas consegue boas piadas, mas não chega a voar alto o suficiente para despertar interesse maior. Deixa curiosidade por trabalhos a vir, ou anteriores (o seu primeiro longa Ultranova, também passou em Cannes), mas justifica toda a atenção recebida por aqui.

Maio de 2008

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