in loco
Dia 12: Último fôlego
por Eduardo Valente

Entre les murs, de Laurent Cantet (França, 2008) – Competição

Vários diretores de quem se esperava muito, compareceram à altura das expectativas; vários de quem não se esperava nada, também; alguns poucos decepcionaram, e alguns desconhecidos nos deram pequenas surpresas gostosas. No entanto, não resta dúvida: o filme de Laurent Cantet foi o grande choque do festival, pois mesmo gostando de três de seus quatro longas anteriores, ainda assim não nenhum deles deixava antever que, de um tema aparentemente tão batido (a relação de um professor com seus alunos de um colégio público parisiense) ele pudesse retirar tamanha energia, inteligência, ironia e construção. E aí é que, ao contrário dos que muito pensam, se dá o prazer do trabalho de um crítico: não ao confirmar expectativas, e sim ao ser maravilhado com algo inesperado, ainda não visto.

Talvez se pense que o golpe de mestre de Cantet tenha sido o de escalar um professor (e não um ator) no seu próprio papel, e usar os alunos de uma escola francesa como colegas de turma na mesma. Vampirizando a realidade, portanto, ele faria um “docudrama” de qualidade. Mas, longe disso, a relação de Entre les murs com a realidade encontraria paralelos bem melhores no Jogo de Cena de Coutinho: atores de si mesmos, trabalhando com um roteiro bastante pensado em termos de desenvolvimento dramático, os personagens de Cantet (que não deixam nunca de sê-lo) nos cativam não por uma noção de verdade, mas por uma idéia de performance mesmo.

Como já adianta o título, o filme é todo ele filmado dentro da escola, sem sair em nenhum momento para dar contexto exterior a nenhum dos personagens (embora o contexto se force para dentro da escola, nas conversas, nas visitas de pais, etc). Nessa escolha, há uma questão política de Cantet: ele afirma que é dentro das escolas que se passa um dos confrontos mais essenciais da atualidade no mundo, em especial nas escolas públicas de espaços quase periféricos. Ali, as questões de raça, classe, etnia se unem aos conflitos de geração (talvez mais acentuados do que nunca na época do computador, do celular e do videogame, que colocam professores e alunos em uma posição de distância mais acentuada ainda nos hábitos e velocidades de contato com o mundo) e aos conflitos pessoais que sempre estiveram presentes na rotina escolar. E Cantet atenta para todas estas nuances, sem nunca precisar ser didático ou informativo: elas afloram nas menores frase e expressões, existem nos subtextos e nos contatos diretos ou indiretos.

Mas, o cinema de Cantet não é um cinema do conflito fácil, muito pelo contrário: aqui, ele exercita um cinema do autêntico campo-contracampo. Para além do fato de boa parte da dinâmica escolar se dar assim, professor de um lado de frente para a turma, do outro, se trata de um plano-contraplano real, de um filme que expõe seguidos dilemas sem se colocar de um lado ou de outro somente. Entender os alunos, os professores, e os diferentes alunos e professores (sim, porque ele não trabalha só com a contraposição aluno-professor, mas também dentro dos grupos), significa perceber a complexidade do que se coloca em jogo, significa entender a escola como um espaço de (de)formação como nenhum outro, onde o drama está em ação todo dia, o tempo todo. E o que Cantet faz, com a ajuda de um elenco excepcional (em especial as impressionantes atuações do professor François Begadeau – autor do livro que inspirou o filme – e do aluno Frank Keita – um dos únicos cujo personagem não leva o nome do ator), é um filme de uma dinâmica impressionante, que retoma a proximidade do cinema como espaço do grande teatro.

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Serbis, de Brillante Mendoza (Filipinas/França, 2008) – Competição
Uç Meyman (3 Monkeys), de Nuri Bilge Ceylan (Turquia/França/Itália, 2008) – Competição

Neste domingo, acabei tendo a chance de ver estes que eram os únicos dois filmes da competição que perdi sem ser “de propósito” (isso porque os de Wim Wenders e Atom Egoyan eu realmente não programei, por achar mais interessantes alguns outros filmes de outras seções nos seus horários – até os veria neste domingo se houvesse a chance, mas os dois foram programados na mesma hora que a entrega das Palmas). Curiosamente, só por fazer esta transição de 5, 7 dias no momento de vê-los, já há uma mudança de estatuto: de filmes que ainda não se sabe muito sobre, passaram a ser o filme que liderou durante a maior parte do tempo o quadro da Screen International (o de Ceylan) e o que esteve em último o tempo todo (o de Mendoza). Pois bem, como eu já podia pressentir, minha sensibilidade sobre eles é bem oposta a esta.

Serbis é um filme-statement da parte da seleção do festival, e até por isso se expunha mesmo à recepção que teve: é um filme que se constrói na sujeira, por todos os lados – mas principalmente na banda sonora, invadida quase o tempo inteiro por um quase insuportavelmente alto som de tráfego de carros das ruas filipinas. Ele narra 24 horas da vida de uma família, que a peculiaridade de morar no mesmo prédio degradado onde funciona o negócio familiar: um cinema pornô. A descrição faz pensar num filme decadentista e doentio sobre o terceiro mundo, mas Mendoza é bem mais inteligente do que isso. Em nenhum momento seu olhar para o universo que cerca os personagens (seja as ruas hiperhabitadas da cidade, seja o cinema e seus freqüentadores) ou mesmo para os dramas pessoais-familiares destes apela para uma vitimização ou uma patologização fácil: parece um conjunto até bastante funcional de pessoas, que apenas calha de morar e lidar com um negócio marginalizado. Há tramas, há construção de relações e olhares, e estes são o forte do filme – menos interessantes são alguns desejos de simbologias fáceis, como o nome do cinema pornô ser “Family”.

Para além das considerações de tratamento de personagens, há algo mais a se destacar no filme, e é o tratamento que Mendoza dá ao espaço do cinema, construindo uma geografia bastante particular com a exploração das escadas que ligam os andares do prédio como um espaço de vida e não apenas de transição. É lá que se passa boa parte deste filme, que também tem algumas cenas de sexo absolutamente frontais, como de resto se esperaria de um filme que lide com este tema. Mas há também espaço para cenas que vão do lúdico ao surreal e que trabalham sempre com essa promiscuidade entre o espaço público e o espaço privado da vida da família: o ladrão que invade o cinema perseguido por um policial ou a cabra que surge em frente à tela do cinema (talvez a melhor cena do filme). É um filme que veste com orgulho seu terceiro mundismo em todos os seus aspectos, e quando um trade paper daqui disse que a fotografia e o som eram amadores e mal feitos, fica claro que boa parte da crítica se atém a um conceito de beleza pré-concebido, não tentando levar em conta as intenções dos realizadores.

É o que se pode supor, inclusive, ao ver os elogios ao novo filme do turco Ceylan, que depois do forte Uzak e do bem desinteressante Climates, realiza aqui um filme francamente constrangedor. Não consigo achar outra palavra para este amontoado de clichês do cinema de arte – que, a julgar pelo júri da Screen, funcionam perfeitamente bem ainda. De fato, a segunda metade de 3 Monkeys (sabe, aqueles macaquinhos do “não falo, não vejo, na ouço”?) me pareceu estar sendo realizado pelos mesmos responsáveis pela série Super Hero – The Movie, Date Movie, Scary Movie, etc, que estariam fazendo aqui o Just Another Art Movie. E dá-lhe céus de nuvens pretas para significar opressão e tristeza dos personagens, dá-lhe planos de personagens com mão no rosto ou olhos baixos ou deitados nas camas languidamente, dá-lhe lógica do “a vida é um sofrimento horrível, mas sempre pode piorar” (o que não é um problema em si, desde que assumido como tão ingênuo quanto “a vida é uma coisa tão linda”). Tudo, claro, com fotografia contrastada, scope hiper-significante... Algo bem perto do insuportável, que a foto acima, principal imagem de divulgação do filme, ilustra ao ponto do ridículo. Quem vir a foto, nem precisa ver o filme..

Mas, críticos que gostam de encher a boca para reclamar que os filmes hollywoodianos “são todos iguais” ficam impressionados com a profundidade de Ceylan e dão o prêmio da Fipresci para Delta. São clichês de si mesmos.

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Tulpan, de Sergey Dvortsevoy (Cazaquistão/Alemanha/Suíça/Rússia/Polônia, 2008)
– Un Certain Regard

Tradicionalmente, no sábado se dá a entrega dos prêmios da principal mostra paralela da seleção oficial de Cannes, e em seguida é exibido o filme ganhador do prêmio Un Certain Regard. Como é uma mostra em que sempre acabamos perdendo vários filmes, estive presente nesta sessão nos dois últimos anos para ver se seria premiado algum filme ainda não visto – o que não foi o caso. Pois, neste ano devo confessar minha surpresa com a premiação deste filme (uma co-produção internacional filmada no Cazaquistão, sobre um povo nômade local), que foi um dos primeiros que marquei como “passável” ao ler a sinopse no catálogo, e que agradeço ao prêmio pela sorte em poder me redimir deste erro.

De fato, nos primeiros quinze minutos do filme, quando basicamente se passa aquilo que vemos na sinopse (um jovem pastor de ovelhas é recusado pela filha de uma outra família ao pedi-la em casamento, passando a viver um tanto perdido sem a perspectiva de outras pretendentes no meio do deserto cazaque), tinha a impressão de que o prêmio é que era um equívoco (inclusive porque lembrava o outro premiado com sinopse semelhante, O Casamento de Tuya, do qual não consegui agüentar ver meia hora no último Festival do Rio), pois estava tudo lá como eu pensava: os tempos longos da exploração da paisagem exótica, o olhar para os costumes e personagens típicos de um cinema de proto-ficção etnográfico que, francamente, em nada me interessa.

No entanto, na medida em que os personagens que formam a família nômade vão ganhando personalidades próprias e que o diretor Dvortsevoy vai deixando de lado o “observacionismo” fácil para cair mesmo na construção de uma ficção, que ganha tons quase surrealistas dado o caráter absurdamente inóspito da região onde o filme se passa (a onipresença do vento na trilha sonora é quase enlouquecedora), o filme vai conquistando mais e mais a atenção do espectador. Basicamente duas coisas o diferenciam daquilo que torna geralmente banal o olhar para estes mundos isolados: primeiro, a presença de um humor inesperado, às vezes quase irônico, que olha de igual para igual estas pessoas em um ambiente distinto, sem considerá-los meras curiosidades e sim um agrupamento social humano como qualquer outro (e os dramas internos são realmente iguais a qualquer outro); e principalmente um trabalho de câmera de impressionante sofisticação por parte da fotógrafa polonesa, que ao invés dos planos longos e parados opta por uma pulsante câmera na mão, que opera verdadeiros milagres de enquadramento e de foco no meio de uma movimentação de atores (e animais, muitos) claramente bastante livre.

Na união das duas coisas, Tulpan se revela um autêntico prazer de ser assistido, por todos os motivos possíveis, seja o interesse dramático, seja o cinematográfico, seja o humano, complementando um filme de surpreendente sofisticação deste estreante em ficção (mas que já tinha tido um documentário muitíssimo elogiado em Roterdã), em quem, como se deseja sempre fazer com os premiados desta mostra, ficaremos de olho.

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Salamandra, de Pablo Aguero (Argentina/França, 2008) – Quinzena dos Realizadores

Fala-se muito da qualidade do cinema de autor internacional argentino, pensando-se quase sempre em três realizadores como pontas de lança: Lucrecia Martel, Pablo Trapero, Lisandro Alonso – curiosamente todos presentes na seleção deste ano de Cannes. O que dá a pensar o tremendo desafio que é para um jovem autor argentino tentar se impor na cena internacional hoje, mesmo sendo um já bastante premiado e conceituado com seus curtas, e cujo projeto para este longa de estréia foi desenvolvido com apoio de diferentes e prestigiosas instituições internacionais de várias nacionalidades (inclusive a Residência do próprio Festival de Cannes). Pois a maneira que Pablo Aguero encontra neste filme para lidar com a sombra destes “jovens gigantes” é curiosa: ao herdar claramente (seja conscientemente ou não) características de cada um dos três, acaba impondo uma sensibilidade bastante pessoal.

Numa coincidência e tanto, além de Aguero trazer algumas características mais gerais do cinema de cada um dos cineastas citados (o realismo de Trapero, a exploração de paisagens como personagens de Alonso, a câmera que desorienta e aproxima de Martel), a própria história do filme conta com reflexos curiosos dos outros três filmes exibidos em Cannes. Senão, vejamos: Salamandra conta a história de uma jovem mãe que, após estar internada, luta para manter-se próxima ao seu filho de seis anos (como a protagonista de Leonera), caindo na estrada com ele rumo à Patagônia (como o protagonista de Liverpool), numa jornada um tanto fora do controle do racional (como a da personagem de La mujer sin cabeza).

O que Aguero traz de seu, além de um apego a uma mesma região onde já havia filmado todos os seus curtas (e onde foi criado e sempre morou), é uma certa sujeira propositalmente incômoda, efetivamente radical, que em nada lembra os universos bastante “resolvidos”, cada um em seu estilo, dos seus compatriotas. O cinema de Aguero tem algo de incontrolado, de saudavelmente “errado”, que dá a ele uma inegável personalidade. Embora tenha uma série de “pecados de estréia” (alguma insistência em planos marcantes, o trabalho da atriz principal em alguns momentos de sua loucura excessivamente externada e pensada como tal, um andamento narrativo eventualmente repetitivo), o filme compensa com energia impressionante, com entrega e finalmente resulta numa promissora primeira entrada no universo de um novo autor argentino.

Maio de 2008

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