in loco
Expectativas: Cannes sob o signo da descoberta
por Eduardo Valente

Se em 2007 a celebração do sexagésimo aniversário fez com que a seleção do festival estivesse sob o signo dos grandes autores do cinema mundial (ou pelo menos os grandes autores segundo o Festival de Cannes), não deixa de ser curioso que este festival número 61 (o que sempre dá uma idéia do começo de algo) venha com uma sensação de antecipação pelas possíveis surpresas vindouras. Claro que, para além de qualquer opção curatorial, trata-se de uma contingência, como o próprio delegado-geral do Festival (e sua principal “autoridade” em termos de seleção) confirmou na coletiva de imprensa: afinal, se um Almodóvar, um Nanni Moretti, um Lars Von Trier ou os irmãos Coen estivessem com filmes novos prontos, e não em realização/finalização, eles estariam na lista dos selecionados, sem qualquer sombra de dúvida.

No entanto, tal e qual ela aparece, a principal seleção de Cannes, a da competição oficial, deixa no ar um cheiro de curiosidade. Entre seus cineastas selecionados, apenas um ou dois parecem estar numa fase menos feliz de carreiras já um tanto longevas (falamos aqui de Wim Wenders e Atom Egoyan), e apenas um outro de fato pode ser considerado um mestre de gerações anteriores (falamos, claro, de Clint Eastwood). De resto, Cannes neste ano conta com uma lista onde até os medalhões são razoavelmente frescos: afinal, há apenas 10 anos, dificilmente uma lista de “imperdíveis” do festival incluiria nomes como os dos irmãos Dardenne (que, é fato, desde então ganharam duas Palmas de Ouro), de Jia Zhang-ke (um Leão de Ouro em Veneza em 2006) ou mesmo o de Walter Salles (cujo Urso de Ouro em Berlim acaba de completar dez anos).

O fato é que todas as outras chamadas “figuras de ponta” na coleção 2008 de autores em Cannes são ainda mais “novas” no clube, seja por terem carreiras ainda um tanto iniciais (parece difícil acreditar mas nem Lucrecia Martel, nem Fernando Meirelles, nem James Gray, nem Pablo Trapero, nem Nuri Bilge Ceylan, nem Laurent Cantet dirigiram ainda cinco longas-metragens), seja por um reconhecimento como tal ainda bastante recente ou em formação, pelo menos na seara internacional (caso de Arnaud Despleschin, que chega com seu sexto longa). E, é claro, que há dois cineastas-problema nessa lógica: primeiro, Philippe Garrel, que mesmo com mais de quarenta anos de carreira e vinte longas no currículo só chegou ao reconhecimento mundial com o recentíssimo Amantes Constantes – e que, curiosamente, concorre agora pela primeira vez em Cannes; e em segundo lugar, Steven Soderbergh, cineasta que ganhou notoriedade automática no seu longa de estréia justamente por ganhar a Palma de Ouro (sexo, mentiras e videotape, em 1989), mas que desde então tem perseguido uma carreira absolutamente sui generis, onde cada projeto parece apontar para um lado completamente distinto – alguém sabe de fato o que esperar do seu Che de 4 horas e meia de duração, falado em espanhol?

É em meio a um campo um tanto aberto como este que a competição oficial apresenta o seu maior número de incógnitas em muitos anos: alguns deles, como o filipino Brillante Mendoza (com Serbis); o cineasta de Cingapura, Eric Khoo (My Magic); ou o húngaro Kornel Mundruczó (com Delta), seguiram o caminho tradicional, das mostras paralelas de Cannes, que servem um pouco como “grupos de acesso” à competição. Outros nem isso: nomes como o do israelense Ari Folman (Waltz with Bashir) ou o do italiano Matteo Garrone (Gomorra) fizeram com que jornalistas e críticos do mundo inteiro tivessem que apelar para o Google ou o IMDB assim que a lista oficial foi anunciada – o que está longe de ser um movimento comum. Mas, curiosamente, o mais célebre destes “novatos” em Cannes é justamente o que dirige seu primeiro longa: afinal, o nome do roteirista Charlie Kaufman é hoje uma assinatura reconhecida no cinema mundial, de tal modo que, neste ano bastante excitante, talvez de quem menos se espere grandes surpresas seja, paradoxalmente, do único estreante.

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Se na Competição o sangue novo acima descrito deixa um gostinho de “desconhecido”, no que tange as seleções paralelas (Un Certain Regard, Quinzena dos Realizadores e Semana da Crítica), é sempre um alento ler um ou outro nome mais conhecido. Isso porque a sensação de se perder em meio ao escuro ao selecionar filmes para ver nestas seções às vezes se torna uma experiência um pouco radical demais, e especialmente angustiante quando sabemos de antemão que ver tudo é impossível, e que portanto sempre podemos estar perdendo o próximo grande autor ou filme em seu nascedouro – geralmente enquanto assistimos um daqueles filmes sobre os quais nos perguntamos “por que será que isso foi selecionado para Cannes???”.

Para quem gosta de ir um pouco mais seguro de si para as sessões, as mostras paralelas nos dão opções neste ano. Na Un Certain Regard, por exemplo, temos nomes como os do japonês Kyoshi Kurosawa ou Raymond Depardon – ambos já com passagens pela competição de Cannes; na Quinzena, é o mesmo caso com Bertrand Bonello e os irmãos Larrieu, além da presença mais que especial do polonês Jerzy Skolimovski, que volta com seu primeiro longa em dezenove anos. É sempre interessante ir ver estes filmes de autores já consagrados para tentar entender porque eles foram considerados “obras menores” pela lógica da seleção (não citaremos os casos de Leos Carax, Bong Joon-ho e Michel Gondry por estarem dirigindo um filme em episódios, o que tradicionalmente é passado nas seleções paralelas).

Para além destes nobres conhecidos, há a leva anual de “próximas apostas”, que começam por aqueles que já apresentaram outros filmes no festival, como é o caso do inglês Thomas Clay (que causou sensação há dois anos com sua estréia The Great Ecstasy of Robert Carmichael, na Semana da Crítica, e que agora passa seu novo filme na Un Certain Regard – bem segundo o modelo de Cannes de “subida de divisão); do franco-argelino Rabah Ameur Zamaïche (indo para seu terceiro longa, o segundo seguido no festival); do espanhol Albert Serra (que apresenta seu segundo longa, o segundo na Quinzena); da francesa Claire Simon (terceiro longa, todos na Quinzena); ou do mexicano Amat Escalante (premiado em 2005 na UCR com Sangre, e de volta na mesma seleção com Los Bastardos). Até mesmo na Semana da Crítica, tradicionalmente o espaço que mais corre riscos (o que implica, é claro, que mais erra também) e que no ano passado apresentou uma seleção inteira de filmes de estreantes, teremos alguns nomes dos quais já vimos algo, como é o caso do mexicano Rodrigo Plá (atualmente em cartaz no Brasil com Zona do Crime) ou dos irmãos israelenses Ronit e Shlomi Elkabetz – ambos casos de cineastas já premiados em Veneza.

Há ainda as estréias em longas de cineastas exibidos (e premiados) com curtas em Cannes, caso neste ano do americano-brasileiro Antonio Campos (Afterschool), da palestina Annemarie Jacir (Salt of This Sea) ou do argentino Pablo Aguero (Salamandra). E, finalmente, há aqueles que chegam pela primeira vez em Cannes depois de terem filmes bastante elogiados em outros festivais, como é o caso da americana Kelly Reichardt, com Wendy and Lucy (o seu Old Joy foi premiado em Roterdã); do chinês Liu Fen Dou, com Ocean Flame (o seu Green Hat foi bem recebido em Locarno); ou do filipino Raya Martin, um jovem hiper-ativo, que já realizou inúmeros trabalhos exibidos pelo mundo e que chega a Cannes com o seu Now Showing exibindo suas quatro horas de duração na Quinzena dos Realizadores.

Por último, há um curioso grupo de cineastas, aqueles que já vão estabelecendo uma considerável carreira nas mostras paralelas dos grandes festivais. É o que acontece por exemplo com o argentino Lisandro Alonso, que estreou na UCR com La Libertad, e depois passou Los Muertos e Fantasma na Quinzena, à qual retorna agora com Liverpool. Se no caso de Lisandro não é difícil entender esta sua posição “intermediária”, dado o caráter bastante pouco convencional de seus trabalhos, mais curiosa é a presença de um Bent Hamer ou um Andreas Dresen na seleção da UCR: trata-se de cineastas com carreiras já numerosas, em anos e filmes, mas dos quais parece se esperar pouco mais do que os que já têm feito, com filmes em tom e registro um tanto quanto pouco ambiciosos. São assinaturas reconhecidas, mas pouco influentes.

Fora estes, claro, um mar de incógnitas, de nomes que estréiam em longas ou que fazem seus primeiros longas que rodam esta “alta roda” do cinema mundial depois de trabalhos conhecidos apenas dentro dos seus países ou no máximo em festivais menores. Destes, espera-se de tudo, mas principalmente que nos surpreendam com obras-primas nos casos dos que escolhamos arriscar para assistir; e que comprovem-se diretores de obras menores no caso dos que tenhamos que perder.

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Ah, sim: e também vai passar o novo Indiana Jones, o novo Woody Allen e Kung Fu Panda! Mas vocês já ouviram falar disso, né?

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br

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