in loco
Dia 8: De volta aos clássicos
por Eduardo Valente

Retomar a questão do cinema clássico e do moderno a essa altura do campeonato parece no mínimo algo inútil, ainda mais quando as fronteiras entre os dois já deixaram de ser claras há muito tempo, localizadas muito mais no tempo do que na possibilidade de pensar os filmes hoje, quase cento e quinze anos depois do cinema surgir. No entanto, a programação do festival tornou difícil não apelar para os termos ao programar na competição, com separação de poucas horas, os novos filmes de James Gray (Two Lovers) e Clint Eastwood (The Exchange, título decidido depois do Festival já o ter anunciado como Changeling). Fato é que os dois talvez sejam hoje os herdeiros mais fortes de uma determinada tradição clássica norte-americana, tanto no sentido de uma crença enorme no poder da idéia de ficção (e, portanto, de personagens e de drama) quanto na maneira de filmar estas ficções (o próprio James Gray afirmou na coletiva de hoje, ao ser perguntado se se sentia próximo dos europeus por ser mais reconhecido hoje por aqui afirmou que não, porque embora respeite e admire muito o cinema daqui, percebe um desejo de cinema pessoal que está muito mais próximo do que ele chamou de um “verdadeiro cinema americano” – se diferenciando do que Hollywood passou a privilegiar nos últimos vinte anos, quando ele disse que os produtos ganharam premência sobre a idéia de “filme”).

* * *

Two Lovers, de James Gray (EUA, 2008) – Competição

Seja como for, clássico ou não, o fato inescapável é que, pelo menos no olhar deste que aqui escreve, Gray apresentou o filme mais siderante da competição do Festival até agora. Two Lovers estava sendo comentado antes de sua exibição como sendo um mergulho de Gray no terreno da comédia romântica. Porém, se de fato há bastante humor no filme e no trabalho de seus atores, qualificá-lo como comédia precisaria incluir aí um esforço argumentativo e tanto, já que, como boa parte dos filmes de Gray, a idéia da tragédia está bem mais próxima do seu filme. No entanto, bem mais importante do que achar estas categorias é afirmar que Gray monta aqui, com a parceria direta de Joaquin Phoenix (para quem ele escreveu o papel), um estudo de personagem absolutamente impressionante. Primeiro, porque abre mão das chaves psicologizantes mais óbvias, optando mais por um jogo entre algumas imagens de tom quase mítico (como aquela que abre o filme) e a simples afirmação de uma personagem por sua presença e ação física – e, de novo, a que marca a primeira cena é um exemplo excepcional.

O personagem de Phoenix, em torno do qual gravita todo o filme de Gray, possui uma identificação com o espectador que, de forma alguma, passa por termos como entendimento ou mesmo concordância. Muito pelo contrário, ele toma decisões que sabemos constantemente serem erradas, as quais não conseguimos nunca entender do ponto de vista racional, mas conseguimos perfeitamente sentir do ponto de vista da empatia criada com aquela presença na tela, que se impõe justamente na fragilidade e na falibilidade, mas também pela maneira straight forward com que se coloca em cena. Em torno dele, Gray monta um carrossel de afetos truncados e dolorosos (que, aliás, dá múltiplos significados ao título do filme – especialmente no original em que lovers pode se referir a homens e mulheres), de uma série de personagens que se atrai e repele sempre no nível da pele, da emoção mais imediata, impulsiva, necessária mesmo.

No entanto, há bem mais no filme do que simplesmente um enorme ator, mesmo que isso não seja pouca coisa. Há, antes de tudo, todo um elenco impressionante e um diretor que, por mais que tenha dito na coletiva que seu grande prazer no cinema é o trabalho com os atores, faz do seu trabalho com a câmera e o som a prova de que um grande cinema, clássico ou não, se manifesta mesmo ao passar muito além das questões possíveis a serem discutidas a partir de temas ou comportamentos de personagens. O cinema se manifesta é na tela, com a força dos claros/escuros, das composições e tensões de quadro e com a montagem exemplar que James Gray demonstra a cada seqüência deste Two Lovers. Quem duvidar, que veja e reveja o diálogo entre Phoenix e Gwyneth Paltrow na porta do nightclub. Aula de cinema é pouco.

* * *

The Exchange, de Clint Eastwood (EUA, 2008) – Competição

Não estive presente na coletiva de imprensa de Clint Eastwood, mas segundo relatos de amigos, para além da eventual pergunta estúpida para Angelina Jolie ou para o diretor de jornalistas sempre maravilhados com as estrelas (e bem menos com as pessoas de cinema), parece que Eastwood estava na sua velha forma, a qual pude testemunhar em 2003, quando da exibição de Mystic River: a cada pergunta mais “interpretativa”, mais “complexa”, sempre as afirmações tácitas – “não sei nada disso, só dirigi o filme”, ou “isso você teria que perguntar para o roteirista”. Em se tratando de um filme passado no final da década de 20, houve ainda uma adição ao repertório: quando perguntado sobre os sentidos de contar essa história na relação com o mundo de hoje, saiu-se com “a história tem relação com 1928, quando ela se passa”. Nada mais clássico, fordiano mesmo, do que o bom e velho número do cineasta pragmático. E de fato, Eastwood poucas vezes foi tão clássico como em The Exchange, a começar por abrir o filme com o (a essa altura já mais que comentado) logotipo da Universal que era usado em 1928.

Como é praxe em filmes desse tipo, vários críticos estão parando na primeira aparência (a do melodrama de época) e se perguntando aonde foi parar Clint Eastwood dos últimos anos. Bom, para variar, claramente são críticos que entenderam esse Eastwood mais recente através de lentes bem limitadoras. Porque em muitos sentidos, The Exchange é não só um filme tipicamente eastwoodiano, como um filme extremamente enganador em sua aparente simplicidade. Afinal, não é qualquer filme que muda de registro com a freqüência que ele faz, passando de um filme de costumes para um thriller para um melodrama para um autêntico filme de horror (do tipo não-sobrenatural, claro), todo o tempo nos deixando ao seu lado, sentindo o peso enorme da narrativa que se desenrola em nossa frente.

Além do cineasta de uma elegância à toda prova, sem espaço para qualquer tipo de “enrolação” (em menos de dez minutos, como um bom mestre da narração cinematográfica, ele constrói um universo onde nos sentimos em casa – e, portanto, estamos prontos para sermos destroçados com a sua destruição logo a seguir), reconhecemos ali o Clint Eastwood altamente crítico das instituições, que se coloca ao lado do homem (mulher, neste caso) comum que vai sendo soterrado pelo sistema; o Clint Eastwood que filma o lado escuro do ser humano com uma assustadora generosidade e quebra de paradigmas simples; o Clint Eastwood que desafia a idéia de que exista uma verdade que explique tudo. Claro, há vários espectadores que dirão que não é um “Eastwood dos melhores”, uma frase que eu acho meio complicada de entender e localizar, porque um Eastwood como este, dos melhores ou não, é um senhor filme (e já seria assim se só tivesse algumas seqüências, como a conversa de Jolie com o “segundo filho” no quarto, com ele no escuro; o encontro entre mãe e assassino – que termina com ela “atrás das grades”; ou a execução).

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta