in loco
Dia 1: Abrindo os trabalhos: Meirelles e Folman
por Eduardo Valente

Ao contrário do que imaginam tantos daqueles que criam sobre a crítica (e sobre os críticos) uma imagem caricatural e francamente tola, não é com nenhum prazer que se vai ao cinema e se vê um filme do qual não gostamos. Menos ainda é com prazer que se vê um filme brasileiro sem gostar, e menos ainda um filme brasileiro (ou ao menos com o Brasil na sua co-produção) que está tendo a honra de abrir um Festival de Cannes. Por outro lado é isso que muitos leitores querem saber logo quando abrem um texto no meio dessa “selva de opiniões” que é a cobertura de um grande festival, então tiremos isso do caminho: não, eu não gostei de Ensaio sobre a Cegueira (Blindness), de Fernando Meirelles. Mas, quem sou eu para achar que isso (a minha opinião) tem alguma importância? O que pode ter alguma importância (ou não) são os meus motivos ou argumentos para não ter ficado ao lado do filme na sua projeção – e por isso vamos logo ao que importa.

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Ensaio sobre a Cegueira (Blindness), de Fernando Meirelles (Canadá/Brasil/Japão, 2008) – Competição

É quase impossível, para quem acompanhou o fascinante (pela honestidade quase infantil, que de resto caracteriza a postura do diretor em geral – o que é um elogio, aliás) blog mantido por Meirelles sobre a realização do seu filme, não retornar a algumas das perguntas que ele se fez ao longo do processo, agora que o filme está pronto. Acima de tudo, no que se refere ao problema de como tornar “palatável” a dureza do livro em que se baseava, como fazer ele chegar ao espectador de maneira “agradável”. Frente a esta preocupação (cuja validade ou não, não cabe a mim julgar, uma vez que os objetivos e compromissos firmados por cada diretor de cinema cabem somente a ele), a única constatação ao final da projeção de Ensaio sobre a Cegueira é que ele encontrou sim o tal filme palatável. Talvez, apenas, ao custo de um filme que realmente pudesse nos emocionar – ou melhor dizendo, nos emocionar no mesmo diapasão que o livro gostaria de tocar, e não nos emocionar de maneira fácil, como acabam soando quase todas as emoções deste filme.

Claro, imagens e interpretações de grande “qualidade” estão ali – e é para isso que se contrata grandes fotógrafos, diretores de arte, atores. Mas todos estão sufocados por um desejo de “simplificar o desespero”, que se torna francamente cansativo após um (curto) tempo. Seria importante destrinchar mais o filme (para o que quase sempre não há tempo em coberturas de festival) em busca dos vários motivos para se alegar uma tal “facilidade”, mas nós ficamos aqui com apenas um, certamente o mais insistentemente presente e obviamente limitador: a narração em off de Danny Glover que “domestica” cada imagem que vemos, dando a elas contexto emocional, explicação, quase um guia de emoções para o espectador. Claro que sempre haverá aqueles que se sentem bem sendo guiados, e estes se sentirão bastante bem recebidos pelo filme, que parece apostar na cegueira (emocional, que seja) do seu espectador, sentindo que precisa dizer a ele o que sentir, o que pensar a cada virada de roteiro, a cada imagem hiper-trabalhada de César Charlone, a cada tema “complexo” tocado pelo filme. Já aqueles que preferem sentir por si mesmos, concluir por si mesmos, ser parte “ativa” da relação com uma obra, estes tenderão a sair de Ensaio sobre a Cegueira com a sempre estranha sensação de terem sido um pouco ofendidos no seu desejo de experimentar o mundo (e o cinema) por si mesmos.

Há ainda uma reflexão algo simplória, porém importante, a ser feita a partir do filme no que tange o lugar da “linguagem alegórica” no cinema e na literatura. Sim, porque na literatura aquilo que é evocação e convite ao imaginário, no cinema se transmuta em imagem, e, portanto, em algo presente fisicamente que se nos dá a ver. Nesta transposição, certas insistências numa suposta “fidelidade” parecem especialmente mal resolvidas neste Ensaio sobre a Cegueira, indo do simples desejo de não dar nome aos seus personagens (o que podia ser uma não-questão no filme, mas que se torna uma no momento em que há uma cena em que se pede que eles se identifiquem e ninguém, ninguém diz o seu nome!) ao mais complexo trabalho de criar um universo de verossimilhança própria. Ao optar por uma série de seqüências que explicam o funcionamento daquele mundo em exposição, que nos é mostrado pela lente do detalhismo, os buracos de tudo que ali falta e não faz sentido (a parte “alegórica”) vêm a primeiro plano, e não saem de nossa cabeça em muitos momentos. E é uma pena que assim seja porque o forte de Fernando Meirelles, em todos os seus filmes, nunca foi sua forma de poetizar ou alegorizar o mundo, e seu olho para o timing, para (por que não?) o artifício. É curioso que este grande esteta do cinema, com seu domínio da linguagem, se preste a querer filmar “urgências do mundo” (Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel) e agora “alegorias”. Nos parece que Meirelles se sairia melhor deixando de lado estes compromissos com a realidade e com o literário, e explorando mais o homem de cinema que há nele.

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Waltz with Bashir, de Ari Folman (Israel/França, 2008) – Competição

Deixemos de lado, já de saída, todo o hype criado em torno de Waltz with Bashir vender-se como uma docu-animação, pois parece bem mais proveitoso nos aproximarmos do filme dentro do conceito (herdado da literatura, mas cada vez mais utilizado no cinema) da auto-ficção. Sim, porque é disso que se trata o filme, não simplesmente num sentido mais formal do termo, mas porque é este o seu tema. Afinal, acompanhamos ao longo da sua duração uma busca de Ari Folman para, a partir das suas lembranças e das de vários conhecidos seus que participaram da guerra no Líbano, no começo dos anos 80, de reativar uma memória que se encontra congelada. E isso, como explica um dos primeiros personagens a conversar com Folman (e se trata sempre bem mais de conversas do que de entrevistas), é um trabalho que beira a ficção, já que a memória vai se construindo a partir de uma mistura do que foi realmente vivido com determinadas construções imaginárias que surgem para “completar os buracos”.

É exatamente por lidar com essa construção de um mundo que lida tanto com realidade quanto com projeção e sonho que Waltz with Bashir se justifica plenamente na sua forma animada, que parece tratar a realidade como um índice mais do que como um dado de fato. O que ele investiga mostrar, então, é menos o que se deu no chamado massacre das colônias de Sabra a Shatila, mas de que forma quem lá esteve, do lado israelense, retém este fato consigo. Neste sentido, por mais estranho que possa parecer às vezes a maneira de filmar os entrevistados através da animação semi-rotoscópica, o efeito a longo prazo tem um tanto de mistura entre fato e construção que servem muito bem ao filme.

Neste sentido, o filme deixa bem claro que seu “momento-problema” é mesmo o desfecho (spoiler presente), única vez em que aparecem na tela imagens documentais de fato. Pode até fazer sentido dentro do trajeto do personagem principal, onde se marca ali que há um reencontro dele com algumas de suas memórias, a partir do longo caminho traçado ao longo do filme. No entanto, não deixa de ter um caráter um tanto espetaculoso e catártico, o que é menos um problema do que o fato de que possui este peso ao mesmo tempo em que parece diminuir um pouco a opção anterior pela animação, pela contestação de que a realidade seja mais forte do que sua vivência como memória. Embora pareça o gesto nobre de quem diz “havia de fato pessoas sofrendo com aqueles atos”, as imagens que vemos acabam se juntando a todo um manancial conhecimento de imagens de sofrimento na guerra, no que elas resultam quase menos potentes que algumas das criações animadas. Mas, com ou sem estas questões (a serem melhor digeridas nos próximos dias e na revisão do filme), trata-se de um filme que coloca-se como questão de maneira bastante interessante.

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Na saída da segunda sessão, a colega Tatiana Monassa, da Contracampo, ao lado de quem vi os dois filmes, lançou no ar o que eu também havia pensado durante o filme: "interessante que o filme é quase um contraponto ao do Meirelles". Não alongamos o papo, pois depois de um dia de trabalho e destrinchar de imagens (e programações para estas!) o melhor é comer qualquer coisa falando de amenidades. Mas a verdade é que enquanto Meirelles parece nos dizer que, frente ao horror, vale tudo como imagem deste para buscar a nossa emoção, Bashir, um filme animado vejam só!, é bem mais eficaz em nos causar o sentimento de estupefação frente ao humano, justamente por questionar de que forma nos colocamos (ou não) de frente para ele e o que construímos para falar dele. Um festival não é uma corrida de cavalos entre filmes, que não foram feitos para serem postos lado a lado em comparação, mas no formato como a coisa se dá, são idéias das quais não podemos escapar.

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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