in loco
Balanço de Cannes: a política de uma premiação "poderosa"
por Eduardo Valente

Num primeiro olhar, a premiação de Cannes 2008 (ou do “júri Sean Penn”, como falam os franceses) foi perfeitamente coerente com o discurso do cineasta-ator americano no dia da abertura: afinal, levaram os dois principais prêmios filmes (Entre les murs, Gomorra) de um claro desejo político, altamente fincados no hoje e, curiosamente, dois filmes baseados em livros de não-ficção (o que fala muito do lugar do cinema de ficção hoje, onde a quebra das fronteiras com a não-ficção parece cada vez mais valorizada).

Porém, como sabemos, “político” é um termo complicado, quando falamos de arte e de cinema, porque todo gesto (de um cineasta, de um júri) é político. Daí que talvez não seja a palavra que mais corretamente represente o que foi de fato a linha que marca esta premiação. Me parece claro que se houve um cinema representado, este não foi questão de filmes políticos, e sim de “filmes poderosos” (termo aliás usado por Sergio Castellito e por Penn ao serem perguntados sobre o prêmio para os dois filmes italianos – além de Gomorra, Il Divo levou o Prêmio do Júri, espécie de terceiro lugar). Entendamos o que se quer dizer com este termo: todos os três filmes acima citados são filmes em tom maior, filmes que “falam alto” (no caso dos italianos, em especial, literalmente – não só pelo típico tom de voz do povo italiano, mas no caso do uso do som nos dois filmes mesmo), que expõem aquilo de que querem tratar de forma bem clara, direta, e cinematograficamente muito pouco sutil (embora o filme de Cantet até o seja bastante no trato dos personagens a partir da exposição temática).

O cinema sutil, de fato, é o grande perdedor do “júri Sean Penn”: não houve espaço para filmes que não fizessem statements, filmes que confiassem principalmente em coisas como clima, ritmo, mood, registros pessoais. Nada de Serbis, Two Lovers, La mujer sin cabeza, Leonera, nem mesmo 24 City, o mais “frágil” dos filmes de Jia Zhang-ke. Mesmo o ganhador do prêmio de direção, 3 Monkeys, do turco Nuri Bile Ceylan, embora centrado numa narrativa “pequena” usa acima de tudo a mão pesada, a linguagem do cinema que chama a atenção para si sublinhando exatamente em cada plano o que quer falar sobre os personagens. Categoria cinema de arte “poderoso”, que confirma: nenhum lugar para a sutileza, portanto, no “júri Sean Penn”.

A única ausência sentida nesta lógica foi de fato a de Waltz with Bashir, tanto que foi o único não-premiado a suscitar pergunta na coletiva final do júri pela sua ausência. Ao responder, Penn deu a pista de outro critério do júri: consideram que o filme (provavelmente pelo seu high profile, de docu-animação de tema urgente) já tem um caminho garantido pela frente, e que não “se beneficiaria” tanto assim de um prêmio aqui, como algum dos outros que sairiam fortalecidos pelo reconhecimento e conseguiriam uma presença mais longa no mundo do cinema. Este sim, definitivamente, um gesto de política de cinema.

Aliás, é mentira quando eu disse que não houve prêmios sutis, pois houve um, para sorte dos brasileiros: o de melhor atriz para Sandra Corveloni. Ao contrário do prêmio masculino, para Benicio Del Toro como Che (nada mais “poderoso”), a escolha de Corveloni surpreendeu porque havia pelo menos quatro personagens femininas que dominavam a tela em seus filmes de cabo a rabo (Martina Gusmán em Leonera; Angelina Jolie em The Exchange; Maria Otero em La mujer sin cabeza; em Le silence de Lorna). Escolher uma delas seria escolher atuações poderosas, que tomam seus filmes pelo pescoço e dão o tom deles. Corveloni tem muito menos tempo de tela do que as quatro acima, e pode ser considerada inclusive um quinto nome em importância no elenco, depois dos quatro irmãos. O reconhecimento do seu nome, portanto, não teve nada de óbvio, e foi uma (muito merecida) surpresa – talvez a única autêntica da noite de premiação.

* * *

Curioso como no domingo final do festival, quando sai a programação de reprises dos filmes, começamos a descobrir de fato o que vai ficar da experiência do crítico por Cannes: imediatamente, tem-se a vontade de voltar a alguns favoritos absolutamente pessoais (La mujer sin cabeza, Two Lovers, Leonera), além de começarmos a sentir mais claramente que precisamos ver de novo alguns outros cuja primeira olhada talvez tenha sido marcada, acima de tudo, por um forte cansaço, que permitiu apreciação, mas não a entrada de fato nos filmes (senti isso principalmente em 24 City, My Magic, de alguma forma em Gomorra). E, claro, sabemos bem aqueles a que não teremos vontade de voltar tão cedo, tendo eles ganho prêmios (Il Divo, 3 Monkeys, Delta – prêmio da Fipresci) ou não (Un conte de noel, Synecdoche). É a sedimentação da tormenta, que pode também ser melhor compreendida pelo leitor a partir de um tradicional quadro de cotações do crítico.

Junho de 2008

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