in loco
Dia 3: Primeiras recorrências, Skolimovski, hiper-autores
por Eduardo Valente

Curioso notar como, com tão poucos filmes exibidos até agora, e vindo de seções (portanto, curadorias) muitas vezes distintas, alguns temas ou motifs têm se repetido de maneira bastante presente. Para além da curiosidade de terem aberto a competição e a Um Certain Regard filmes com os nomes de Blindness (Cegueira, na tradução literal) e Hunger (Fome, idem), alguns pontos de contato têm se feito hiper-presentes até agora, numa seleção que tem sido tudo, menos light. O espaço da prisão, por exemplo, que surge como locação em 70% de Blindness (mesmo que não seja uma prisão per se, claro que o é de fato); em 85% de Leonera e em 95% de Hunger. Ligando Leonera e um dos primeiros filmes exibidos na Semana da Crítica, o alemão The Stranger in Me, está o tema da maternidade como experiência transformadora máxima da condição feminina – embora as duas personagens tomem exatamente o caminho contrário na direção desta transformação, em ambos os casos bastante traumática. A questão do olhar, sempre central ao cinema, surge como um tema quase principal em dois filmes de abertura, Blindness e Czery Noce Z Anna, da Quinzena, enquanto a memória como re-construção a partir do apagamento pelo trauma surgiu como questão em três filmes, central em Waltz with Bashir e Leonera, e lateral, porém presente, em Anna. Por um lado, claro que se trata antes de tudo de coincidências, mas são repetições como estas que tendem a nos ir guiando na medida em que acumulamos horas nos cinemas, correndo de filmes para outros e tentando ir construindo a partir deste conjunto alguma forma de experiência com um certo sentido.

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Czery Noce A Anna (Four Nights with Anna), de Jerzy Skolimovski (França/Polônia, 2008) – Quinzena

Antes de falar do filme, vale dizer que foi um momento bem forte a apresentação da sessão de abertura da Quinzena deste ano. Primeiro, pelo fato dela comemorar 40 anos de idade, tendo sido criada em muito como um resultado dos protestos de maio de 1968, que interromperam o Festival de Cannes daquele ano. Discursos na abertura relembraram a história de contestação, descoberta e risco associada à Quinzena, mostra que sem dúvida veio oxigenar um festival que caminhava rumo ao “oficialismo”. Depois, veio a hora de convidar ao palco o diretor do filme de abertura, o polonês Jerzy Skolimovski, em outro momento de força e celebração já que o cineasta não filmava um longa há 17 anos, depois de uma carreira de prêmios em Cannes, Veneza e Berlim e outras festivais numa série de filmes realizados entre 1965 e 1991. Skolimovski estava visivelmente emocionado (isso é, da maneira em que um sarcástico polonês fica emocionado – para quem quiser localizar a imagem de Skolimosvski pode reconhecer acima o cineasta, que interpretou o tio russo no último Cronenberg, Senhores do Crime), e fez duas declarações bem interessantes. Primeiro, quando disse que “como meu último filme (Ferdydurke) havia sido bem medíocre, decidi só voltar quando tivesse um filme bom a mostrar... (silêncio pausado) Aí está ele”. Depois quando fechou a apresentação dizendo “ter um recado para os meus amigos, e para os que não são meus amigos... I’m back!”. A platéia veio abaixo, claro. Como de resto, veio abaixo de novo no final deste belíssimo filme que cumpriu a promessa de Skolimovski.

Cztery Noce A Anna é um forte estudo de personagem, construído pela câmera elegantíssima do diretor, de um sentido plástico à toda prova (onde vale dizer que Skolimovski passou estes 17 anos sem filmar exercitando a pintura), mas também por uma atuação monumental do ator Artur Steranko, que praticamente hipnotiza a câmera numa construção que mistura a comédia física de uma mistura de Monsieur Hulot e Mister Bean com um rosto patético e quase congelado, com olhos entristecidos, de um Buster Keaton, e cujas motivações nos escapam o tempo todo. O filme explora a obsessão deste homem por uma vizinha, que nos é mostrada numa narrativa que lentamente vamos percebendo evoluir bastante livremente pelo tempo ao mesmo tempo em que passeia do suspense à comédia rasgada de alguns planos, passando por uma ternura quase insuportável em outros (um, em especial, de antologia, quando o personagem deita sua cabeça no travesseiro ao lado da sua amada).

Impressiona o uso da trilha sonora de Michal Lorenc pelo filme, ajudando a “enganar” constantemente o espectador no passeio por estes distintos registros que o filme vai construindo. Ela é um dos indícios de que Skolimovski obviamente não se coloca em nenhum momento no papel de um cineasta que observa de maneira naturalista a obsessão de um “homem simples”, mas sim exercita um cinema hiper-consciente de sua condição de construção, a cada momento. É preciso citar, neste caso, o exemplo maior disso no filme, uma cena de uma beleza contundente, onde um helicóptero surge em cena sem qualquer explicação maior, construindo com a potência absurda de um deus ex-machina assumidíssimo um momento de drama entre os dois personagens. Belíssimo.

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Un Conte de Noel, de Arnaud Despleschin (França, 2008) – Competição
Hunger, de Steve McQueen (Inglaterra/Irlanda do Norte, 2008) – Un Certain Regard

É curioso perceber como o cinema pode ser uma arte misteriosa. Pois, enquanto Skolimovski se utiliza de todo seu domínio sobre as várias partes da linguagem (imagem, som, atores), construindo um filme, sendo completamente consciente de sua construção, nos impressiona pela sua forma direta e forte de ir aos pontos que o interessam, estes dois filmes acima mostram cineastas que parecem um pouco mais interessados em si mesmos e suas formas de filmar do que naquilo que de fato filmam. Claro que não é exatamente o caso, porque McQueen deixa bem claro que para ele o tema do seu filme (a greve de fome dos prisioneiros do IRA na Irlanda dos anos 80) é extremamente urgente, assim como sabemos o quanto as falibilidades e imperfeições da alma humana, e especialmente a sua organização social na família, são caras a Arnaud Despleschin. Mas, mesmo assim, ambos os filmes se perdem de maneira bastante acentuada no trajeto que optam por seguir ao tentar dar conta destes seus temas de interesse. Os dois representam, de maneiras distintas mas aproximadas, o que de mais perigoso o tal “cinema de autor” pode ter.

Começando por Despleschin, Un Conte de Noel pode ser descrito como um Reis e Rainha que perdeu as estribeiras (é fato que alguns acham que este já não tinha muitas estribeiras, mas eu não sou um deles). É fato que há uma certa inversão de foco e aquilo que era um filme sobre a família que escolhemos construir pelos afetos, independente do sangue, se torna agora uma questão da família de sangue (elemento bastante forte no filme) que precisamos conviver mesmo nos desafetos. Mas a principal diferença é que aquilo que ainda tinha algum (considerável) frescor em Reis e Rainha, se torna aqui formulaico ao extremo, ao ponto de algumas vezes Un Conte de Noel parecer um Pequena Miss Sunshine de autor francês. O elogio da generosidade desbragada e do “disfuncional como modelo” se torna auto-consciente de uma maneira francamente irritante, além de num formato incrivelmente over: não só trata-se de um filme de duas horas e meia, como faz questão de explorar uma tal quantidade de conflitos e conscientemente expor um formato entre o teatro de boulevard e a tragédia grega (além de toques de Tchekov – como se pode ver, teatro é algo bem importante para o filme). Não se fala só muito no filme, se fala demais: todos os personagens discutem com um tal conhecimento de causa seus problemas e traumas, que resta ao espectador pouco mais do que ser afogado na auto-indulgência generalizada, que é tão pouco convidativa quanto a narração over de Danny Glover em Blindness, da qual falávamos outro dia.

Já em Steve McQueen a questão é de falta de foco mesmo. Um videoartista de algum renome, McQueen parte com um determinado interesse ao cinema (“mostrar o que realmente aconteceu naquela prisão na Irlanda”) que parece de uma ingenuidade extrema – ainda mais quando ele claramente é um artista cujo maior interesse/talento é mesmo o de construção visual. Com isso, há um tremendo incômodo em ver a história da briga dos presos políticos irlandeses sendo sufocada pelo desejo do filme de chamar a atenção para sua própria esperteza audiovisual. Com isso, ficamos vendo os conceitos do diretor, alguns francamente constrangedores (como começar o filme acompanhando um guarda da prisão em casa, para mostrar que “havia dois lados na questão” ou filmar passarinhos voando no momento da morte de um personagem) outros simplesmente distrativos (filmar uma conversa de vinte minutos em plano-sequência para expor “os dois lados do argumento pela greve de fome”, num movimento que só faz chamar a atenção para a forma do filme e não os argumentos em si). Em suma, é um filme de tal maneira show-off que sobra bem pouco para nos atrelar ao drama de Bobby Sands.

Maio de 2008

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