in loco Dia
4: Quatro filmes em tom menor por Eduardo Valente
Tyson,
de James Toback (EUA, 2008) – Un Certain Regard
Existe
um ponto onde o cinema chega e outros em que ele não consegue chegar – constatação
algo óbvia, mas que, especialmente no maior festival de cinema do mundo, é sempre
chocante quando a prova se apresenta à nossa frente. Foi o que aconteceu ontem
na sessão de Tyson, documentário de James Toback sobre esta verdadeira
lenda (do boxe, claro, mas não só). Do filme, trataremos abaixo, mas o fato é
que nada que aconteceu na tela conseguiu emanar mais poder do que a simples presença
física de Mike Tyson, ali, naquele palco. Questão de corpo, claro, mas também
de olhar, de rosto. Tudo que o filme tenta construir se apresentou ali naquele
simples segundo em que Tyson ouvia a apresentação do filme, e olhava em volta,
um tanto intimidado, quase com os olhos de uma criança com medo de uma situação
na qual não se sentia confortável. Aquele corpo e aqueles olhos, ali, no palco,
foram o grande acontecimento da noite. De fato, talvez consciente do poder desta
presença, o filme de Toback é, literalmente, todo de Tyson: a opção do diretor
é a de dar a voz totalmente ao ex-boxeador, que conta detalhes da sua vida pessoal
e da sua carreira pelo boxe (e, principalmente, dos momentos e maneiras distintas
– e dramáticas – em que as duas coisas se misturam). Assim, não há vozes de autoridade
para confirmar isso ou aquilo, nem espaço para o contraditório: em cena, Tyson
por ele mesmo. Se
esta opção não chega a deixar nunca uma sensação de falta no sentido deste olhar
unilateral é porque Tyson emerge do filme como uma personalidade tão complexa,
que muitas vezes parece ser ele mesmo o seu próprio contraditório. No entanto,
o filme escorrega um pouco no formato escolhido, tendo momentos em que parece
um pouco um especial de TV alongado do estilo “Tyson conta sua vida”, em que a
edição força a barra para dar a idéia do “Tyson como homem comum e cheio de questões”,
usando desde planos de sincero mau gosto de um Tyson em frente ao mar ou no alto
de uma cobertura com Manhattan ao fundo até um split screen com falas repetidas
para dar sensação de que são “muitos Tysons”. Bobagem, porque aquilo que interessa
mesmo está na voz de Tyson (aliás, cujo tom sempre pareceu absolutamente deslocado
daquele corpanzil) e no bom uso de imagens de arquivo entre filmes pessoais e
transmissões de suas lutas. O resto fica com aparência de perfumaria e de um certo
respeito excessivo pelo objeto, algo que o próprio Tyson demonstra não ter nem
precisar. * * * Le Voyage aux Pyrénées, de
Jean-Marie e Arnaud Larrieu (França, 2008) – Quinzena Falávamos
ontem justamente sobre o peso temático sob o qual o festival caminhou nestes primeiros
dias, com o cinema mostrando sempre seu lado mais sério e “relevante” (Kung
Fu Panda à parte, claro) e nos vêm os irmãos Larrieu aqui com uma tremenda
excentricidade completamente louca que é esta sua comédia. Interpretado por Jean-Pierre
Darroussin e Sabine Azéma, um casal na mesma medida brilhante e completamente
sem “senso de ridículo” (ainda bem!), o filme parece em momentos ter sido feito
de fato como uma sucessão de gags à beira do surreal e sem qualquer medo
da mais pura e simples bobagem (hilária, na maior do tempo), mas ao fim vamos
percebendo que o filme é de fato uma versão on acid do belo Pintar ou
Fazer Amor, o filme anterior deles. Mas, claro, se lá o caminho era poético,
eles foram aceitos pela competição, enquanto este mergulho sem medidas na insanidade
vai parar na “mais arriscada” Quinzena dos Realizadores. Longe de ser perfeito
(até porque sua própria estrutura clama por irregularidades de ritmo), o filme
surgiu principalmente uma gostosa lufada de ar no meio de um festival bastante
grave até agora.
* * * Já que este ano o Leo Sette
está cobrindo Cannes para o Filmes Polvo,
o amigo João Cândido Zacharias, do Filme
B, que já cobriu o Festival de Berlim para nós, ajudará a cobrir
algumas das necessárias ausências que minha cobertura sempre deixa (afinal, é
impossível estar em todos os lugares ao mesmo tempo). Abaixo, suas duas primeiras
colaborações. * * * Tokyo!,
de Michel Gondry, Leos Carax e Bong Joon-ho (Franca, Japão, Coréia do Sul, Alemanha,
2008) – Un Certain Regard O filme em episódio parece
ser, de novo, uma das modas do cinema – só Cannes teve, nos seus últimos dois
anos, Paris, Eu te Amo e Cada Um com Seu Cinema. Por princípio,
neste tipo de filme acaba-se necessariamente comparando filmes que, não fosse
estarem todos na mesma projeção, talvez não tivessem nada a ver um com outro.
Mas a sessão oficial de Tokyo!, já na sua apresentação, já indicava que
algo mais estranho e um pouco menos previsível viria quando Bong Joon-ho jogou
para a platéia um dos grandes marketings desse novo gênero de filme, dizendo:
“Aproveitem a projeção; três filmes pelo preço de um!”. E
talvez estranho seja o mínimo para definir Tokyo!. Bem longe de uma versão
japonesa de Paris, Eu te Amo, esse aqui tem apenas três episódios, todos
passados em Tóquio, é claro, mas num tom em que o “eu te amo” dá lugar ao “eu
te alucino”. Porque se há algo que os três cineastas convidados para o longa têm
em comum são suas visões alucinadas, quase on acid do mundo, ainda que
em níveis totalmente diferentes – e o fato é que Tokyo! parece ter uma
unidade bem maior do que filmes de episodio costumam ter: ainda que cada episodio
tenha sua cara, todos bem diferentes, o espírito geral de estranheza com relação
a maior metrópole do mundo está lá, nos três filmes. Interior
Design, episódio de Michel Gondry, é basicamente a história de uma moça que
se transforma numa cadeira. Se em filmes anteriores Gondry parecia prezar mais
pela pirotecnia do que pela narrativa, aqui talvez seja onde ele consiga melhor
juntar isso a um cinema de interesse. Na verdade, isso fica mais evidente quando
ele não esta querendo jogar na cara do espectador o quão “visualmente inventivo”
ele pode ser. E aí, a química entre Ryo Kase e Ayako Fujitani, o casal do interior
tentando a vida na cidade grande, fala mais alto e o filme realmente tem vida.
Já o segundo episódio, Merde, de Leos Carax (foto ao lado), desempenha
mais ou menos o papel do filme de Michael Cimino em Cada Um com seu Cinema:
jogar a merda (literalmente) no ventilador, e fazer chacoalhar uma platéia. Denys
Lavant, em interpretação ensandecida, faz um monstro do esgoto que surge para
aterrorizar Tóquio. O auto-entitulado Sr. Merda sai pela cidade gritando, roubando
e jogando granadas, mas o que parece assustar mais é seu visual: sujo, cego, fedido.
Um dia finalmente ele vai preso e o filme fica ainda mais alucinado quando entra
em cena um advogado francês e se desenrola o julgamento do Sr. Merda. A
explosão do filme de Carax é desvantagem para Shaking Tokyo, de Bong Joon-ho,
que conta a historia de um hikikomori, pessoas que se isolaram em casa e não saem
mais, tendo todo seu contato com o mundo exterior via telefone ou internet (no
caso do personagem do filme, só telefone). Acontece que mesmo numa historia de
terror, como era o caso em O Hospedeiro, Bong Joon-ho “takes his time”,
deixa as coisas acontecerem bem aos poucos, com uma calma narrativa impressionante.
E isso, vindo depois da injeção de adrenalina que é Merde, acaba deixando
uma sensacao de “talvez fosse melhor deixar esse filme pruma outra hora”. Certamente
o média (40 minutos) de Bong é pra ser revisitado, em separado. *
* * Boogie, de
Radu Muntean (Romênia, 2008) – Quinzena dos Realizadores O
mal de se tomar um país como referência de cinematografia é que uma hora
a gente vai descobrir: não tem pais em que não exista filme ruim. Então, claro
que não é todo ano que dá pra ter um bom filme romeno em Cannes. Boogie,
único representante em longas do país-sensação de 2007 em Cannes, passa o mal
estar estranho de se estar assistindo a um material bruto no lugar de um filme
terminado. E aí ficam algumas saudades: o que fizeram com a elipse? O que aconteceu
com a boa e velha Romênia onde os senhores morriam em portas de hospitais e mulheres
eram proibidas de abortar? Piadas à parte, o espírito “bonzinho-vida real” de
Boogie tem interesse zero. Sua questão principal é a de um homem de trinta
anos (o Boogie do título), casado e com filhos, que, passando férias na praia
com a família, reencontra dois amigos de colégio. A partir daí, Radu Muntean trata
o velho embate “homem responsável” vs. “jovem querendo aproveitar a vida” da maneira
mais óbvia possível. Maio de 2008
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