in loco Dia
4: Dia de atrizes "francesas" e um OVNI japonês por
Eduardo Valente Antes,
um esclarecimento ao leitor, que nos honra com sua leitura: em Cannes, somos dois,
mas ainda assim não damos conta de todos os filmes. Mais do que isso: sendo de
uma revista absolutamente independente, estamos também duplamente “por nossa conta”
(ou seja: não só não recebemos salário como ainda pagamos nossas despesas de viagem
todas). Por conta disso, nos impomos diariamente apenas duas obrigações: 1) tentar
relatar na melhor das nossas condições (físicas e mentais – que nem sempre são
boas, aliás), o nosso cotidiano para quem lê e busca informação sobre os filmes;
2) nos focar nos filmes que nos interessam pessoalmente. Isso para explicar porque,
por exemplo, nem eu nem Leo escrevemos sobre Zodíaco, de David Fincher;
ou Sicko, de Michael Moore: porque não fomos ver. Como não temos compromissos
de pauta com os filmes de maior destaque midiático, priorizamos os filmes que
mais nos causam ansiedade em ver ou que nos parecem mais difíceis de serem vistos
depois. Assim, confiamos que o leitor pode se informar sobre a recepção geral
a Fincher, Moore e outros em vários meios, mas que talvez ninguém esteja falando
de Nicolas Klotz, de The Band’s Visit, de Savage Grace, de... em
suma, de todo o resto. Mas, sempre que os virmos, mencionaremos (e talvez possamos
ainda contar com o apoio do multi-homem Pedro Butcher, nosso colaborador mas também
jornalista responsável pelo Filme B e um dos correspondentes da Folha, que acaba
vendo todos os filmes que perdemos por conta de seus outros trabalhos – e interesse,
claro). * * * Boarding gate,
de Olivier Assayas (França, 2007) – Sessão especial de meia-noite Actrices,
de Valeria Bruni-Tedeschi (França, 2007) – Un Certain Regard Tout est pardonné,
de Mia Hansen-Love (França, 2007) – Quinzena dos Realizadores Curiosamente
o dia foi quase todo voltado aos filmes franceses, nas mais diferentes seções
do Festival. E, mais curiosamente ainda, os três filmes vistos, que no campo de
suas narrativas podem ser considerados facilmente como formas já bastante vistas
e exploradas, nos marcam por uma mesma característica: a força de suas atuações.
De fato, podemos dizer que esta é uma marca de boa parte de um certo cinema francês,
mas nestes casos em especial falamos daquele tipo de atuação marcante que eleva
um filme do nível da banalidade, do comum, e faz com que ele adquira um brilho
diferente. Começando
pelo novo trabalho de Assayas: ele faz uma ponte entre seus dois filmes que mais
se relacionavam com o cinema asiático, do qual ele é um entusiasta há muito tempo
– Irma Vep e demonlover. Do primeiro ele traz a maneira com que
foi produzido (bastante rápido e barato, como forma de Assayas poder filmar alguma
coisa enquanto espera que o financiamento de um projeto mais complexo se resolva)
e uma forte presença do cinema de Hong Kong como inspiração (se lá havia Maggie
Cheung em Paris, aqui temos a própria Hong Kong, onde Assayas filma pela primeira
vez); do segundo, vem a própria estrutura de um thriller que mistura características
do capitalismo moderno (aqui o mundo das altas finanças e o fenômeno da pirataria)
com uma forma altamente fluida e viva de filmagem. Aliás, podemos também colocar
na conta de demonlover a própria exibição de Boarding gate fora
de competição já que, projetos semelhantes que são, é compreensível a reticência
de Assayas em se expor às hordas selvagens dos críticos na Competição, já que
eles fizeram picadinho daquele filme em 2002 (principalmente pela intolerância
com um cinema de gênero que se dedique a ir além das convenções hollywoodianas). Mantendo
a pertinente referência, Boarding gate não consegue atingir os grandes
momentos de cinema físico e hipnótico que demonlover conseguia, mas por
outro lado tem uma atuação absolutamente antológica de Asia Argento, naquele que
talvez seja até hoje o papel mais perfeitamente adequado à sua presença marcante
na tela. De fato, Boarding gate é bem menos um thriller (como o próprio Assayas
o quer caracterizar) do que um estudo de uma personagem em desmonte. Desde a sua
entrada em cena, sabemos que aquela mulher está no meio de um furacão de sentimentos
e de desespero, disposta a tudo – e será isso que acontecerá com ela: tudo. A
primeira metade do filme é praticamente um pas-de-deux entre Argento e
um igualmente forte Michael Madsen, na encenação de um caso de amor doentio como
poucos. Depois, o filme parte junto com ela para Hong Kong, onde basicamente ambos
se perderão na série de ciladas, traições e descontroles que se seguem. São dois
momentos em ritmo e tons bastante diferentes, ambos bastante interessantes, ainda
que não completamente resolvidos. O segundo filme, Actrices,
tinha outro nome até bem recentemente (que está até no catálogo), mas realmente
já diz tudo a que vem no seu novo título. É um filme de atrizes (e atores), não
só no sentido de ser dirigido por uma (Valeria Bruni-Tedeschi, mais recentemente
vista, deslumbrante, no Ozon de 5x2 e no Festival do Rio, em Um Casal
Perfeito) e escrito por duas (a diretora e sua parceira em cena – e também
cineasta – Noémie Lvovsky), mas também porque seus personagens são todos atores
de uma companhia de teatro. O filme na verdade se centra nos conflitos internos
da atriz de sucesso interpretada por Bruni-Tedeschi, que sente os efeitos (físicos
e emocionais) de seu aniversário de 40 anos. O formato escolhido
é o da clássica comédia dramática francesa, e nisso podemos inclusive considerar
o filme um tanto convencional. No entanto, Bruni-Tedeschi consegue pelo menos
três coisas dentro desta convencionalidade que elevam o filme: 1) apostar numa
estrutura que mistura realismo naturalista com inserções de alguma fantasia, bastante
bem encenada e resolvida; 2) injetar um humor bastante rasgado e louquinho no
andamento do filme – principalmente nas entradas em cena de sua mãe, excepcional
–, provando que não leva excessivamente a sério os seus “dilemas”, o que é muito
saudável; 3) saber que boa parte de sua força está nos atores que escalou (e que,
curiosamente, são uma mistura dos elencos dos dois filmes criticados aqui ontem,
La question humaine e Les chansons d’amour), a começar por ela mesma
– com seus olhos inacreditavelmente expressivos. Olhos e
atores que são temas que nos levam ao terceiro filme francês do dia, a estréia
da jovem crítica da Cahiers du Cinema, Mia Hansen-Love. Para saber o risco que
este filme corria de cair na tal convencionalidade, basta que tentemos uma rápida
sinopse de sua narrativa: “jovem casal enfrenta sérias dificuldades em criar sua
filha, uma vez que ele se vê envolvido com drogas e com uma falta de motivação
para a vida, levando à separação e posteriores tentativas de aproximação”. Quantas
vezes você já viu este filme? Pois o grande trunfo do belo filme de Hansen-Love
é parecer acreditar na sua história como quem a conta pela primeira vez: com grande
dose de emoção, mas ao mesmo tempo com uma contenção notável, e uma fuga completa
do espetacular, do julgamento ou da solução fácil. Mas,
acima disso tudo, de novo o que eleva o filme são os atores: na primeira parte,
principalmente com a figura de Paul Blain, numa atuação de enorme alcance entre
a auto-destruição, a fragilidade e a raiva; mas definitivamente na parte final,
com a filha crescida, quando os olhos trêmulos (incrivelmente trêmulos, até) da
jovem Victoire Russeau dão ao filme uma vitalidade exuberante. Estruturado a partir
de uma série de elipses narrativas cujo encaixe demonstram uma inteligência narrativa
enorme da parte da diretora-roteirista, Tout est pardonné é um exemplo
inegável de “pequeno filme grande”. * * * Dai
Nipponjin, de Hitosi Matumoto (Japão, 2007) – Quinzena dos Realizadores Na
apresentação da sessão, tanto o diretor do filme como o curador da Quinzena avisaram
os espectadores: “vocês vão ver algo que nunca viram antes”. Eles estavam certos,
e num dia marcado por bons filmes em formatos conhecidos, não deixou de ser uma
forma agradável de terminar a noite ver este filme absolutamente bizarro (ainda
que fraco na sua irregularidade narrativa). Matumoto é um astro cômico da TV japonesa
(o que tornou a apresentação do filme um espetáculo particular em si, com os jornalistas
japoneses louquinhos), e sua estréia como diretor de cinema tem um quê de Casseta
e Planeta, se é que podemos imaginar algo assim na Quinzena dos Realizadores.
Só que, ao invés do formato “popularesco” que o Casseta optou por realizar no
cinema, Matumoto busca uma narrativa mais sofisticada, com um formato de falso
documentário sobre um equivalente moderno (e bizarríssimo – interpretado por ele
mesmo) do Ultraman/Spectroman. O filme tem um humor bastante doentio (sua grande
força), mas ao mesmo tempo não esconde que sua força cômica não sustenta nem de
longe as duas horas de duração. Após fantásticos primeiros quinze minutos, uma
vez que a estranheza se torna aceita, o filme tem pouco mais a oferecer, e muito
tempo a cobrir. Ainda assim, uma sessão deliciosa pelo inusitado de ver o filme
neste contexto – ou de ver o filme, simplesmente. editoria@revistacinetica.com.br
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