sessão cinética
O
Homem das Novidades (The Cameraman), de Edward Sedgwick (EUA, 1928) por
Fábio Andrade
O
homem com a câmera
The Cameraman
é muitas vezes referido como marco inicial da decadência de Buster Keaton. O filme
é o primeiro feito com a MGM, em um contrato que tirava de Keaton o controle sobre
seus filmes, e que pouco mais tarde o empurraria a uma carreira de coadjuvante
assalariado. De fato, não temos aqui uma sequência da magnitude da tempestade
final de Steamboat Bill Jr.; nem uma coreografia tão exuberante quanto
a de A General; tampouco a candura desmascarada de Boxe por Amor
ou a entrega metalinguística de Sherlock Jr. Mas The Cameraman é
precioso por funcionar como uma síntese de primorosa clareza do cinema de Buster
Keaton, não só pela desenvoltura técnica que lhe é peculiar, mas principalmente
por sua faceta política e ideológica. A começar por
Keaton – este ator-autor que desafia as categorias mais estanques do star system
e do autorismo de Andrew Sarris – ser, no filme, um cineasta que, segundo
os créditos, tem o mesmo nome do ator. Há, portanto, um cinema assinado por Keaton,
que imprime sua visão sobre o meio (a arte) e a maneira como ele se insere no
mundo. Em primeiro lugar, este cinema se funda no boy meets girl, onde
um rapaz sempre tenta se aproximar de uma moça. Entre eles, porém, há a máquina
– um trem, um barco, um ônibus (como bem ilustra uma cena de The Cameraman)
– e todas as convenções sociais que ela traz consigo. No cinema de Keaton, a máquina
não é tão somente um objeto, mas sim um símbolo da mentalidade burguesa industrial
vigente que parece ser a fonte causadora do mal de sua época. Em vez de aproximar
as pessoas – como sua propaganda sempre parece defender – este esplendor mecanicista
é justamente o que se coloca entre as personagens, e impede que o rapaz consiga
se aproximar da mocinha. As facilidades se tornam o maior obstáculo. Mas
o cinema, é preciso lembrar, é também filho direto da máquina a vapor, e dessa
mesma ideologia burguesa que Keaton põe em xeque. The Cameraman se torna
um filme inestimável justamente por colocar sua própria contradição em crise e,
mais que isso, eventualmente resolvê-la. Nesse sentido, há um momento de política
cinematográfica muito direta em The Cameraman: quando o chefe da MGM debocha
de Keaton por, ainda aprendendo a dominar o aparelho, ter produzido sequências
em fusão que evocam as famosas sinfonias das cidades da década de 1920. Há ali
um ataque frontal à celebração mecanicista de um filme como O Homem com a Câmera,
de Dziga Vertov. The Cameraman não toma parte nessa celebração mas
vai além de qualquer maniqueísmo, pois percebe que todos os obstáculos impostos
pela sociedade industrial só podem ser realmente resolvidos pelo cinema. O cinema
sim é uma forma de resistência, pois é nele que a aproximação entre duas pessoas
pode se concretizar a despeito de quaisquer obstáculos. Buster
Keaton parte da percepção de que o ritmo do cinema é o único gesto possível de
reconciliação do homem com esta sociedade – e é ainda mais apropriado que esta
reconciliação se dê como uma verdadeira batalha, onde a cidade é o ringue, e a
comunidade, a platéia. O cinema é a máquina que justifica a sociedade industrial,
pois é ela quem permite a aproximação entre as pessoas, e a intervenção moral
e política na organização comunitária. Nos filmes de Buster Keaton, essa intervenção
é questão de mise en scène. Seu rigor está menos no enquadramento (o que
dá ao diretor um papel de colaborador, não exatamente de regente), mas sim na
mira precisa de cada passo em falso, de cada janela quebrada, de cada martelada
na parede. O rigor de posicionamento é questão vital para seu cinema – em certos
casos, literalmente, como no famoso plano de Steamboat Bill Jr. em que
a parede de uma casa real cai sobre o ator, que sobrevive intacto (no filme e
na vida real) por estar no ponto exato onde cai uma janela aberta. Os filmes de
Buster Keaton narram todas as dificuldades impostas pela sociedade ao homem moderno,
mas desmonta cada uma delas justamente pela coreografia, pelo ritmo de presença
na cena (e no mundo) que só é possível no cinema. O que sai disso é uma sinfonia
de destruição, mas uma destruição das máquinas, nunca das pessoas. Nos filmes
de Buster Keaton, o rapaz ficar com a mocinha no final é uma questão política. Março
de 2010 editoria@revistacinetica.com.br
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