em primeira pessoa
Calloni, a página com vida
por Cléber Eduardo

E eis que Antonio Calloni conhece a morte em Páginas da Vida. Motivo oficial de seu “óbito”: esgotamento físico-mental, gerado por excesso de trabalhos emendados um após o outro. Motivo menos oficial: anda tomando remédios para um tratamento de depressão. Motivo mais comentado nos corredores da Globo: os atrasos do texto de Manoel Carlos, que tem estressado os atores, além de impedí-los de trabalhar direito.

Não deixa de ser curioso ser informado sobre esse bastidor, porque, até o momento, eu tinha a impressão de que o ator improvisava suas falas. Por outro lado, acho eu, isso é ótimo. Calloni destoa do resto das interpretações da novela, justamente porque, quando abre a boca, movimenta a cabeça ou aproxima-se com o corpo todo da câmera, ele quebra o gesso de Manoel Carlos. Sai da baixa estatura de personagem-símbolo e alcança a condição de um autêntico "ser cênico", que parte da caricatura e da tipologia (dele mesmo, daí um ar autoparódico em sua atuação) para chegar à uma "humanidade da ficção" – um homem que existe na tela, não apenas um homem representado.

Se o texto chegasse a tempo, Calloni seria um ator menos vivo, mais condicionado por Manoel Carlos? Não sei. Mas me parece que se trata de ator selvagem – não desprovido de técnica rigorosa para obter os efeitos ambicionados, mas indomável, que está acima do desenho de seus personagens e, por isso, consegue torná-los mais pulsantes. Calloni era o melhor de Páginas da Vida, com sua técnica ou intuição para administrar o tempo e as mudanças de ritmo de suas frases, as pausas estratégicas, o olhar intenso que queima o interlocutor, a vocação para a ironia e para o cinismo em seus melhores momentos, a incrível habilidade para controlar a inflexão da voz. Para quê ver Páginas da Vida agora?

De fato, talvez não seja exagero referir-se a ele como o grande comediante do momento no audiovisual brasileiro - e um dos maiores atores em atividade. Essa afirmação também é motivada por sua participação marcante (e problemática) em Anjos do Sol. Sua postura performática, sua busca do show, da interpretação de atração (como no primeiro cinema), mais ou menos comum na comédia americana (ainda mais com atores saídos da stand up comedy), pode ser um risco. Sempre fazendo de toda cena um solo, varrendo os colegas como uma tsunami, Calloni é uma espécie de "intervalo" (nada clandestino): um aposto, um parênteses, que, em vez de integrar-se ao filme ou à novela para servi-los, serve-se dos filmes e das novelas em benfício do espetáculo dele mesmo.

Em Páginas da Vida, essa maneira de ocupar a cena improdutiva e transformá-la em seu minifundio funcionou de forma impressionante. Em Anjos do Sol, vai, em certa medida, contra o filme. Na pele de um cafetão paulistano radicado na Amazônia, ele tem gestos brutos, vilanescos, empenhado em ocupar a  função de culpado social (explorador da prostituição de menores), mas, quando decide monopolizar a cena, coloca a proposta em um curto-circuito. Seu show atenua a gravidade da situação exposta e, quando diz uma frase como "Detesto puta alfabetizada", não provoca indignação e revolta, mas um sorriso ou gargalhada, gerados por seu arrojo como ator, por suas firulas, por suas embaixadinhas na arte de representar e dar vida a alguém.

Com todo o respeito pela integridade física e mental de qualquer pessoa: me diga, seu Calloni, quando e onde você estará em cena em um futuro próximo?


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