in loco - cobertura dos festivais
California Dreamin' (idem),
de Cristian Nemescu (Romênia, 2007)
por Cléber Eduardo

Humor e política

Há dois riscos de sermos contaminados pela cartela inicial de California Dreamin’, segundo a qual a versão do filme que é apresentada é uma montagem não definitiva, tal qual deixada pelo diretor romeno Cristian Nemescu, que morreu em um acidente de carro, antes de concluir o filme. O primeiro risco é considerar a organização das imagens mero esboço de uma obra jamais concluída – o que pode nos levar, eventualmente, a especular quais situações poderiam se manter e quais poderiam cair em um corte final (havendo, ainda, a possibilidade de parte do material não aproveitado ser inserido na obra concluída). O outro risco, derivado deste, é o de tomarmos o filme por seu contexto, encarando sua condição inconclusa e a morte do diretor, não como limitação, mas como alavanca para uma mitificação extra-artística. Procuraremos, então, evitar uma e outra tentação, porque, afinal de contas, se o filme está sendo exibido, com ou sem o suposto corte final, deve ser visto como uma obra (e, nesse sentido, sua premiação na mostra Un Certain Regard é um sinal claro de que isso é mais que possível).

No começo, Cristian Nemescu parece abrir frentes narrativas demais, mas, aos poucos, elas vão sendo organizadas sem rame-rame e sem pressa – algo impossível de saber se ficaria de pé em um corte mais enxuto. De qualquer forma, alguns momentos específicos, mais documentais (claramente inseridos para haver uma relação da câmera com anônimos do lugarejo e com um ritmo daquele ambiente), soam deslocados – em parte porque o tempo dos planos é ligeiro demais. Também a câmera demonstra ansiedade excessiva em procurar descrever pequenas ações, talvez por tentar se inserir, com essa dinâmica, em um certo padrão de agilidade do olhar, que muitas vezes resulta em ausência de olhar, em movimento e retirada dos olhos.

California Dreamin’ se apresenta desde cedo como uma narrativa dividida em duas frentes de tempo histórico: uma situada durante a Segunda Guerra Mundial, outra no fim dos anos 90; uma em preto e branco, outra em cores; uma e outra pontuadas pela relação entre as situações vividas pelos romenos e a interferência nelas de militares americanos. Na parte em preto e branco, os americanos são ausência: esperança de libertar os romenos das suásticas nazistas, jamais dão as caras. Na segunda parte, nos anos 90, eles são uma presença: atravessam a Romênia em trem da Otan, levando radares para a Bósnia, onde os sérvios andam matando a pau.

Não haveria filme, claro, se o trem seguisse seu rumo. Até por isso ele é interceptado, mesmo com autorização do governo da Romênia para percorrer o país. A proibição de seguir viagem é obra de um chefe de estação localizada em um vilarejo, que, em um misto de demonstração de autoridade burocrática com ressentimento histórico em relação aos americanos, exige uma autorização escrita do capitão estrangeiro (Armand Assante). O que se segue são, nesse segmento dos anos 90, os desdobramentos: de um lado, há a justaposição do chefe da estação com o chefe da tropa americana, ambos obsessivos em suas tarefas e na demonstração de seus poderes, em processo de embate e de identificação, como fica clara na bela cena dos dois na cozinha; de outro, vemos as aproximações entre os jovens de fardas americanas e as moças locais, eventualmente ganhando contornos anedóticos por conta da barreira dos idiomas e da reação dos machos do lugar.

Há uma aparente proposta de humor assumido, apenas tomando como ponto de partida algum momento da História, agora saindo do período Ceaucescu (que tem marcado a maior parte dos filmes romenos recentes que nos chegam) para a II Guerra e para os anos 90, primeiro com os nazistas em solo romeno, depois com os comunistas já fora do poder. Somente ao final o viés político se evidencia, com desconcertante ironia, mostrando os efeitos dramáticos da presença americana – que, por meio de seu líder militar, estimula os operários insatisfeitos com o pequeno ditador da estação a reagir. E a reação, como vemos, é desastrosa. Seria um elogio da resignação por meio da crítica a inteferência americana? Em linhas gerais, o que está em jogo, não sem ambiguidades, é a submissão os romenos, por meio do prefeito e de alguns cidadãos, aos homens do primeiro mundo. Encena-se um patético número com um Drácula para os “convidados” estrangeiros, faz-se um show com um cover de Elvis, o alcaide veste uma gravata estampada com a bandeira dos EUA. Isso não significa que os americanos sejam vilões – pelo contrário. O olhar para a relação dos jovens americanos com as moças romenas, por exemplo, é extremamente respeitoso em sua tentativa de explorar o humor contido nessa circunstância. 

Outubro de 2007

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